sexta-feira, 20 de março de 2015

O águia de ontem

O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.   (O Sertões, Euclides)
 
Impossibilitado de digitar  textos, por força de determinação médica, depois de me submeter a cirurgia no braço, faço-o mesmo assim para tecer elogios entusiásticos a Cid Gomes pela forma como se conduziu, quinta, 19, no Congresso Nacional, em Brasília, diante dos "300 ou 400 achacadores'' que o convocaram àquela Casa na equivocada expectativa de ver o ex-governador cearense capitular à arrogância e à desfaçatez da corja comandada por Eduardo Cunha.
 
Àqueles a quem, por incomum, o termo ainda cause estranhamento, esclareço-o à luz do vernáculo: Dizem-se "achacadores" aqueles que criticam, molestam, intimidam, quase sempre, com fim de obter vantagens. Perfeito, Cid.
 
O então ministro da Educação, Cid Gomes, tivera uma fala sua, em reunião com estudantes universitários, em Porto Alegre, gravada e divulgada em diferentes sites da Internet, com fins os mais desencontrados, o que levou a turma do baixo clero das duas maiores casas legislativas do País, Eduardo Cunha à frente, a espumar de ódio, como é costume sempre que alguém tem a coragem de julgar, tal qual se deve julgar a expressiva maioria dos nossos deputados federais e senadores.
 
 Sem rodeios, essa corja que entra mandato sai mandado e não faz outra coisa que não se locupletar, enriquecer despudoradamente com o "prestígio" conferido a seus cargos conquistados, todos sabem, pelas práticas mais escusas. Eleitos, andam como bêbados, à direita e à esquerda, rodopiando, aqui e ali, como clows de Shakespeare, piscando os olhos para enxergar a boca da mina de que esperam (e quase sempre conseguem) extrair o ouro fácil. Os mesmos a quem Lula, tempos atrás, se referira, em plena Globo, como "500 picaretas". Em tempo, como se tratava de Lula, outro nordestino, de quem metem o rabos entre as pernas de medo, ficaram "pianinhos".
 
Para quem esperava, contudo, um nordestino desdentado, pobre e ignorante, curvado ao peso de tantas ofensas jamais respondidas, como a mais recente, de que não sabe votar, de resto resultado do simbolismo preconceituoso com que a elite paulista constrói o perfil de nossa gente, a lógica dos fatos se inverteu e se inverteu na lenha, punho fechado, dedo em riste. Bate, Cid.
 
E a fala do ex-governador cearense, acrescente-se mais, em pleno terreiro adversário, metro maior, capaz de medir a sua coragem como homem e a sua dignidade como companheiro leal de Dilma Rousseff, quando mesmo os correligionários históricos da presidente preferem tergiversar ou mesmo calar diante da crise sem precedentes que o partido atravessa. Cid agiu como um nordestino honrado, pelo que todos os nordestinos de raiz, ricos e pobres, minimamente conscientes política e culturalmente (não me refiro ao conhecimento acadêmico) devemos agradecer e aplaudir. Com linhas ideológicas distintas, mas com a essência de suas boas intenções no episódio, foi sábio, correto, desassombrado, e entra, que se compreenda a proporção do meu entuasiasmo de agora, para a nossa História, sem sair da vida, como um Joaquim Nabuco, um José Américo de Almeida, um Ruy Barbosa, o de Haia.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
           

sexta-feira, 13 de março de 2015

Sou contra!

Aos que cobram uma posição deste colunista, sem meias-palavras respondo: Sou contra! Não contra o direito de protestar, de ir às ruas manifestar sua indignação diante do que, todos sabem, confunde-se com a própria história política do País: a corrupção que grassa pelos quatro cantos do território brasileiro, nas instituições públicas, nas prefeituras, nos governos estaduais, nas assembleias legislativas e no Congresso Nacional.
 
Não contra as medidas que, em alguma proporção, ferem o bolso do trabalhador e o orçamento das famílias. Não contra a imperiosa e inadiável disposição dos cidadãos, de resto saudável em todos os sentidos, de exigir o restabelecimento da moral entre os que participam da atividade política em diferentes níveis.
 
Mas contra o oportunismo cínico de setores de nossa elite, contrariados com a continuidade de um projeto de governo voltado para os interesses dos menos favorecidos. Contra a desfaçatez de celebridades do mundo social e político, a exemplo de Fernando Henrique Cardoso e do candidato, derrotado, Aécio de Almeida Neves, que pregam às escondidas o "Impeachment Já".
 
Quem não sabe que, por trás disso tudo, há as práticas inconfessáveis de gente da "estatura" de José Serra, Aloysio Nunes Ferreira e Tasso Jereissati? Este último, a propósito, o mesmo que, cuspindo à direita e a esquerda, como um lagarto asqueroso, participa lá de reuniões golpistas e se diz contrário à deposição aqui, para angariar, a um só tempo, a simpatia de paulistas e nordestinos, na tola e equivocada esperança de um dia ser eleito presidente do Brasil.
 
