terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Crônica para João

Voltei, Recife / Foi a saudade / Que me trouxe pelo braço / Quero ver novamente "Vassoura" / Na rua abafando / Tomar umas e outras / E cair no passo / Cadê "Toureiros"? / Cadê "Bola de Ouro"? / As "pás", os "lenhadores" / O "Bloco Batutas de São José"? / Quero sentir / A embriaguez do frevo / Que entra na cabeça / Depois toma o corpo / E acaba no pé.

O texto acima, não é preciso dizer, não é meu. É a letra de um frevo antológico de Capiba. Tão-logo Saulo, meu filho, me telefonou para dar a triste notícia, pus-me a cantarolar a música, repassando com os olhos da saudade a imagem desse Dom Quixote extemporâneo em passos de dança enlouquecidos, que nos faziam quase morrer de rir. O coração-menino de João, o maluco-beleza, na linha do que imaginou Raul Seixas, João Francisco do Amaral Neto, cansado das muitas extravagâncias e excentridades, havia pouco silenciara de vez.

Senti muito a morte desse anarquista convicto. É que João foi um dos meus grandes amigos, desde os tempos já longínquos de vizinhança no Planalto, em Iguatu. À época, Aleuda, mulher de João, ele, eu e minha então mulher vivemos uma amizade profundamente humana. Aleuda era uma pessoa incomum, uma das mulheres mais solícitas que pude conhecer, uma vizinha como as vizinhas dos velhos tempos... João, uma figura absolutamente singular, ciclotímica, irreverente, a indisciplina em forma de gente. Era tempo de vacas gordas e, nos finais de semana, quase nunca saíamos daquelas redondezas, dividindo, com outros vizinhos, quintais e mesas, sobre as quais as mulheres não deixavam faltar os melhores petiscos, o melhor uísque e a cerveja mais gelada. Uma festa, que só tinha hora para começar.

Finais de semana, varávamos madrugadas ao som de Chico, Paulinho da Viola, Fagner, Roberto Carlos, numa animação que chamava a atenção dos que por ali passavam. A uma dada altura, invariavelmente, já cheio da cerveja que tanto apreciava, João punha-se, de inopino, a cantar o frevo de Capiba, de tal modo desafinado, que era impossível não nos voltarmos todos, gargalhada solta, para ouvi-lo desfiar os versos saudosistas desse clássico pernambucano; era um homem sensível e se emocionava sempre que recordava sua terra e sua gente: enquanto escrevo estas linhas, parece que o vejo, com seus olhos a princípio marejados, até cair num pranto compulsivo e desavergonhado. Quase menino!

Pernambucano de Olinda, João era um telúrico assumido, e, como eu, um saudosista incorrigível. Mal bebia o primeiro gole, punha-se a contar os folguedos carnavalescos de Olinda e Recife. Sabia tudo sobre os blocos, os foliões mais renomados, não raro as circunstâncias em que haviam sido escritos alguns dos monumentos do cancioneiro momino recifense. Além disso, era um torcedor vibrante do Sport, "Com o Sport / Eternamente estarei / Pois rubro-negras são / As cores que abracei / E o abraço, de tão forte, / Não tem separação / Pra mim, o meu Sport / É religião." Quantas vezes não o ouvi cantar o hino do leão, tomado de um entusiasmo contagiante, que João era, antes de tudo, um entusiasta nato. João via graça em tudo, se divertia com tudo, tirava piada de tudo. Era polêmico, às vezes inconsequente, que a vida, para ele, tinha assim mais alegria. Era um ledor contumaz, o que explica que soubesse tanto sobre tantas coisas.

João era Dionísio, era Macunaíma. No bom sentido, um moleque, um clown shakesperiano, um amigo, um ser extraordinário, desses que só nascem de quando em vez. Fico, mesmo, imaginando, como a parodiar o poeta: "João era fabulista, fabuloso, fábula? Ficamos sem saber o que era João. E se João existiu de se pegar."

