segunda-feira, 23 de abril de 2012

O amor em crise

Semana passada, escrevi aqui sobre o narcisismo que parece tomar conta da sociedade contemporânea. A crônica, que dialogava com o filme De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, ensejou um sem-número de mensagens sobre o tema. Todas, com o mesmo ponto de vista do texto, tecem comentários sobre o culto do corpo como uma verdadeira obsessão das pessoas na atualidade. Por coincidência, no fim de semana assisto ao filme Time, o Amor Contra a Passagem do Tempo, do cineasta sul-coreano Kim Ki-Duk, cuja tessitura dramática explora, entre outros temas já  recorrentes na obra do autor, o que se poderia definir como a crise do amor na modernidade. O enredo é o seguinte:
 
Uma jovem, perdida de amores pelo namorado, é portadora de um ciúme neurótico e vê concorrentes em toda parte. Dominada pela obsessão de que o namorado pudesse enjoar de sua aparência física, decide sumir da vida dele por um longo período e submeter-se a uma cirurgia plástica que a transforme numa 'outra' pessoa, na esperança de que venha, assim, a manter aceso o desejo do homem por ela e a livrar-se do risco de ser preterida por outra mulher. Seis meses depois da cirurgia, quando enfim pode retomar a sua vida normal (sem a necessidade de usar máscara, por exemplo) volta a procurar o namorado com uma outra identidade. Ao constatar que o rapaz continua amando a mulher que fora antes, assumindo-se incapaz de esquecê-la e começar novas relações, a jovem entra em crise e termina por enlouquecer. Um roteiro instigante e original.
 
Quando, enfim, o rapaz descobre que a namorada de agora é a mesma de antes, com uma aparência totalmente diferente da anterior, não se conforma com o fato e rompe o relacionamento, entregando-se a uma crise existencial não menos complicada que a da jovem, com quem vinha tentando recomeçar a vida. É aí que o cineasta levanta curiosas reflexões sobre o amor e o que efetivamente é, no outro, o real objeto desse sentimento a um tempo tão simples e tão complexo. Em verdade, ama-se o que quando se ama o outro? A imagem ou o conteúdo que essa imagem representa? A ideia ou o seu simulacro de que nos falou Platão no Mito da Caverna?
 
O conflito se complica quando o rapaz, perdido em meio ao oceano de estupidez e histeria que vai tragando o casal, procura o mesmo cirurgião plástico que transformara a moça a fim de  --  também ele  --, construir uma outra identidade. É o momento frágil da intriga, pois o filme de Kim Ki-Duk passa a trabalhar elementos dramáticos demasiado óbvios. A moça, como esperado até mesmo pelo espectador de sensibilidade estética menos apurada, não saberá lidar com a situação, e amar o namorado que se apresenta a ela, agora, com outras feições. O final é, pois, também previsível e o filme perde muito em qualidade. Sem reeditar o melhor do seu talento, contudo, a exemplo do que fizera em Folego, para citar apenas um dos filmes anteriores, Kim Ki-Duk continua sendo um cineasta no mínimo inquietante. Vale conferir.
 
 
 
 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O narcisismo de hoje

O restaurante literalmente parou para ver a entrada triunfante de um casal. Eram, de fato, belíssimos os dois. Bem vestidos e sarados, na rigorosa acepção do termo, sentaram-se bem próximo a uma parede de espelhos, ela de frente. Como estivéssemos à mesa vizinha, inevitável reparar na postura de ambos, o jeito com que ela, sobremaneira, era cuidadosa em arrumar o cabelo, retocar com a unha o batom. O olhar, sem discrição, no espelho a sua frente. Vez e outra, sentindo a repercussão de sua presença entre as pessoas que estavam ali. "A mulher se embeleza para as outras mulheres!", a assertiva machista se fazendo ouvir...
 
Natural, a conversa, por instante, passou a girar em torno da vaidade humana. Hoje, afirmou alguém, 'ama-se doentemente a si próprio, mais que ao outro, mesmo entre os casais!' A reflexão, dita assim, ao sabor de uma conversa de homens, pareceu-me precipitada. Fiquei pensando em que circunstância a vira em uma obra de arte, um livro, um filme, coisa que o valha. No caminho, de volta à casa, caiu-me a ficha: estava no último filme de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados, que, entre outros, explora o tema suscitado pela afirmação do amigo, no restaurante. Sem sono, lanço mão do DVD e faço o filme desfilar na tevê.
 
