quarta-feira, 24 de abril de 2024

Uma revolução poética

Chico Buarque de Hollanda, do alto de sua genialidade, escreveu sobre a Revolução dos Cravos uma de suas mais belas canções, cujo título, "Tanto Mar", constitui uma referência metafórica à distância que separa o Brasil de Portugal, quer em termos objetivamente referenciais (denotativos), pois há um oceano entre um país e outro, quer em termos poéticos, uma vez que, à altura em que compôs a obra (1975), diferentemente dos irmãos lusitanos, os brasileiros ainda padeciam dos horrores do golpe militar de 1964. É pouco divulgado, no entanto, mesmo entre os historiadores da MPB, o fato de Chico Buarque ter escrito duas versões para "Tanto Mar". A primeira, pouco conhecida, mas não menos bela, é esta: "Sei que está em festa, pá/Fico contente/E enquanto estou ausente/Guarda um cravo para mim/Eu queria estar na festa, pá/Com a tua gente/E colher pessoalmente/Uma flor no teu jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também que é preciso, pá/Navegar, navegar/Lá faz primavera, pá/Cá estou doente/Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim". Na segunda versão, mais trabalhada poeticamente, em obediência aos preceitos dos tratados de versificação, o poeta atinge uma dimensão artística de maior alcance e um andamento estilístico mais preciso, rítmico e melódico. Aqui está: "Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/Ainda guardo renitente/Um velho cravo para mim/Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/N'algum canto de jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também como é preciso, pá/Navegar, navegar/Canta primavera, pá/Cá estou carente/Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim".
Nesta quinta-feira, 25 de abril de 2024, comemoram-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, cuja ocorrência, em abril de 1974, portanto, deu início a uma série de acontecimentos libertários dos países colonizados por Portugal, razão por que os festejos reunirão, nesta quinta-feira 25, diversos outros chefes de Estado, a exemplo de Angola e Moçambique.
Transitando entre a ficção e a realidade, como é próprio da Arte, em "Quase Romance" (Sarau das Letras, 2021), minha estreia na narrativa longa, prestei uma singela homenagem aos portugueses no capítulo do livro dedicado a esse memorável acontecimento histórico, momento em que, no plano do conteúdo, a personagem Ana já deixara o país para retornar ao Brasil:
"Ironicamente, Ana deixara Portugal às vésperas da derrubada do governo salazarista de Marcello Caetano, ocorrida em 25 de abril de 1974. Por curioso, mais que os revolucionários que punham por terra o regime de inspiração fascista conhecido como Estado Novo, vigente desde 1933, uma mulher simples, uma humilde empregada de um restaurante da rua Braacamp, que tantas vezes frequentara ao lado de Linda, entraria para a história: Celeste Martins Caeiro, era o seu nome. O bar chamava-se "Franjinha" e fora inaugurado havia exatos doze meses. Para comemorar a data, a gerência decidira comprar uma grande quantidade de cravos vermelhos e brancos para distribuir com as senhoras. Aos homens, de cortesia, seria servido um "Porto".
Em face da grande mobilização popular que tomava conta das imediações do "Franjinha", a gerência do restaurante resolvera manter suas portas fechadas.O que fazer, todavia, com tantos cravos? "Leve-os para suas casas", disse, na véspera, Isabel Falcão, a gerente, dirigindo-se aos empregados do restaurante.
Abraçada a um molho de cravos vermelhos, Celeste tomou o metrô a caminho do Rossio, deparando, ao descer nas proximidades do cubículo em que morava com a mãe e uma filha, no Chiado, com os tanques revolucionários. Aproximando-se de um deles, pergunta a um soldado o que se passa ali, ao que ele responde: "Vamos para o Carmo derrubar Marcello Caetano. Isto é uma revolução!"
O soldado pede a Celeste um cigarro. Como não fumasse, ela oferece-lhe um cravo. Não tendo outra forma como reagir ao gesto da doce mulher, o soldado, displecentemente, coloca o cravo no cano do fuzil. Celeste os ofereceu, em seguida, a outros soldados, que também os colocaram na ponta de suas armas. Os outros empregados do "Franjinha", que ali se encontravam, passaram a distribuir os seus cravos também. Em poucos minutos, eram centenas de fuzis ornamentados com as flores com que se pretendia comemorar o primeiro aniversário de um pequeno restaurante.
Era a Revolução dos Cravos.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Ainda sobre a saudade

Ao mergulhar na xícara de chá o tradicional bolinho madeleine, antes de levá-lo à boca, recuperando o cheiro gostoso da iguaria em sua infância, na cidade de Combray, o protagonista de Em busca do tempo perdido inicia a experiência milagrosa de recuperar o passado longínquo, resgatando a sua história feita de amores, ciúmes, alegrias, sofrimentos e do prazeroso encontro com a arte, compondo, assim, a identidade do narrador adulto desse livro-monumento de Marcel Proust.

