Quase sempre o extraordinário começa no ordinário, assim um estudioso de fama definiu o despertar para a música. Em inícios dos anos 60 chega a Iguatu o bispo Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago. Eu tinha uns seis, sete anos, e lembro que a cidade se engalanou para recebê-lo. Uma festa.
Homem de refinada extração intelectual, amante da música erudita, Dom Mauro, mal chegara, adotou uma prática que exerceria sobre mim grande influência no que diz respeito ao senso estético: mandou instalar um sistema de som em volta da Catedral e, duas ou três horas antes da missa das cinco, alto-falantes em forma de cornetas espalhavam no entorno da praça as maiores composições de Beethoven, Chopin, Tchaikovsky, Bach, Haydn, Strauss e tantos outros.
Estou certo que, daí, nasceu o meu gosto pela música clássica, como apreciador, como diletante, claro, uma vez que não tenho qualquer formação musical. Neste instante, fecho os olhos e chego a escutar, por exemplo, As quatro estações, de Vivaldi. Gostava mais da Primavera, embora, à época, não soubesse de que concerto se tratava e, sequer, quem o compusera. Mas o solo dos violinos me encantava, como que me transportava dali para a natureza em festa, o canto dos passarinhos acariciando-me os tímpanos e a alma. Pura intuição, uma captação impressionista daquele som tão envolvente e sedutor, cobrindo de ternura as nossas tardes de domingo.
Anos depois, adquiriria quase tudo o que chegava às lojas dos principais clássicos, os românticos à frente. Passei a ouvir com certa freqüência Mozart, Schubert, Listz, Dvorak, Sibelius, Haendel, Wagner, Bizet e muitos e muitos outros. Tudo, insisto, por conta das tardes domingueiras de Iguatu. E pela sensibilidade artística de Dom Mauro.
Mas é Ludwig van Beethoven, o meu compositor favorito. Apaixona-me a força e o brilho de suas composições, sonatas, concertos, sinfonias – e a profundidade de sentimento que emana de sua arte incomparável. Emocionam-me, desconcertam-me mesmo, os contrastes abruptos e a intensidade emocional da quinta ou a alegria contagiante da nona, sua última sinfonia. A arte, enfim, desse artista extraordinário, criador de obras que desafiaram as fronteiras geográficas e romperam as marcações do tempo.
Dele, em medida de grandeza que faz jus ao gênio alemão, Jan Swafford, premiado compositor e musicólogo, escreveu a monumental biografia "Beethoven: Angústia e Triunfo", que recomendo com entusiasmo aos que amam a música.
Ocorre-me recordar agora: Certo dia, no Rio de Janeiro, vou com minha mulher, à época, e Saulo, meu filho, assistir ao filme Minha Amada Imortal, de Bernard Rose, com uma excepcional interpretação de Gary Oldman no papel de Beethoven. A obra narra uma história a um tempo simples e curiosa: Viena, 1827. Beethoven morre e um amigo, Anton Felix Schindler, decide realizar o último desejo do compositor, que é deixar para a mulher sua herança. No testamento, contudo, não diz o nome da mulher, a sua "Amada Imortal." A empreitada é desafiadora e revela a face desconhecida do gênio.
Lembro que, como o cinema estivesse lotado, sentamo-nos no chão, acomodando-nos com alguma dificuldade. Saulo, pequenino, tinha por volta dos três ou quatro anos, adormece no colo da mãe. A beleza do filme, a família ali reunida no chão acarpetado de uma sala de cinema no Rio, e, sobretudo, a música prodigiosa de Beethoven traziam-me uma emoção imprevista, uma vontade de chorar, não de tristeza, mas de alegria, de felicidade e de gratidão a Deus pelo milagre da vida. Apertei suavemente a mão de minha mulher, e, ao som de Sonata ao Luar, que considero uma das mais tocantes composições de toda a história da música clássica, fiquei extremamente emocionado, segurando a custo as lágrimas que me encharcavam os olhos naquele instante.
É, de fato, uma cena lindíssima do filme de Rose. Relembro com detalhes seu desenrolar: Beethoven, já quase completamente surdo, escreve e executa ao piano Sonata ao Luar, acompanhado à distância, sem que o saiba, por Anna Marie Edordy, vivida pela atriz Isabella Rossellini, a sua amada. A fim de sentir a música, já quase inteiramente surdo, Beethoven encosta o ouvido à madeira do piano, sente suas vibrações. Uma cena desconcertante, extremamente poética, primorosa, cinematograficamente perfeita.
Assim, a música esteve sempre presente na minha vida, de todos os gêneros, de uma forma em nada preconceituosa. Gosto, gostei sempre, da Música Popular Brasileira, por exemplo, assim como da música de outros países, de outras matrizes culturais, e da música erudita, objeto de minhas recordações de agora.
Tenho o hábito de acordar cedo e, aos primeiros raios do sol, ouvir música, como que para começar o dia de maneira harmônica e melodiosa.
A música, assim como Deus, exercendo sobre mim o poder jamais compreendido de operar milagres.
Dom Mauro faria por esses dias 100 anos. Foi com ele, em termos musicais, que tudo começou para mim.
Bela crônica Álder!
ResponderExcluirJá aguardando seu próximo livro de Crônicas. Inspirado em Iguatu e outras paragens da memória, imaginação e do sonho, matriz das narrativas poéticas. Obrigada!
Belo texto, Álder! Realmente a música clássica é um caminho que nos conecta ao Divino. Considero que a literatura e a música (campos em que você trafega com maestria; certamente incluirá o cinema nessa lista) são caminho seguro para a humanização, tão esquecida hoje em dia. Tive também o privilégio de assistir "Minha amada imortal".
ResponderExcluir