sexta-feira, 29 de junho de 2018

Sobre fantasmas e heróis

Durante o jogo do Brasil contra a Sérvia, tão-logo o escrete canarinho abre o placar, ouço a enfática afirmação de uma amiga (muito querida!): --- "O brasileiro é assim mesmo, desmerece os seus heróis!" Referia-se às chacotas desferidas contra o jogador Neymar, objeto da criatividade popular sobre a reconhecida dificuldade do nosso meia no confronto físico com adversários, do qual, frequentes vezes, termina no chão. Convenhamos, de forma um tanto teatral. Anedotário à parte, ouvi aquilo e pensei com meus botões: --- "Pobre de um povo que precisa de um herói!", frase atribuída a ninguém menos que Beltolt Brecht, o inigualável teatrólogo e poeta alemão. 

Lembro que, algum tempo antes, ouvira estarrecido comentário igualmente ufanista de Pedro Bial, referindo-se aos participantes do reality show Big Brother, na rede Globo de Televisão: --- "Agora, vamos até à casa, ouvir nossos heróis!" E assim, perdendo belas oportunidades de ficar calados, vamos expondo o nosso nacionalismo piegas e tolo, indiferentes ao que se passa a cada minuto nos bastidores enlameados de algumas de nossas maiores instituições. O STF, para ficar num exemplo. 

Em Flores Raras, o belíssimo filme de Bruno Barreto sobre a arquiteta brasileira Lota de Macedo e a poetisa americana Elizabeth Bishop, brilhantemente interpretadas por Glória Pires e Miranda Otto, há uma sequência emblemática sobre a nossa indiferença aos grandes problemas nacionais, aqueles que, na perspectiva brechtiana, talvez estivessem a exigir dos brasileiros a existência de verdadeiros heróis: Bishop escuta pelo rádio a notícia do golpe militar de 1964. Tomada de espanto, dirige-se à janela e vê rapazes jogando futebol nas areias de Copacabana. É quando demonstra o seu estranhamento de forma indignada: --- "Que país é este, onde se destitui um presidente e as pessoas vão à praia jogar futebol?!" O que não diria Bishop diante das ruas vestidas de amarelo por um golpe sujo como o de 2016?

É natural que o Brasil viva um clima de Copa do Mundo, kit completo; é natural que o país vista-se de verde e amarelo; é natural que bandeiras tremulem nas ruas e nos edifícios; que cantemos, tocados de patriotismo, o hino nacional. Mas que isso não cegue de uma vez os nossos olhos já tão embotados... Vou deste para outro assunto.

Em tempo: Chega às lojas de livros e DVD's o imperdível Manifesto, o filme do artista plástico alemão Julian Rosefeldt, baseado em instalação de mesmo nome apresentada em 2015 em diferentes países da Europa. Protagonizada pela australiana Cate Blanchet, que interpreta com irretocável competência nada menos que 13 papeis, o filme resulta de uma apurada colagem de diferentes manifestos políticos e artísticos, indo de Karl Marx a Lars von Trier e Jim Jarmusch. Construído numa perspectiva narrativa não convencional e não progressiva, Manifesto mostra o poder corrosivo da arte a partir do que professam as cartilhas de diversos movimentos de vanguarda, com destaque para o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e a Pop Art. Sobre este imperdível Manifesto, voltaremos a falar depois. Brasiiiil! 

 

   

 


 

sexta-feira, 22 de junho de 2018

À Macaco Simão

Eis que o Brasil venceu, ufa! Não convenceu, convenhamos, porque é muito pouco vencer a Costa Rica por dois gols nos descontos. E, mais importante, não jogou bem. A não ser para os comentaristas da Globo, e, como desde que me entendo, para o ufanismo verde-amarelo, que de futebol e política, no frigir dos ovos, entende muito pouco.

Quanto a Neymar, ah!, continua devendo à seleção brasileira uma apresentação de encher os olhos. Que saudade deve-se sentir de Pelé, Jair, Tostão, Romário, Zico, Sócrates...

Mas, venceu, e, para o país "que você quer" tudo há de valer a pena, se a alma não for pequena, que me vem à cabeça o verso de Pessoa: "O Mito é o nada que é tudo!" Vamos de Neymar, que, entre uma queda e outra, está o moço ladeado por Jesus, o Gabriel, e isso, quem sabe?, vai fazer a diferença!