Acho que todo homem, cedo ou tarde, vive uma experiência semelhante, quase sempre quando a memória de sua vida vai se esgarçando com o passar do tempo, e suas lembranças perdendo-se entre a névoa do envelhecimento que se anuncia. É quando percebe que a vida de todos nós é feita de passado, que o que chamamos de futuro é algo improvável, que sequer sabemos se um dia vai acontecer, tornando-se uma realidade.

"Quem vive de passado é museu!" Quem nunca terá escutado o tolo chavão? E, no entanto, nem se percebe que, concluída a afirmação, isso já é passado, única possibilidade de ordem factual. Está na Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel: – "O agora já deixou de sê-lo quando é nomeado, já é passado."

Desde cedo, por curioso, seduziram-me as obras que tratam da vida pretérita, biografias, autobiografias, memórias. Fascina-me o desabrochar das lembranças, o trazer à mente aquilo que se viveu, os amores, os lugares em que se esteve, os perfumes e as sonoridades, as emoções que um dia tomaram conta de nós.

Tenho o hábito de ler esses escritos. Lembro-me como foi uma experiência impactante ler o livro de Proust, ora referido. Ou Minha formação, de Joaquim Nabuco; Navegação de cabotagem, de Jorge Amado; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; Tempo morto e outros tempos, de Gilberto Freyre; Meu último suspiro, de Luis Buñuel; A soma dos dias, de Isabel Allende; Minha vida na arte, de Constantin Stanislávski; A menina do sobrado, de Cyro dos Anjos; Confesso que vivi, de Pablo Neruda; Minha vida, de Hermann Hesse e, um livro diferente no gênero, Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Gustav Jung, para falar dos que me ocorrem enquanto escrevo estas linhas.

Sem pruridos, porque inteirado do que isso é, sou um saudosista assumido. Toca-me a etimologia do verbo recordar, do latim recordari, re = novamente + cord = coração, ou seja, trazer de volta ao coração.

Sou um proustiano convicto. Provocam-me sensações incomunicáveis o cheiro inesperado de um perfume, a audição de uma música antiga, o sabor de uma comida há muito tempo experimentada.

Sobre a saudade escreveram-se os mais belos versos, foram ditas as palavras mais tocantes, viveram-se as emoções mais sinceras, as mais doces ou mais doídas. Intraduzível, porque tão nossa, tão própria da língua que falamos, na intensidade de sua íntima potência, a palavra 'saudade' desprende-se da referencialidade do dicionário, e da prosa, a fim de comunicar esse sentimento nunca transferido em sua real grandeza. De Chico Buarque, talvez nenhum outro poema tenha podido dizer com mais força e mais sentido, mais beleza e profundidade emotiva que Pedaço de mim: "A saudade é o revés de um parto./A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

A chuva, que vejo agora cair do céu, pelo vidro da janela; o céu plúmbeo de um entardecer; o cheiro doce da terra molhada; os traços de um rosto; um simples gesto de alguém que passa; um movimento de mãos; o inconfundível aroma de um perfume; a música que enternece, e eis o passado de volta, fazendo-se presente, este "isto impossível" de que nos falou Jacques Derrida.



sexta-feira, 12 de abril de 2024

Fwd: Senador Girão, por que não te calas?

Hilário, não fosse ridículo, o discurso do senador cearense Eduardo Girão na tribuna da mais elevada instância legislativa do país.

Num inglês de quinta, com que, pasmem, traduziu até mesmo seu sobrenome para o inglês norte-americano, expondo à galhofa seu esnobismo chulo, Girão (ou Giron, como ele prefere), entra para o "seleto" grupo dos oradores mais canalhas que já passaram pelo Senado.

Se mal construída e trôpega na articulação sonora, rasteira na escolha lexical, sintaticamente desastrosa, no plano da expressão, portanto, no plano do conteúdo a fala do senador repercute sobremodo pelo que trouxe de desnecessário, vazio de sentido e humilhante do ponto de vista moral.

Uma vergonha para os brasileiros, os cearenses em especial, que expõe o pensamento, servil e trouxa, de uma parcela numericamente significativa das bancadas que compõem aquela Casa.

Uma tragédia, conclua-se, digna de figurar nos programas humorísticos mais escrachados.