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A tragédia e a benevolência do homem

Na última crônica do ano, enquanto fazia um balanço do que fora 2010, desejava aos leitores, entre outras coisas, que a natureza fosse mais generosa com os brasileiros em 2011. Na contramão das minhas expectativas, no entanto, acompanho pela TV as cenas aterradoras da tragédia que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro desde a madrugada de quarta-feira 12, e que resulta, por enquanto, em quase 800 vidas ceifadas. Uma catástrofe que coloca o Brasil entre os dez países mais gravemente afetados pelas calamidades naturais em todos os tempos.

São imagens de dor, sofrimento, desespero. Cenas dantescas, casas, carros, pessoas sendo arrastadas pela fúria das águas. Declarações chocantes, como a do contador Luiz Otávio de Souza, 39 anos: - "Até agora só consegui encontrar um homem morto e resgatei o braço de uma criança." Souza empenhava-se em encontrar os corpos de tios e primas, soterrados pelos escombros do que fora o edifício em que moravam em Nova Friburgo. A paisagem é terrificante. Os depoimentos deixam os nossos corações apertados. Difícil conter as lágrimas diante de tanto padecimento, da angústia insuportável de pessoas que, estranhas e distantes, como que se tornam próximas na agonia de um instante.

E a vida imita a Arte.

O riacho que atravessa São José do Rio Preto, cenário em que se inspirara Tom Jobim para compor Águas de Março, sua mais célebre criação, transforma-se em descomunal avalanche, capaz de arrastar casas, pedras, paus, pontes, vidas. Fim do caminho, diz um verso da composição. Gravadas pelo neto Daniel, também músico de carreira promissora, a televisão mostra as imagens da casa dos seus avós desmanchando-se sobre as águas barrentas, inelutáveis, inclementes.

Dialeticamente, contudo, a tragédia tem revelado dois lados de significados claramente distinguíveis. O primeiro, já em parte mostrado acima. O segundo, a revelação da incontrastável generosidade humana. A solidariedade que move pessoas não raro vitimadas pela mesma catástrofe, pessoas que tiveram suas casas destroçadas, que perderam familiares queridos, que trazem no corpo as marcas do desastre. Feridas que ainda sangram e Humanismo que se mostra, a um tempo, na consciência das limitações humanas, na aceitação resignada da dor - e na insistência do amor ao próximo, brotando dos destroços como forma de projetar na adversidade a benevolência do homem.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Francisco, o disco

Leitor comenta coluna Todo Sentimento: - "Li sua crônica, mas não sabia que Chico Buarque tinha gravado. Conheço com Ney Matogrosso. Você não se enganou? Em que disco está?" [sic]. Não, não me enganei. A música, que de fato foi lançada na bela interpretação de Ney, está no LP Francisco, de 1987. Falo com segurança, pois se trata de um dos discos de Chico de que mais gosto. Aquele que, excentricamente, veio a mercado com três opções de capa. A minha versão estampa o artista num plano geral, atravessando uma rua onde se veem, ao fundo, alguns guarda-chuvas abertos. Lembro que em outra, também num plano geral, come uma maçã. Não me lembro da terceira.

Pois bem. É um disco particularmente lírico, em que aparecem algumas das composições mais inspiradas do viés romântico de Chico Buarque. Sobre Todo Sentimento, não vou tecer considerações, que já o fiz na crônica que você contesta. Mas, já que fui provocado [risos], não me furtarei de comentar o disco, pois, como disse, acho-o um primor. Se não, vejamos que poesia tão terna e tão pura: "Me dê notícia de você / Eu gosto um pouco de chorar / A gente quase não se vê / Me deu vontade de lembrar. [...] A gente quase não se vê / Eu só queria me lembrar / Me dê notícia de você / Me deu vontade de voltar." A música se chama Cadê Você.