É a história de um casal belíssimo, não à toa interpretado por Tom Cruise e Nicole Kidman. Ele é um médico bem-sucedido, marido dedicado à mulher, deslumbrante ao lado de ser uma mãe não menos dedicada. O casal certinho, desses que, à distância, parece a todos o casal modelo. A atrapalhar a vida da família, que ninguém é perfeito, o amor que cada um nutre pela auto-imagem. Lembrei da afirmação do amigo, 'ama-se mais a si que ao outro!' O fato é que, da imagem autocentrada à necessidade de afirmar-se na relação é um pulo, mesmo que o expediente não seja dos mais honestos. Ela, Alice é como se chama, empenha-se em despertar no marido o ciúme, a ideia obcecada de que pode perdê-la.
 
Como relacionar-se com o outro, mesmo amorosamente, é sempre um jogo, a resposta é imediata e ele passa a buscar experiências fora de casa, a necessidade de se sentir desejado. O filme ganha densidade dramática, a vida se faz respresentar na tela do cinema. A do casal pouco a pouco se desmancha por força do narcisismo que o move. 'O casal do restaurante'. Kubrick, gênio que é (morreria pouco depois de rodar De Olhos Bem Fechados) trabalha com fina sensibilidade o conflito entre Bill e Alice, a câmera explorando os detalhes: Numa cena extremamente bem dirigida, Kidman (num momento sublime de sua carreira) olha atentamente para o espelho enquanto transa com o marido. A imagem refletida, como no mito grego.
 
Só então atentamos para a importância de um detalhe da cena de abertura do filme, mesmo antes de os créditos serem exibidos: diante de um espelho imenso, Kidman, enquanto se arruma para ir a um baile de grã-finos, deixa o vestido cair, e, nua e bela, deslumbra-se diante da imagem refletida no espelho. Dando-se algum desconto, o narcisismo de hoje, dos corpos sarados e das academias.
 
 
 
 

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A bela utopia

Ainda lembro: o Cine Alvorada, localizado no quadrilátero que hoje compõe o grande centro da cidade, ficou lotado. Em algumas sessões, as filas arrodeavam o quarteirão. Eles já eram um fenômeno mundial e, quase meninos, sabíamos de cor as letras em inglês de alguns dos seus principais sucessos. As meninas, então, pareciam enlouquecidas diante da possibilidade de ver (a tevê não chegara à cidade) a imagem daqueles quatro rapazes que, da noite para o dia, haviam conquistado o mundo com seus instrumentos mágicos e suas cabeleiras esvoaçantes. Os reis do iê-iê-iê, era como se chamava o filme. O ano, não lembro com precisão, algo em torno de 1967, 68... The Beatles, os garotos de Liverpool, já eram amados mesmo na provinciana e pequenina Iguatu de tempos que já vão longe.

Esta semana, 'meio' que garimpando preciosidades do cinema, consegui em DVD o filme inesquecível de Richard Lester. Revi-o, em princípio, com os olhos do saudosista, que traz no peito as recordações de uma adolescência como não se vive mais. Em seguida, agora com os olhos do estudioso de cinema, pude reparar na importância da obra em termos de transgressões estéticas levadas a efeito por um cineasta criativo e enormemente talentoso. Há em Os reis do iê-iê-iê experimentos de linguagem que viriam tomar conta do cinema e da tevê: os jump cut à maneira de Godard, a câmera nervosa, com que o diretor do filme consegue obedecer o ritmo excitado e histérico dos fãs, tudo, tudo no filme permanece atual, dando-nos, aos que éramos pouco mais que crianças à época do seu lançamento, uma emoção sem nome. Milagres da sétima arte.

O filme começa com uma sequência magistral, os rapazes de Liverpool em meio a uma multidão delirante numa estação de trem. A música-tema, A Hard Day's Night, explodindo aqui e ali, entra pelos ouvidos do espectador para rapidamente chegar à alma. A sensação é que voltamos no tempo, e outra vez sinto-me o adolescente de 12, 13 anos do velho Cine Alvorada. Naquela que é, talvez, a mais bela cena do filme, a câmera baixa acompanha a descida enfurecida dos quatro jovens por uma escada de incêndio. Pura arte de filmar.