De uma coisa, no entanto, estou certo: vestir a camisa amarela, repara bem, não ficou sem graça? Sei lá, vem um não sei quê de oportunismo, mistura de Praça Portugal com Avenida Paulista. Falta, é verdade, o "pato", mas quem vai pagar por ele, se não formos nós, os condenados de sempre? E por falar nisso, até que enfim, ou não, como diria Caetano?, resolveram examinar os "documentos" da turma de São Paulo... É, estou falando dele, o Alckmin, que, além de ter gosto de picolé de chuchu, terá agora de explicar os roubos do Rodoanel. Quem não sabia?

E o Moro? Gente vocês não acham que o rapaz vem a cada dia pertendo o brilho, murchando aquela cara de americano tupiniquim que a mim nunca enganou? Preste tento, como dizia uma amiga, que o cara está se desconstruindo como sorvete ao sol. Confere! Ou os EUA querem rescindir o contrato ou o rapaz parece ter finalmente percebido que entrou numa furada! É. Vira e mexe, tem recebido uma vaia, mesmo quando a cobertura "imparcial" da nossa imprensa faz que não vê e prefere mostrar tulipas e pães... Que belos editoriais esses caras escrevem: "Por que 62% dos jovens brasileiros querem morar fora do país".. viram na Folha? Quanta falta de imaginação!

Sim. Tiraram o Lula, mas, quando viram que o poder de transferir voto do homem é grande, tipo ir para o segundo turno e ganhar a eleição, agora estão enlouquecidos com a possibilidade de um poste não ser tão poste assim. Absolvida Gleisi Hoffmann por unanimidade pelo STF (além de bonita a gata fala bem "pra c...!), a imprensa marron esqueceu Haddad, Jaques Wagner e, cabotina que é, está que nem o heroi shakespeariano: "Ser ou não ser, eis a questão!" Vou de Ciro ou de Bolsonaro? Não será melhor de Marina? E Meirelles? Não, este não, que a economia foi para o ralo...

E esses caras-pálidas, na maior sem cerimônia, ainda acham que tudo foi culpa da Dilma. Por falar nisso, aonde anda Aécio? Sim, eu sei, o "pó-sudo" está liderando as pesquisas de opinião para o Senado em Minas Gerais, é verdade. Mas, fala sério, quem tem coragem de botar no vidro do carro o "Não tenho culpa, votei no Aécio"?

E eu que pretendia falar só de futebol... Que venha a Sérvia, então... Brasillllll!   

 

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Prece do Brasileiro

O Brasil estreia neste domingo 17, contra a Suiça. Mas, na contramão do que já fez história, em lugar do entusiasmo de uma "pátria de chuteiras", na feliz metáfora de Nelson Rodrigues, paira no ar um desânimo que parece tomar conta de todos os brasileiros. E não é, como ocorreu em outras copas do mundo, 1966, por exemplo, pela descrença nas possibilidades concretas da seleção canarinho. Não, que poucas vezes fomos à disputa com um time tão bem estruturado e com tantos grandes valores individuais como agora. A que se deve, então?

O desânimo, estou certo, é reflexo de que, na peia, é verdade, estamos aprendendo a entender como tem funcionado este País, e a sonhar com o essencial em lugar do supérfluo. Ao invés de um troféu (e que ele venha, com milagre ou sem, como quis Drummond), capaz de embotar nossa atenção para o que é fundamental neste instante, o brasileiro dá sinais de, finalmente, ter despertado para o que realmente importa: educação, saúde, condições de vida digna para todos; justiça sem dois pesos e duas medidas, políticos comprometidos com os interesses mais legítimos do povo, tomando a palavra, aqui, pelo que ela é deve traduzir na perspectiva da gigantesca maioria dos filhos desta terra, dos que, desde o golpe de 2016, voltam a engordar revoltantemente os índices de miséria, as estatísticas daqueles que vivem a baixo da linha de pobreza.

E já que citei o poeta de Minas, explico-me por que o fiz.

Às vésperas da Copa do Mundo de 1970, estava o Brasil no México pouco antes da estreia, Carlos Drummond de Andrade escreve e pública Prece do Brasileiro, um poema antológico, cujo substrato temático ironiza a nossa vocação para o sentimentalismo piegas e nossa histórica incapacidade de pensar criticamente a realidade. De não ter, noutras palavras, olhos capazes de enxergar as nossas mazelas, os nossos infortúnios e, que me perdoem a deselegância, as sacanagens que têm feito ao nosso país.