O pronunciamento de Eduardo Girão, tal como se pôde ver e ouvir, falando em inglês para colegas brasileiros, veio na esteira do que, na Câmara dos Deputados, constitui a mais deslavada e cínica, porque hipócrita, mobilização dos parlamentares de extrema direita contra a regulamentação das plataformas digitais. Hipócrita quando fala em defesa da liberdade de expressão referindo-se ao que é propagação de mentiras, ataques virulentos aos fundamentos da democracia e do Estado de Direito. Deslavada e cínica, porque ancorada em ideias como as de Eduardo Girão, um indisfarçado entusiasta do jogo de interesses forjados no complexo de vira-lata de que nos falou Nelson Rodrigues.

Com tantos argumentos de que poderia o senador Girão lançar mão para defender suas ideias, numa correlação de forças própria de todo e qualquer regime verdadeiramente democrático, ocupa ele a tribuna do Senado Federal para exaltar servilmente a figura de um magnata estrangeiro que faz pouco caso do Brasil, achincalha as leis do país e arvora-se no direito de dizer o que é melhor para o nosso povo.

 Tivesse o senador cearense um mínimo de dignidade pessoal, em respeito ao cargo que ocupa, quando menos, e não faria um discurso tão vil e tão desavergonhado como o fez, dirigindo-se, noutra língua, em pleno Senado brasileiro, a uma personagem desprovida de qualquer escrúpulo como Elon Musk, que, além da riqueza gigantesca, tão-somente assume-se como o mais importante prócer do reacionarismo contemporâneo.

Para Elon Musk, para a extrema direita internacional, para os amantes do golpismo no país (leia-se bolsonarismo), para os endinheirados da Faria Lima e demais oportunistas da economia ultraliberal, é evidente: jamais interessará que se proceda a qualquer regulamentação das plataformas digitais. São elas o canal com que alimentam seus negócios, muitas vezes espúrios, e promovem o ideário neofascista que toma de assalto o Brasil.

Não se trata de coibir a liberdade, mas de preservá-la. A liberdade consiste em poder fazer o que não prejudica a outrem, diz a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Que assim seja.   


 

 

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A odisseia hipertextual de Tornatore em "Cinema Paradiso"

Por volta de 1967, quando vieram à tona as importantes contribuições de Julia Kristeva para a teoria de Mikhail Bakhtin, desenvolvidas nos livros Problemas da poética de Dostoiévski e A obra de François Rabelais, nos quais o semioticista russo explora as diferentes possibilidades de relações entre linguagens, o Cinema passou a dispor de uma nova e preciosa perspectiva de análise oriunda da semiótica: a intertextualidade.

Desde então, uma variedade de topoi passou a fazer parte do já muito expressivo repertório de termos com que se definem as conexões entre saberes: intertextualidade, transdisciplinaridade, transversalidade, rizoma etc., ou, para dar espaço ao renomado estudioso da sétima arte, Robert Stam, tradução, leitura, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração e significação, guardadas, evidentemente, particularidades estabelecidas para um mesmo processo de apropriação entre diferentes linguagens artísticas. Assim, tentando elucidar eventuais dúvidas surgidas acerca do presente artigo, começamos por destacar que utilizaremos o termo "intertextualidade" para definir o fenômeno observado por nós em "Cinema Paradiso", o aclamado filme com que o cineasta italiano Giuseppe Tornatore (1956) faz sua tocante e premiadíssima declaração de amor ao Cinema.

Para tanto, é oportuno registrar que tomamos o filme do ponto de vista da "semiótica discursiva", segundo a qual "texto" é toda unidade de análise organizada como "linguagem", a exemplo de um poema, um romance, uma tela, uma escultura, um espetáculo de dança etc. Um filme, portanto, é um "texto" (e não me refiro aqui ao script) e, como todo texto, constitui-se de duas dimensões indissociáveis: Forma e Conteúdo, ou Plano de Expressão e Plano de Conteúdo, ou, ainda, Significante e Significado, termos com que o linguista suíço Ferdinand de Saussure postulou as duas dimensões do texto verbal, dando espaço para que outras importantes contribuições surgissem, com destaque para as formulações de Hjelmslev no livro Ensaios Escolhidos.

Feitas essas considerações, lançamos mão do termo "intertextualidade" como aparece no respeitado Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Mainguineau, ou seja, a "propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos". Em palavras mais claras: a construção de um texto por meio de outros textos de uma mesma ou diferentes linguagens, sob formas mais ou menos reconhecíveis. Filmes geram filmes, por exemplo.

O caso mais comum de intertextualidade, em termos cinematográficos, se dá com o que se convencionou chamar de "metacinema", isto é, o filme que trata de filme, por exemplo, caso em que é mais adequado falar de "metalinguagem", o código reportando-se ao código, a linguagem à própria linguagem, estratégia narrativa recorrentemente utilizada pelo Cinema para se autorretratar, o que, naturalmente, pressupõe a evocação do repertório fílmico do espectador.