Os acordes atrevidos de George Harrison, com sua guitarra de doze cordas, a uma dada altura do filme parecem tomar conta de nós. O tempo pára e, em passe de mágica, voltamos mesmo a um mundo em que ainda se podia sonhar: "Can`t Buy Me Love", "I Should Have Known Better", "All My Loving", "She Loves You", "I Wanna Be Your Man"... Canções que ressurgem em nossos corações como se ainda tivéssemos a mesma energia e a mesma coragem de peitar o desconhecido, num tempo em que as palavras de ordem eram amor e paz. Os beatles vestiam-se iguais, em algumas passagens quase não se podem distinguir seus rostos. Pouco importa, ali estão todos os John, George, Paul e Ringo que existem em cada coração que ama.


Numa sequência antológica, os quatro jovens correm pelas ruas de Londres, livres e soltos, como garotos inocentes e puros. A uma dada altura, a afirmação: - "Sou um enganador!", diz Ringo a um repórter que lhe perguntara se são rapazes revoltados ou roqueiros. Enganadores, sim, porque nos faziam acreditar que "o dinheiro não pode comprar amor" (Money can't buy love!), como está numa das mais belas canções do filme.

















quinta-feira, 5 de abril de 2012

É o conceito de envelhecer que envelhece

Como estivesse aniversariando, amiga telefona para me cumprimentar e termina o contato com a afirmação curiosa: - "Outro dia, o vi atravessando uma rua e pude reparar no quanto você está envelhecendo bem!" Desligo o celular e fico matutando sobre a afirmação ambígua. Envelhecer bem, a uma dada altura de nossas vidas, pode significar que estamos envelhecendo muito -- e celeremente. Uma outra chama a atenção para o fato de que Chico Buarque está amando uma moça quarenta e alguns anos a menos que ele. Nada mal, como se pode ver, quando se é Chico Buarque de Holanda (risos), o que não é um status fácil de se conquistar, convenhamos. Brincadeira à parte, vamos ao que interessa.

O fato é que a paixão do gênio pela cantora Thaís Gulin rendeu para os amantes de sua música um belo blues, Essa Pequena, com que expressa o enlevo de entregar-se outra vez à melhor das emoções: "Meu tempo é curto, o tempo dela sobra / Meu cabelo é cinza o dela é cor de abóbora / Temo que não dure muito a nossa novela, mas / Eu sou tão feliz com ela". Se não estamos, de fato, diante do melhor Chico Buarque, a letra não desmerece o seu criador. Antes pelo contrário, na medida em que a poesia é doce e simples quanto o coração do 'menino' apaixonado.

Por sinal, segundo e-mail enviado pela amiga, o affair do artista com a pequena ruiva ainda rendeu uma crônica excepcional de Rosiska Darcy de Oliveira, em que a socióloga levanta reflexões bastante interessantes sobre o que significa envelhecer. Tomo a liberdade de reproduzir alguns trechos, por imperdíveis: - "Chico Buarque vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue o seu caminho e tomara que ele continue cantando "eu sou tão feliz com ela" sem encontrar resposta ao "que será que dá dentro da gente que não devia".

Acho que aí está o segredo para envelhecer bem, agora sem a ambiguidade dos cumprimentos de minha amiga. Sob este aspecto, aliás, é que vem da cronista a frase lapidar: - "O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas". Envelhecer, que a tantos parece apavorar, já na fronteira dos 40, nas mulheres, dos 50, nos homens, não passa de uma tolice, posto que é coisa inevitável na vida de todos nós. O segredo, se segredo existe, está em lidar com tranquilidade com as mudanças do corpo, impedindo-as, a todo custo, que possam atingir a mente, nicho em que repousam as eternas novidades da vida. Não fosse a imagem no espelho, como diz Rosiska, os netos que nascem e os amigos que morrem, não fosse o tempo "um senhor tão bonito como a cara do meu filho", nas palavras de Caetano (outro a quem o envelhecimento só embelezou), quem por si mesmo se perceberia envelhecer?

Para o bem ou para o mal, assim, é que preferi tomar por elogio a constatação de minha amiga. Fecho com Rosiska: "É o conceito de velhice que envelhece" e "são cada vez menores as fronteiras que separam as fases da vida". Que bom!