"Meu Deus, / só me lembro de vós para pedir, / mas de qualquer modo é uma lembrança. / Desculpai vosso filho que se veste / de humildade e esperança / e vos suplica: Olhai para o Nordeste / onde há fome, Senhor, e desespero / rodando nas estradas / entre esqueletos de animais"., é como abre o poema Drummond, para prosseguir na prece tresloucada:

"Em Iguatu, Parambu, Baturité, / Tauá / (vogais tão fortes não chegam até vós?) / vede as espectrais / procissões de braços estendidos / assaltos, sobressaltos, armazéns / arrombados e --- o que é pior --- não tinham nada".

E vai o eu-lírico pedindo, pedindo, sem no entanto tirar os olhos de Guadalajara, cidade mexicana em que atuariam as nossas feras:

"Meu coração, agora, tá no México / batendo pelos músculos de Gérson / a unha do Pelé, / a cuca do Zagalo, a calma do Leão / e tudo mais que liga o meu país / a uma bola no campo e uma taça de ouro".

Àquela altura, escrevia o Brasil uma de sua páginas mais aterradoras, em plena Ditadura militar, torturas inomináveis, exílios forçados, corrupção desabrida só ignorada por força do discurso autoritário reinante e pelo temor das ameaças de toda ordem. Mas o Brasil, santa ingenuidade, entrava em campo para enfrentar a então Tchecoslováquia, que venceria com o escore humilhante de 4 a 1, e era isso o que, senso comum, parecia verdadeiramente importar!

Na mais feliz das astúcias poéticas, Drummond refere o ditador, o presidente Médici, com a genialidade do grande poeta:

"Comigo é na macia, no veludo / lã / e, matreiro, rogo, não /ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre) / mas ao Deus que Bandeira, com carinho / botou em verso: 'meu Jesus Cristinho'."

Neste domingo, dizia eu, o Brasil entra em campo. Se não vivemos a Ditadura aberta, escancarada, para me valer da expressão do jornalista famoso, contados 48 anos desde a Copa de 70, é que a temos mal disfarçada sob a capa preta de uma Justiça tendenciosa, a sonhar, entre envergonhada e cínica, para a volta aos tempos sombrios, com que, aliás, esteve àquela época comprometida, descaradamente.

Que o Brasil vença a Suiça, que a esmague, se possível, e que isso, por milagre ou sem ele, ao contrário do que o futebol parece ter feito sempre, sirva para abrir nossos olhos às vésperas da escolha com que decidiremos nosso real destino... "Do contrário / ficará a Nação tão malincônica, / tão roubada em seu sonho e seu ardor / que nem sei como feche a minha crônica".

 

 

 

 

 

 

Memória e silêncio no cinema chileno

Cada vez mais as fronteiras entre as diferentes linguagens têm se mostrado devassáveis. Esse campo epistemológico, já há muito examinado por grandes estudiosos, na linha das contribuições de nomes importantes como os de Umberto Eco e Susanne Lange, para ficar em dois autores que curiosamente se colocam tão próximos e tão distantes, mas que são em igual medida incontornáveis no território do que se tem produzido sobre linguagem, vem despertando desde algum tempo o interesse do professor e eminente pesquisador Régis Frota, de que resultaram livros muito interessantes em torno das traduções intersemióticas, a exemplo de literatura/cinema, direito/cinema e arquitetura/cinema.

O tema, por si só, é muitíssimo sedutor, uma vez que o cinema trabalha no âmago da linguagem, constituindo, como já nos advertiu Julio Plaza, em livro obrigatório, o mais perfeito modelo das inter-relações semióticas desde suas bases estéticas, que exploram, é sabido, o cruzamento de diferentes códigos numa perspectiva de tempo/espaço que é mesmo o existe nele de mais específico: a montagem.

É pela montagem, pois, que o cinema condiciona o espectador a preencher vazios, silêncios, fragmentos de memória, estabelecendo com ele, o espectador, um tipo de parceria sem a qual nenhuma narrativa se sustenta, e a comunicação se tornará impossível em termos satisfatórios.

Não é muito lembrar o que teorizou sobre isso o cineasta russo Sergei Eisenstein em suas Reflexões de um cineasta: "A imagem inventada pelo autor torna-se a própria substância da imagem do espectador... Fabricada por mim, espectador, nascida em mim. Não somente obra do autor, mas obra minha como espectador, espectador que também é criador".