Mas o fenômeno da intertextualidade (ou dialogismo, segundo a teoria de Bakhtin) não raro ocorre entre textos produzidos com códigos diferentes. É o caso, por exemplo, das adaptações de um livro para o Cinema, resultando em obras de tal modo importantes que parecem ganhar o status de obras independentes: "Anna Karênina", de Tolstói, por Julian Duvivier; "Orlando", de Virgínia Woolf, por Sally Potter; "Os Assassinos", de Ernest Heminguay, por Don Siegel ou "Ricardo III", de Shakespeare, por Laurence Olivier, entre dezenas e dezenas de outros tantos filmes que se poderia citar aqui.

No entanto, há casos em que essas interlocuções ocorrem com maior nível de complexidade, não se limitando o fenômeno da intertextualidade às citações de filmes dentro de filmes, na linha do que é possível ver em "Splendor", de Ettore Scola, e no próprio "Cinema Paradiso". Neste, como pretendemos ver, se é visível a ocorrência da intertextualidade pela "citação" de filmes consagrados dentro de sua narrativa (as sequências de sessões de cinema são recorrentes), num tipo de rememoração que tem por objetivo homenagear os grandes mitos da sétima arte, reconhecíveis na sua totalidade aos olhos do cinéfilo mais atento e possuidor de um inventário cinematográfico mais amplo, dá-se a ver, no caso de "Cinema Paradiso", o diálogo do filme com uma obra-monumento da história da literatura ocidental, a Odisseia, de Homero. Antes de adentrarmos o corpus de análise aqui estabelecido, todavia, façamos uma sinopse do filme.

Numa pequena cidade da Sicília, Giancaldo, nos anos que se seguem à Segunda Guerra Mundial, vive o garoto Totó (Salvatore Cascio), aficionado pelo cinema, que se torna amigo de Alfredo (Philippe Noiret), projecionista do cinema que dá nome ao filme, a quem atazana a fim de que lhe ensine a operar o equipamento de projeção. Certo dia ocorre um incêndio no "Cinema Paradiso", de cujas chamas o garoto Totó resgata o velho amigo, que fica cego em consequência do acidente. Tendo aprendido a operar o equipamento, quando o cinema é reconstruído, agora com o nome de "Novo Cinema Paradiso", Totó é contratado para substituir Alfredo. Já adolescente, Totó (Marco Leonardi) conhece Elena (Agnese Nano), por quem vem a nutrir a sua primeira paixão. Mas os jovens amantes se desencontram, uma vez que Elena vai morar com os pais numa outra cidade. Totó parte para Roma, onde se tornará um cineasta de sucesso. Trinta anos depois, comunicado da morte de Alfredo, agora um cineasta de prestígio, ele volta a Giancaldo para participar da cerimônia de sepultamento do velho amigo. Recebe da viúva uma lembrança que lhe deixara Alfredo: um rolo de película composta de pedaços dos muitos filmes censurados à época pelo padre Adelfio (Leopoldo Trieste), responsável pelo Cinema Paradiso.

Isto feito, tentemos explorar a matéria que nos interessa, isto é, uma breve análise do filme de Giuseppe Tornatore a partir das possíveis relações de natureza intersemiótica com a obra de Homero. Antes, porém, consideramos indispensável observar que, no caso em tela, não estamos diante de qualquer tipo de adaptação do texto literário para o Cinema, como citado há pouco a propósito de algumas obras. Longe disso: no máximo é aceitável dizer que se trata de uma narrativa sutilmente plasmada na história de Ulisses, a qual ocupa o lugar de hipotexto, ou seja, o texto (Odisseia) de que se origina o hipertexto (o filme "Cinema Paradiso") que lhe serve de inspiração, animando o processo criativo do cineasta italiano.

Por oportuno, devemos considerar que existe, aqui, uma relação intersemiótica que se dá por "transmutação", definida por Robert Stam como o tipo de tradução que "consiste na interpretação dos signos verbais por um sistema de signos não verbais" ou "de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a Música, a Dança, o Cinema ou a Pintura, ou vice-versa".

São esses pontos de contato entre as duas obras que tentaremos colocar em evidência a partir de agora. Simplifiquemos, no entanto, as linhas de força de que se originam essas relações possíveis: mais importante livro depois da Bíblia, Odisseia, de Homero, é a narrativa que canta as desventuras de Ulisses, herói mítico da Guerra de Troia, em seu caminho de volta para Ítaca, a terra em que nasceu. Como observa Frederico Lourenço em prefácio à tradução da epopeia, a qual tomamos como esteio para o presente trabalho, "é na superação desesperada dos perigos, nas ameaças que surgem na luta pela sobrevivência, que nos identificamos com ele – e de uma maneira primária, inexplicável, que determina por que se tenha sempre projetado em Ulisses a essência do Homem Mediterrâneo, logo, pela cultura, do Homem Ocidental".