É possível, até, que eu tenha um particular carinho por este álbum por ter assistido ao show, que leva o mesmo nome do disco e que aconteceu depois de um jejum de 14 anos no palco. Foi uma fase mais leve do compositor, o disco é mais marcado e chama a atenção o fato de as melodias casarem à perfeição com as letras, notadamente naquelas que tematizam o amor. Uma outra de que mais gosto, que me parece estar a nível de Todo Sentimento é Lola: "Sabia / Gosto de você chegar assim / Arrancando páginas dentro de mim / Desde o primeiro dia // Sabia / Me apagando filmes geniais / Rebobinando o século / Meus velhos carnavais // [...] Sabia / Que ia acontecer você um dia / E claro que já não me valeria nada / Tudo o que eu sabia / Um dia."

O disco traz, como carro-chefe, Estação Derradeira: "Quero ver a mangueira / Derradeira estação / Quero ouvir sua batucada, ai ai." Uma curiosidade: a Mangueira, no ano de lançamento do disco, vencera o Carnaval homenageando Carlos Drummond de Andrade. Uma consagração popular do nosso poeta maior.

Francisco, leitor, como se vê, é mesmo um dos meus discos preferidos do gênio. Não traz a cara política de álbuns anteriores, tem uma vocação melódica ligeiramente acústica e o tom poético parece revelar sentimentos subjetivos do compositor, mas é muito bonito. Desculpe se me estendi, mas a música foi mesmo gravada por Chico neste imperdível Francisco. Contudo, reconheço, você tem razão, a interpretação de Ney Matogrosso é perfeita.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O Amor não morre nunca

O que acontece quando cinco amigos estão à mesa de um bar conversando? Tolice, tolice pura, dirão as mulheres. Se, via de regra, isso é mesmo uma realidade, a regra tem exceções, felizmente. Ou não, que é sempre bom, vez e outra, desfiar bobagens diante da cerveja. Talvez não seja o caso do que se vê no enredo do último livro da escritora portuguesa Inês Pedrosa, Os íntimos, que li de uma sentada nessa segunda-feira. E adorei.
 
Afonso, Augusto, Guilherme, Pedro e Felipe, sentam-se à mesa de um bar de Lisboa, em dia de chuva, e iniciam a curiosa conversa, tendo como testemunha feminina Célia, filha do taberneiro e única mulher ali presente. Mas elas têm voz, ainda que indiretamente, nessa prosa de qualidades estilísticas já reconhecidas de obras anteriores. A propósito, mais de uma vez escrevi neste espaço sobre livros de Pedrosa, Fazes-me falta e Em tuas mãos, para ficar em dois exemplos do que há de melhor na ficção pedrosiana. Voltemos ao livro.
 
Num recurso já conhecido, o entrecruzar de vozes e estilos, mas tratado com a concepção estética inconfundível, que a originalidade do 'olhar' é uma marca de Inês Pedrosa, mesmo quando discorre sobre o vazio da existência humana em crise, que tão frequentemente constitui a matéria de que se vale para traçar suas narrativas repletas de emoção e poesia, a autora vai tecendo a realidade multifacetada de suas personagens. As angústias, as incertezas, a dor das perdas, os conflitos de toda ordem. Um belo livro, já disse.
 
Aqui e ali, uma passagem descontraída própria da circunstância de estarem cinco homens a falar de suas vidas, como no julgamento que faz Afonso sobre a passionalidade feminina hoje: - "[...] com a libertação das mulheres finou-se aquela ideia simpática de que o tamanho não é importante. Acabaram-se os bons sentimentos das mulheres: a timidez, o pudor, a culpa, a entrega desinteressada, enfim, a compaixão." Ou dramáticas e comoventes, como na carta de uma amiga para o mesmo Afonso, que acabara de perder uma filha: - "O amor, vi-o cintilante, nos teus dedos, enquanto acariciavas a tua filha, no caixão, como se de novo  a acariciasses no berço, enquanto dormia."
 
Em tempo, nesta mesma passagem do romance deparamos com uma belíssima reflexão sobre a perenidade do amor, este sentimento que move a arte de Inês Pedrosa: - "[...] o Amor não se perde, nem envelhece, nem morre. Basta olhar para as estrelas. Como eu olho para ti." Perfeito, Inês: o Amor não morre nunca!