Digo isso para ressaltar o empenho bem sucedido de Régis Frota em parte significativa de sua vasta produção. Agora, vem a público com um livro diferente, sem abadonar, no entanto, sua visada atenta e habilidosa acerca das traduções entre diferentes linguagens, objeto epistemológico, como já disse, tão caro ao estudioso cearense, bem na linha do que faz quando examina Inocência, de Visconde de Taunay, levado para o cinema pelas mãos sensíveis de Walter Lima Jr., ou São Bernardo, de Graciliano Ramos, com a direção "segura" de Leon Hirszmann, dois dos muitos filmes sobre os quais se debruça Régis Frota em sua mais recente incursão no campo cinematográfico.

Mas o livro Memória e Silêncio no Cinema Chileno, como é fácil deduzir a partir do seu belo título, tem como escopo, mesmo, é o cinema do Chile, que Régis, pela paixão com que encara todos os desafios relacionados à sétima arte, passou a conhecer como poucos. Desse modo, não bastassem as numerosas e inquestionáveis qualidades da pesquisa, presta o autor um serviço sem precedentes à ensaística cinematográfica brasileira, preechendo, com mérito que devemos aplaudir, uma lacuna inaceitável, considerando-se aquilo que representa a cinematografia chilena, desde suas origens aos dias atuais.

Aprendi muito, pois, com o livro do Régis Frota, no que diz respeito ao cinema do Chile e a realizadores da envergadura de Raul Ruiz, Patrício Gúzman, Pablo Larrain, Matias Bize e Fernando Lavanderos, para citar uns poucos dentre aqueles já "vistos" por cinéfilos brasileiros. Aprendi muito, insisto. "Não fosse isso e era muito, não fosse tanto e era quase", que me ocorrem, neste instante, as palavras do poeta Leminsky.

Régis Frota, mais uma vez, enriquece o repertório crítico-analítico do cinema latino-americano, com destreza e aguda percepção do que é de fato relevante numa realização fílmica, e se firma como um conhecedor e crítico de cinema muito acima da média. O que dignifica a cinefilia do Ceará.

sábado, 9 de junho de 2018

Do bisonho à grande arte


Sentava-me diante do computador para produzir a coluna semanal do jornal 'A Praça' e percebo, no monitor do celular, a mensagem de um amigo, cujo conteúdo, em palavras ligeiras, é este: -- "Agora entendo por que o Brasil é o único país em que professor vota em analfabeto" (sic).

O texto servia de legenda para um "infográfico" que destaca o Brasil  --- sem premiação --- entre os países agraciados com o prêmio Nobel. Ato contínuo, respondo: "Só mesmo num país em que Bolsonaro pode vir a ser eleito presidente pode-se considerar aceitável esse tipo de argumento.

Também médicos, cientistas, intelectuais de toda ordem e escritores brasileiros jamais foram contemplados com um Nobel, e, nem por isso, é aceitável ignorar que os temos da melhor qualidade, muitos com prestígio em meios acadêmicos dos EUA e da Europa.

Isso se confunde com a nossa história de atraso e pequenez assumida, algo como aquilo que o teatrólogo Nelson Rodrigues definiu como "complexo de vira-lata". A minha indignação, claro, é menos com o amigo, tolo, e mais com o conteúdo do post, contra o preconceito bisonho do que pretende ser uma reflexão inteligente e desinteressada. Concluo: O "analfabeto" a que tacanhamente o texto alude, devia-se saber, é doutor honoris causa em pelo menos 20 universidades, muitas europeias, entre as quais a Universidade de Coimbra, em Portugal, que tive a alegria de visitar há poucos dias. Por curioso, havia lá uma pixação: "Lula Livre!"

Mas era outro o assunto da coluna de hoje, ao qual me reporto agora.

A poucos dias do início da Copa do Mundo, visito a cidade russa de São Petesburgo, levado, devo dizer, pelo amor à cultura desse país imenso, por sua literatura, suas tradições nos campos da inteligência e da estética, seu teatro, sua Arte, enfim. Eis que deparo com uma cidade alucinantemente bela, com suas avenidas largas, seus numerosos parques povoados de árvores a perder de vista, monumentos e estátuas que são, antes de qualquer coisa, obras-primas da escultura imperial. Mas, acima de tudo, e na contramão daquilo para o que fui equivocadamente preparado, descubro-me diante de um povo simpático, atencioso e acolhedor.