Esta, a razão por que são numerosos os diferentes tipos de narrativa, na Literatura, no Teatro, no Cinema etc., que dialogam com o clássico de Homero. O mito vai estar presente, em níveis e proporções variados, nas mais diversas produções, de "Indiana Jones" a livros de ficção científica; de obras clássicas, como Os Lusíadas, de Camões, a filmes emblematicamente modernos, a exemplo de "O Desprezo", de Jean-Luc Godard, ou "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, para não falar de romances transgressores, verdadeiros divisores de água na literatura ocidental, como é o caso de "Ulisses", de James Joyce.

No que diz respeito a "Cinema Paradiso", assim, é possível afirmar que, entre os muitos temas que lhe servem de leitmotiv, um nos parece inquestionável: o filme trata da viagem de volta, da lealdade ao objeto amado. Os relatos, como é comum na transmutação por tradução, como está em Robert Stam, diferem enormemente um do outro, mas se encontram naquilo que parece nos querer dizer os muitos signos, símbolos e sugestões presentes no filme de Tornatore. Insistimos: não se trata de tradução de um código para outro de um mesmo material "significante", o que implicaria numa obra nova, como ressalta Mário Alves Coutinho, em Escrever com a Câmera, reportando-se ao filme de Jean-Luc Godard, há pouco referido, "dialeticamente escrever um texto exatamente igual ao original, com as mesmíssimas nuances e detalhes, é praticamente (e teoricamente) impossível". Importante lembrar, neste sentido, o famoso conto de Jorge Luís Borges, "Pierre Menard, autor do Quixote", a partir do clássico de Cervantes.

No caso da obra de Tornatore, única e tão somente pode-se falar da presença de elementos comuns, sugestões consideráveis, claramente manipuladas, artisticamente "falsificadas", deslocadas do sentido que possuem no texto-fonte, entendendo-se por isso o que se define como hipotexto, isto é, a matéria original de que o cineasta italiano vai extrair "perfumes" que, ainda mais, emprestam ao seu processo criativo inventividade artística e força poética. Vejamos.

Como no livro de Homero, o que interessa ao cineasta Salvatore (Jacques Perrin), o Totó já adulto, com que se inicia "Cinema Paradiso", assim como a Ulisses na epopeia, não é a viagem de ida, mas o retorno, o reencontro com suas raízes: familiares, artísticas, passionais etc. Assim como ao herói homérico, o futuro de Salvatore é o seu passado, razão por que toda a narrativa da película se constrói a partir das recordações do protagonista. É a memória ameaçada, como a propósito de Ulisses se pode ver nos cantos IX a XII, a princípio com o convite dos lotófagos, e, depois, com o sugestivo episódio do canto das sereias, para não falar dos elixires de Circe, o que atormenta Salvatore quando informado da morte de Alfredo, o projecionista que ocupara na infância dele o lugar do pai ausente, que partira para a Rússia numa viagem sem volta. As diferenças, aceitáveis, como dissemos, em qualquer das muitas possibilidades de intertextualidade, são visíveis, o que não invalida a constatação dos muitos pontos de convergência que se fazem perceber entre a narrativa de Homero e o roteiro do filme de Giuseppe Tornatore.

Nessa perspectiva, pois, Salvatore assume por aproximação o papel de Ulisses, assim como, no plano da recordação, Totó assumira o papel de Telêmaco, o filho de Ulisses. Pai e filho se misturam, dando lugar a um tipo de licença poética própria do hipertexto, na mesma proporção em que Maria (Antonella Atilli, jovem/Pupella Maggio, idosa), mãe de Totó, se confunde na história de "Cinema Paradiso" com a figura de Penélope na narrativa de Homero. Não à toa, nessa perspectiva, é que a primeira vai padecer a ausência do marido, combatente na Rússia, como a segunda a ausência de Ulisses, na Guerra de Troia. Nesse sentido, portanto, é que se pode destacar uma das citações mais simbólicas do filme, quando Salvatore chega em casa, vindo de Roma para Giancaldo, a fim de participar do funeral de Alfredo, e sua mãe encontra-se tricotando, numa alusão ao manto com que Penélope adia o momento de desposar um de seus muitos pretendentes, desfazendo à noite o que tecera durante o dia. Ao se levantar para reencontrar o filho à porta de casa, a mãe de Salvatore não percebe que a agulha se agarrara ao vestido. A câmera fecha num dos mais sugestivos planos de todo o filme e vemos o trabalho se desfazer celeremente. A cena redimensiona-se, e a metáfora do esquecimento, que na Odisseia faz-se perceber no início da travessia de Ulisses, quando ele prova do fruto do lótus, em "Cinema Paradiso" vai aparecer próximo do final. Atente-se para a sequência em que, realizado o sepultamento de Alfredo, curvado sob o peso da reconstrução da memória, Salvatore diz à mãe: – "Eu pensava ser forte e ter esquecido tudo. Mas, agora, vejo que nada se apagou. Está tudo à minha frente...".