Quanto a Fernando Henrique Cardoso, que, infelizmente, admirei um dia, pelas ideias que pediria que esquecêssemos, a enlamear sua biografia pesa, agora, a solicitação de parecer do advogado Ives Gandra Martins sobre a consistência legal de um pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, para, ato contínuo, empoleirar tucanos em reunião secreta em sua casa com o mesmo fim. 
 
Quem não lembra, ou se faz de desinformado, que se trata do mesmo FHC da compra de votos (comprovada) para assegurar sua reeleição como presidente? O mesmo FHC da privataria tucana? O mesmo FHC que capitulou convictamente ante o projeto americano de intervenção na América Latina? Em tempo, ocorre-me a passagem do livro de Saulo Ramos, Código da Vida, em que o renomado advogado refere-se às articulações de FHC, em fins do governo de José Sarney, em favor do parlamentarismo, por certo confiante em posar de primeiro ministro, doentemente vaidoso que é.
 
Sou contra porque nunca fui ou serei favorável a qualquer tipo de golpismo. Porque tenho convicção da honradez de Dilma Rousseff, porque tenho memória para entender o que 'rola' por trás de tudo isso, incluindo, aqui, os valores por que se orienta o grosso dos manifestantes de amanhã.
 
Para essa gente, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Essa gente nutre ódio ao verdadeiro sentido da palavra democracia. Quando os shoppings, as praias, os cinemas, a vida da cidade é ocupada por pessoas humildes, como se tornou possível durante os governos do PT, e que antes eram espaços reservados às pessoas de "boa aparência", quando os empregados levantam a voz por salários dignos etc., essa gente se pinta de verde e amarelo  -- e se une nos panelaços e na gritaria em sinal de protesto. Por isso sou contra.
 
 

   
  
 
 
 
           

sexta-feira, 6 de março de 2015

O milagre da Arte

Semana que passou visitamos, Ticiana e eu, o Getty Center, em Los Angeles. Trata-se de um dos principais complexos culturais dos Estados Unidos, de cujas edificações explode para os céus de Brentwood, o bairro em que está localizado, uma beleza entre desconcertante e profundamente sedutora.
 
O projeto, do arquiteto Richard Meier, é considerado, por si só, uma das obras mais fascinantes do conjunto artístico abrigado pelo centro construído com recursos do famigerado bilionário Jean Paul Getty. Ali estão em pleno funcionamento o Jean Paul Getty Museum e inúmeras outras instituições ligadas ao estudo, à conservação e à produção artística, a exemplo do Getty Research Institute e Getty Conservation Institute.
 
Dentre as principais ações e projetos, destaca-se a formação de museólogos, sem falar do aperfeiçoamento de profissionais ligados à memória cultural e artística.
 
Duas exposições são destaque nesse início de ano: a de impressionistas e pós-impressionistas franceses, com destaque para monstros sagrados do porte de Manet, Monet, Van Gogh, Gauguin e, embora estranho ao estilo, ninguém menos que o espanhol Pablo Picasso. A outra, reunindo o maior número de obras num só espaço independente, Turner, Painting Set Free, com algo em torno de 60 quadros do pintor inglês, a quem não raro se considera o precursor do modernismo nas artes visuais.
 
Polêmica à parte, sobressai o fato de Joseph Mallord William Turner ser um artista absolutamente extraordinário, quer pela força dramática que advém de suas telas carregadas de cor e luz, quer pelos temas que constituem uma de suas marcas inconfundíveis,  paisagens e marinhas tipicamente românticas. Não é muito afirmar, por isso, que Turner encarna o espírito Sturm und drang, algo como "paixão e ímpeto", emoções comumente identificadas na perspectiva da literatura e da música como características marcantes da arte romântica.
 
Diferentemente de alguns museus, mesmo da Europa (e do Brasil, sobretudo), impressiona que o Getty Center invista tanto do seu alcance como complexo cultural na formação de novos amantes da arte. É impressionante o número de crianças com que deparamos em halls, galerias e salões do complexo. A uma dada altura, particularmente tocada com o fato, estranhos aos padrões brasileiros, como disse, Ticiana me chama a atenção para um detalhe curioso: munidos de lápis ou pincéis, meninos e meninas dedicam-se a reproduzir livremente, sob o olhar atento do professor, telas importantes do cânone das artes plásticas ocidentais.
 
De uma delas posso ouvir a exclamação tocante: "splendid!". Volto o olhar e vejo à minha frente 'um belo Rubens', de quem o Getty Center exibe, entre outros, A Marry Company, cuja dramaticidade e retorcido da sintaxe nos remete ao mais intenso clima barroco.
 
Diante dessas crianças, ocorre-me compreender à perfeição o que nos ensina Mikel Dufrenne, o filósofo francês: se o artista cria a obra de arte, cabe ao espectador, pela percepção contemplativa, viver a epifania do objeto estético, ter acesso ao mundo do artista e descobrir, nele, o seu próprio mundo, empenhando-se em embelezá-lo e, com ele, à vida inteira que vivemos. O milagre da Arte.