Aqui está o Hermitage, um conjunto paladino que surpreende pela grandeza e suntuosidade, tendo como eixo central o Palácio de Inverno, admirável exemplar do barroco russo, antiga morada dos imperadores, ao redor de cujo edifício se estendem numerosas outras grandes construções, não menos suntuosas e belas, pontuadas todas pela harmonia de ritmos arquitetônicos e proporcionalidade. Aqui está, pois, um dos mais importantes museus do mundo, e aquele que abriga, de longe, o maior número de quadros de quantos museus existem. Aqui está, insisto, o Hermitage, ícone da cultura e orgulho de um povo que se notabiliza pela desmedida telúrica e pela capacidade de tudo transfigurar em tradição russa.

Para que se tenha uma ideia do que representa o Hermitage para o mundo artístico, não se sabe com exatidão quantas peças de arte existem no seu acervo. O folder que tomo nas mãos ao adentrar o museu, aponta para números impressionantes: em torno de três milhões de obras (você não leu errado, três milhões), da escultura egípcia sem datação possível às pinturas joviais e festivas do estilo rococó, de Jean-Honoré Fragonard e Antoine Watteau; da arte inglesa dos séc. XVI - XIX ao impressionismo francês, de Renoir, Cézanne, Monet, Manet; da Judite (princípios dos anos 1500), obra-prima do renascentista Giorgione (Giorgio da Castelfranco) à famosa O Jovem do Alaúde, de Michelangelo Merisi da Caravaggio, expoente da arte barroca italiana; de Dança, de Henri Matisse, às composições alegres de Vassili Kandinsky. 

Um pouco europeu, um pouco asiático, a um só tempo ocidental e oriental, aqui vive um povo diferenciado, que produz uma literatura soberba, um teatro que não tem par... e que renasce do que diziam cinzas, para se reafirmar como uma superpotência que o mundo por inteiro se vê na obrigação de respeitar.  

    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Karl Marx e a modernidade

Com algum atraso, chega finalmente às livrarias da cidade Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna, o muito aguardado livro de Michael Heinrich. Trata-se do primeiro volume de uma série de três livros sobre vida e obra do pensador alemão (os outros dois estão previstos para 2019 e 2020), resultado de uma pesquisa exaustiva e invulgarmente criteriosa do ponto de vista acadêmico acerca do processo histórico em que o biografado se desenvolveu como homem, teórico, político e revolucionário. Não sem razão, pois, Heinrich, já nas primeiras linhas do prefácio à obra, põe em evidência as motivações que o levaram a se debruçar anos a fio sobre documentos e fatos jamais explorados em outras biografias do autor de O Capital. Como afirma, sua intenção não é cultuar uma personalidade.

De fato. Ainda que a obra de Michael Heinrich se coloque na perspectiva festiva de outras produções ligadas aos 200 anos de nascimento de Karl Marx, o livro vai muito além do culto a sua personalidade, como que empenhado em mostrar-se fiel ao perfil pouco afeito a qualquer tipo de publicidade por que se orientou o revolucionário alemão. Esta a razão por que Heinrich começa a sua narrativa com o fragmento de uma carta em que Marx dá a ver sua indiferença com a popularidade que parecia mesmo persegui-lo: "[...] Comprovei aversão a todo tipo de culto à personalidade, por exemplo, no período em que participei das internacionais [refere-se à criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864), quando impedi que se tornassem públicas as várias tentativas incômodas  --- vindas de diferentes países --- de reconhecimento; nem sequer as respondi, a não ser uma ou outra vez, rejeitando-as".

Irrelevâncias à parte, o livro corresponde ao prestígio que lhe tem sido atribuído por especialistas há poucos meses de sua publicação. Abordando do nascimento de Marx, em 1818, a inícios dos anos 40 (1841, para ser mais preciso), Karl Marx e o nascimento da sociedae moderna notabiliza-se por um rigor científico invulgar, e, esteio da pesquisa, pela consciência acadêmica do autor diante do que reconhece como projeto inacabado, a obra de Karl Marx, marcada por começos e rupturas que são mesmo o sentido e a razão por que se ressignifica com o passar do tempo, constituindo uma teoria de incontornável validade intelectual e política ainda hoje, ainda que o próprio Marx nos advirta que toda produção intelectual se prenda a um momento histórico específico.

Mas, é sobretudo num aspecto que o livro de Heinrich me impressionou positivamente, distanciando-se de algumas das publicações vindas à tona por ocasião do bicentenário de nascimento de Karl Marx: a recusa à tendência reinante de se querer historicizar a teoria marxista como página virada, sem qualquer potencial acadêmico e político na atualidade. Na contramão do que é mesmo lugar-comum nas muitas biografias de Marx, recentemente disponibilizadas no mercado e empenhadas em reproduzir o discurso de que "Marx está morto", o livro de Michael Heinrich aponta para um outro rumo. Se Marx estivesse de fato morto, como diz o jovem cientista político alemão, "não seria necessário evocar tanto a sua morte".