Como observa Italo Calvino, em conhecido estudo sobre o mito homérico, Ulisses/Salvatore mostra-se atento ao passado que não deve ser esquecido: "Esquecer o quê? A Guerra de Troia? O assédio? O cavalo? Não, a casa, a rota da navegação, o objetivo da viagem. A expressão que Homero usa no caso é 'esquecer o retorno'". Trinta anos depois, espaço de tempo intencionalmente maior que o de Ulisses até Ítaca (vinte anos), Salvatore retorna a Giancaldo, mas depara, como o herói do clássico grego, na provinciana cidade que abandonara, com as marcas do tempo e as mudanças que dele decorrem. O seu conflito, pode-se ver, está associado à perda de Elena, que saberá casada com Bóccia, o amigo de infância. É importante atentar para o fato de que Helena (com H) é o nome da personagem mítica que ocasiona a Guerra de Troia, a quem se devem, em flashbacks, as primeiras evocações de Ulisses. Na versão do diretor, com trinta minutos a mais que a versão levada ao cinema, Salvatore reencontra Elena, a paixão nunca superada, mas é impossível reconquistá-la, ainda que os dois se envolvam numa relação física isolada, às margens do mar, onde, insistentemente, a câmera enquadra âncoras abandonadas, cobertas de ferrugem, símbolos das raízes inexpugnáveis que prendem o homem realizado de agora ao menino sonhador e apaixonado do passado longínquo. Na fala de Salvatore a sua mãe, citada há pouco, deparamos com a referência ao Ulisses de Homero, para quem o futuro sonhado é, mesmo, o seu passado. Ou melhor: a sua restauração. Referindo-se a Ulisses, diz Calvino: "Compreende-se que um dia, por despeito, o grande Ulisses tenha se tornado aquele da Última (sic) viagem: para o qual o futuro não é de modo nenhum o passado, mas a Realização de uma Profecia – isto é, de uma verdadeira Utopia". Na quase totalidade dos mitos, sabe-se, o desejo da conquista só é possível pela recordação de um passado, como o considera Claude Lévi-Strauss acerca do mito. Sob este aspecto, aliás, é necessário frisar que muitos outros elementos dispersos ao longo da narrativa de "Cinema Paradiso" ganham relevância numa perspectiva de leitura intersemiótica: no seu retorno à Ítaca, Ulisses é reconhecido por Euricléia pela cicatriz que tem na coxa, fruto de uma caçada na infância. Mas, antes, no canto XVII, pelo cão Argos, único ser de quem é objeto de acolhida imediata e espontânea. Numa sequência do filme, quando Totó, concluído o serviço militar obrigatório em Roma, chega a Giancaldo, num plano geral em que se evidenciam a sua solidão e a indiferença por sua chegada, apenas um cão de rua se aproxima dele, e, como o Argos, na Odisseia, balança a calda, a quem Totó toma nos braços num gesto de carinho que é, ao mesmo tempo, de gratidão. Num contre-plongée (câmera com angulação de baixo) estilizado e carregado de sentidos, o olhar do próprio Totó (câmera subjetiva) volta-se para o novo projecionista, indiferente à sua presença. Embora jovem, no que se pode ver uma referência ao Ulisses, Totó traz no corpo as marcas dos maus-tratos no quartel: a barba por fazer, a magreza do corpo em alguma medida submetido às peripécias do tempo, parecem aludir ao Ulisses maltrapilho da narrativa de Homero. Ocorre aqui o que é comum nas relações intertextuais, "o conhecimento de um texto, ou leitura de uma manifestação de 'linguagem' possibilita o acesso a outras, dadas as analogias passíveis de ser, entre elas, estabelecidas", conforme assinala Sandra Ramalho de Oliveira, no livro Ensaios em Torno da Arte. Nessa linha, pois, é que apoiamos a presente leitura em bases da Semiótica, segundo a qual se entende por linguagem o conjunto ou sistema de signos dispostos segundo regras e capaz de comunicar significados. Uma das propriedades fundamentais de toda linguagem, segundo A. J. Greimas e J. Courtés, é a capacidade de falar de si mesma. Na Odisseia, assim como no "Cinema Paradiso", deparamos com uma narrativa dentro de outra narrativa. Naquela, entre os muitos narradores de histórias, Helena e Menelau, por exemplo, tem papel relevante a figura do cego Tirésias, assim como, igualmente cego depois do incêndio do cinema, vamos encontrar o projecionista Alfredo, detentor de conhecimento das aventuras dos heróis do cinema (John Ford, Visconti, De Sica, Chaplin, Rossellini, Vadim etc.), narrando suas histórias. Ao contar essas aventuras, Alfredo confunde o jovem Totó, e já não sabemos se o que lhe diz é a "fala" de Tyrone Power, John Wayne etc. ou a sua própria fala. Nesse intrincado relato, verdadeiro jogo de faz de conta (o ilusionismo cinematográfico é um pacto a ser firmado com o espectador), Totó ouve a uma dada altura Alfredo lhe contar a história de um soldado apaixonado e não correspondido que se submete a uma espera sem fim até que a amada, no espaço de cem intermináveis dias, sinalize com a sonhada acolhida. Na história, o soldado espera noventa e nove dias, mas abandona seu posto no centésimo dia sem obter a resposta: – "E não me pergunte por quê!", diz-lhe Alfredo. A situação, reverberando a ocorrência da narrativa dentro da narrativa, vai se repetir com o próprio Totó, a quem Elena, em princípio, não corresponde o amor. A sequência em que ele aguarda o sinal de Elena, de quem vê apenas a silhueta no alto da janela, é das mais bonitas do filme, seduzindo o espectador como aos seguidores de Ulisses o canto das sereias.

Mas, se são tantas e tão sugestivas as analogias estabelecidas por Tornatore, uma, sobremaneira, explicita a origem de sua inspiração: pela metade do filme, agora substituindo Alfredo como projecionista do "Novo Cinema Paradiso", Totó, rapaz feito, projeta para os pescadores, sugestivamente acomodados em barcos ancorados na praia, Ulisses, na bela adaptação da Odisseia realizada para o cinema por Mario Camerini, de 1954, com Kirk Douglas e Silvana Magnano nos papeis principais. A cena que também o espectador de "Cinema Paradiso" passa a assistir, em tela cheia, é das mais conhecidas do livro de Homero: aquela em que Ulisses enfrenta o ciclope Polifemo e é quase eliminado por ele. Aqui vai uma digressão: Também no clássico de Stanley Kubrick, "2001: Uma odisseia no espaço", conforme afirma Michel Ciment, em Conversas com Kubrick (Cosac & Naify, 2013): "A nave Discovery (descoberta) o leva, portanto, a uma revelação do seu destino, e se o filme de Kubrick se aproxima dos mitos homéricos que o título sugere (combate do navegador Bowman, literalmente arqueiro, como Ulisses, com o computador ciclope que ele vence trapaceando), ele representa, a exemplo da época grega, uma exploração interior". No nosso caso, já nos reportamos à cena em que Salvatore, dirigindo-se à mãe, fala de sua descoberta ao voltar à Giancaldo e deparar com seu passado. Na linha do que afirma Ciment, a propósito do filme de Kubrick, "toda verdadeira odisseia é uma viagem no mundo interior que se torna uma descoberta de si mesmo". Com Salvatore vai se dar o mesmo, e a metáfora do ciclope serve, no filme de Tornatore, para simbolizar as dificuldades pelas quais o herói teve de passar. Como numa ocorrência de mise en abyme, expressão criada por André Gide para definir a narrativa em abismo, isto é, a narrativa que traz dentro de si outra(as) narrativa(as), vê-se, agora de forma não apenas sugerida, a dialógica presença da narrativa de Homero no filme de Tornatore. Há, portanto, como em incontáveis outros casos conhecidos, uma tradução em mesma linguagem, o filme dentro do filme, textos construídos a partir de um mesmo código, ao mesmo tempo em que, também eles, partem de uma outra linguagem (a linguagem literária) e se convertem em linguagem específica, a linguagem do Cinema.

Do ponto de vista estrutural, a exemplo do que ocorre na epopeia de Homero, no hipertexto cinematográfico de Giuseppe Tornatore, atam-se as duas temporalidades, passado/futuro, as quais, no filme, presentificam-se num dos mais belos raccords (união temporária ou espacial entre planos) já realizados no cinema, quando a cena da partida do jovem Totó, na estação de trem, transita poeticamente para aquela em que se vê o avião que o traz de volta, cineasta consagrado, a sua "Ítaca", trinta anos depois.