Um livro excelente!   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Quando o mundo tremeu


Durante voo entre Fortaleza e Lisboa, leio 1968, quando o mundo tremeu, do jornalista Roberto Sander. Não está no mesmo nível de 1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura, por exemplo, o melhor livro brasileiro sobre os movimentos estudantis de 50 anos atrás. E, é claro, perde feio para trabalhos de fôlego sobre o maio de 68 publicados na França, sobretudo lá, epicentro da rebelião que se propagaria mundo afora, o Brasil inclusive. Mas é leitura agradável que recomendo, notadamente para o público mais jovem, a quem o livro de Sander poderá prestar um relevante serviço do ponto de vista político, quando estamos a pouco menos de cinco meses de escolher deputados, senadores, governadores e, principalmente, o novo presidente brasileiro.

Refiro-me ao fato de que pesquisas recentes apontam Jair Bolsonaro como o primeiro ou segundo nome mais simpático aos eleitores brasileiros da faixa dos 20, 30 anos. Um absurdo, uma vez que só a ignorância (tomo a palavra aqui em seu sentido etimológico) para explicar tal fenômeno entre os jovens, que, presumo, desconhecem o que vivia o Brasil há meio século, e o que representa eleger um candidato de extrema-direita, militar e assumidamente identificado com o que existe de mais devastador como proposta de governo para o Brasil dos próximos quatro anos.

Escrito numa linguagem referencial, o livro de Roberto Sander é uma publicação mais que aconselhável para quem precisa saber o que foi 1968, a propósito de cujo ano é de cara justificável a expressão "quando o mundo tremeu", referência objetiva do autor a fatos que mudariam o mundo nos cenários político, social, econômico, cultural e científico.

Como afirma Roberto Sander com aguçada capacidade de análise, ainda que, sob muitos aspectos, conciso no registro de fatos que mereceriam ser tratados com maior riqueza de detalhes, bem na perspectiva do que parecem cobrar do historiador a Guerra do Vietnã, as manifestações em favor dos direitos civis, A Primavera de Praga e, acima de tudo, o explosivo movimento dos estudantes franceses em maio de 1968, o livro constitui mais que uma reflexão sobre tantos e tão importantes acontecimentos: o trabalho "garimpa histórias esquecidas pelo tempo que contribuíram para que 1968 fizesse a Terra tremer e selasse, de vez, o fim dos chamados anos de ouro".

Aos jovens brasileiros, como disse, em grande número empenhados em fortalecer a candidatura de Jair Bolsonaro e o seu ideário político tomado das piores intenções, destaco o capítulo do livro dedicado especificamente ao movimento estudantil brasileiro desde o início do ano, particularmente quando Roberto Sander registra o assassinato do estudante Edson Luís, em março, no Restaurante Central dos Estudantes. Popularmente conhecido pelo nome de Calabouço, o restaurante era o reduto estudantil que viria a ser palco das grandes discussões sobre o destino do país nas mãos da Ditadura Militar.

Impedidos de sair do Calabouço e participar de uma marcha histórica por algumas das principais ruas do Rio de Janeiro, "os estudantes avançaram e conseguiram, a muito custo, libertar Edson Luís", àquela altura, por volta das 18h 30, apreendido e submetido a maus-tratos por policiais. "Quando recuaram, narra o autor, foram ouvidos vários tiros. Um deles atingiu o rapaz [Edson Luís], que tombou ensanguentado e desacordado".

A exemplo do que fizera com brilhantismo Zuenir Ventura, Sander descreve como as coisas aconteceriam a partir daí: a revolta dos estudantes e a cinematográfica marcha até a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro carregando nos braços, sobre a multidão, o corpo do colega que se tornaria um dos principais ícones das lutas políticas dos jovens brasileiros há exatos 50 anos  ---  "Não era um cadáver qualquer, diz o autor, por trás de Edson Luís estava toda uma geração de jovens com princípios democráticos aflorados, sonhando com a liberdade e com um mundo mais justo. Eram tempos que não combinavam em nada com o regime de força que governava o Brasil. O choque entre duas partes da vida, cedo ou tarde. O peito baleado do jovem estudante do Calabouço apenas acelerou o embate".