No final, uma ironia que mais ainda acrescenta ao filme em termos intersemióticos: à maneira de Hitchcock, Tornatore "assina" sua obra ao aparecer numa tomada rápida, manuseando na diegese fílmica, a ficção propriamente dita, o projetor através do qual Salvatore assistirá à montagem dos pedaços de filmes que Alfredo lhe deixara de herança – as cenas de beijos ou levemente sensuais que o padre censurara. A autoria da Odisseia é atribuída a um poeta cego que não se pode afirmar ter existido. Também cego, Alfredo transmite pela "voz alheia" uma pequena história do cinema.

Por último, é relevante lembrar que a obra de Homero, como dissemos, tem inspirado, através dos tempos, poetas, dramaturgos, cineastas, artistas, músicos etc., empenhados em manter viva a força dessa narrativa incontornável, a exemplo do que fizeram, para citar alguns autores e obras, James Joyce (Ulisses), Christina Stead (For love alone), os irmãos Coen ("E aí, meu irmão, cadê você?"), Stanley Kubrick ("2001: uma odisseia no espaço") ou mesmo a banda de rock australiana Powderfinger (Odyssey number five).

Essas obras, em diversos códigos e diferentes linguagens, em sua totalidade evocam uma jornada grandiosa. Tornatore soma-se a esses todos com a realização da mais bonita declaração de amor ao Cinema.

 

*Alder Teixeira é Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Artes pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É autor, entre outros, de "Ingmar Bergman: estratégias narrativas".

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Pastora das Nuvens

Se o ano de 2024, como escrevi neste espaço, deve ser exaustivamente lembrado como o ano dos sessenta anos de nascimento do mais abominável acontecimento político verificado neste país, refiro-me ao golpe de Estado de 1964, por outro lado é marco da morte de uma das mais belas brasileiras, Cecília Meireles, ocorrida também há exatos sessenta anos.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Estreou na literatura em 1919, com o livro Espectros, a tal ponto distante de seu futuro estilo, que a própria Cecília eliminou de sua bibliografia, descartando-o como obra de somenos importância. A ele se seguiriam Nunca mais e Poema dos poemas (1923), finalmente libertos das influências parnasianas visíveis no livro de estreia.

Nos anos seguintes, viriam Criança, meu amor (1924) e Baladas para El Rei (1925), agora presos não ao parnasianismo de primeira hora, mas assumidamente inspirados na estética simbolista.

Em 19 de novembro de 1935, casada com o artista plástico Fernando Correia Dias, Cecília viveria momento trágico em sua vida pessoal: Maria Fernanda (conhecida atriz falecida há dois anos), filha caçula, chamaria a mãe para mostrar-lhe o corpo do pai, enforcado na sala de casa. Começaria uma fase extremamente difícil na vida da escritora, a quem caberia, a partir de então, arcar com a criação das filhas do casal.

A primeira grande obra de Cecília Meireles, Viagem, viria a público quatro anos após a morte do marido, inaugurando uma trajetória artística que ocuparia a mais alta posição entre as poetas brasileiras: "Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/Sou poeta", canta ela em "Motivo", um de seus poemas mais celebrados.

Além deste, dois outros poemas do livro entrariam para o rol das grandes realizações do cancioneiro popular: "Em que espelho ficou perdida/a minha face?", indaga, em "Retrato", e, no desconcertante "Guitarra", faz uma das mais belas afirmações poéticas de que se tem notícia entre os escritores brasileiros: "A maior pena que eu tenho,/punhal de prata,/não é de me ver morrendo,/mas de saber quem me mata".

Como toda mulher, num país historicamente misógino, nem mesmo a genialidade artística de Cecília Meireles seria bastante para dar à escritora o reconhecimento merecido. Um dos papas do Modernismo, em 1952, Oswald de Andrade não mediria palavras para desmerecê-la: "A senhora Cecília Meireles é uma espécie de Morro de Santo Antônio, que atravanca o livre tráfego da poesia". A literatura tem também seus momentos rasteiros.

Nada que impedisse Cecília, contudo, de continuar sua carreira irretocável, que atingiria seu ponto culminante, por sinal, dois anos depois do comentário ferino de Oswald de Andrade: Romanceiro da Inconfidência seria a consagração definitiva. Muitos outros livros viriam.

Deixando uma obra inquestionável por suas qualidades formais e de conteúdo, como cronista, ensaísta e poeta, sem falar na sua luta em defesa de uma educação para todos, inspirada nas contribuições de Fernando Azevedo, Cecília Benevides de Carvalho Meireles morreria de câncer no entardecer de 9 de novembro de 1964, comovendo, de ponta a ponta, o Brasil, àquela altura submetido aos horrores do golpe militar de 31 de março do mesmo ano.

Poeta pelos caminhos da terra, no dizer sensível de Antônio Carlos Secchin, e pelas asas do ar: não por acaso considerava-se "pastora das nuvens". E o foi, na grandeza de sua arte --- e beleza incomensurável da mulher.