sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser comunista nada tinha a ver com os rótulos de agora, entusiasta do governo deposto e homem de muita leitura, naturalmente aglutinavam-se nas proximidades de sua casa pequenos agrupamentos de pessoas com comentários sobre os acontecimentos em Brasília e no Rio de Janeiro. O meu hábito de ler, diga-se de passagem, começaria na biblioteca de Aluísio Filgueiras.
Ter oito anos em 1964, mesmo para os mais precoces, como eu, era ignorar qualquer assunto mais sério, como os fatos a que me reporto, en passant, à altura dessas minhas memórias.
Contando com o ingênuo e ostensivo apoio da sociedade brasileira, apreensiva com os rumos que diziam ir tomando o governo esquerdizante de João Goulart, e mediante a promessa de realizar eleições diretas no ano seguinte, os militares tomam o poder em 31 de março. Começava o mais cruel período de nossa História e o silêncio sentencioso da minha geração pelos próximos 21 anos.
Dez dias depois, frustradas as tentativas de resistência liderada no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola, o Brasil assistia impotente à publicação do Ato Institucional Número Um e à perversa anulação dos direitos políticos de 102 brasileiros, entre os quais estava Luis Carlos Prestes.
Sobre Prestes, ainda menino, portanto, ouvi de Aluísio Filgueiras Filho, influenciado pela ideias do pai, as referências as mais exaltadas. Falava-nos do 'Cavaleiro da Esperança' com um entusiasmo e uma convicção contagiantes. Confesso que ali, na convivência com esta inteligência notável que era Aluísio Filho, nascia a minha primeira identificação com o ideário socialista, a minha utópica crença na possibilidade de um mundo de iguais, sem exploradores e explorados, numa realidade mais justa e mais humana.
Algum tempo depois, leria embevecido o panfletário O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado e, já adulto, passaria a ler exaustivamente sobre o socialismo, sobre Guevara, Fidel Castro, Trótski, Lênin e o lendário venezuelano Simón Bolívar, de quem me impactavam as ideias de nações livres, independentes e, com a força poética do seu discurso, a união dos povos da América Latina.
Mas os russos, particularmente, eram os que mais me impressionavam. Na superficialidade própria da idade, tentava a custo vender o pensamento do marxismo entre os companheiros de minha geração, não raro assumindo o lado fantasioso da propaganda ideológica, usando barba longa, como Che, ou a barbicha de Trótski.
A propósito, ocorre-me lembrar uma passagem interessante, que ainda hoje é motivo de galhofa entre os amigos: era Carnaval e, na ingênua pretensão de dar a ver as minhas ideias 'revolucionárias', mesmo em folguedos de carnaval, simplesmente me fantasiei dele, Trótski, deixando a barba bem ao seu estilo. À entrada do clube, carregado de sonhos e cuba libre, deparo com a simpática acolhida do porteiro, Luiz, figura folclórica da cidade, que me achou a cara do Lindomar Castilho, um cantor brega da época. No dia seguinte, claro, ressabiado com a semelhança física indesejada, raspei a barba e decidi ir ao baile fantasiado de mim mesmo.
Já cursando o terceiro, quarto ano de faculdade, fui com amigos assistir a uma palestra de Luis Carlos Prestes, no pátio da faculdade de sociologia da Universidade Federal do Ceará. O Cavaleiro acabara de voltar ao Brasil contemplado com a anistia aos condenados políticos, em ato publicado em 1982. Ao final do evento, concorridíssimo, tive o privilégio de trocar algumas palavras com Prestes, boquiaberto, trêmulo e exultante diante do mito. Ouço ainda suas palavras, carregadas de poesia, de confiança no porvir e de inesperado afeto para com o jovem desconhecido que o abordava no inesperado do inesquecível instante.
Começava ali a militar nos meios estudantis. Simpatizava com o 'Partidão', como era chamado o PCB, e a figura de Prestes, a quem acabara de abraçar como se abraça um ídolo, Hércules-Quasímodo dentro do seu paletó amarfanhado e deselegante.
Mas foi ao PT, fundado três anos antes em São Paulo, que me filiaria pela primeira vez a uma agremiação partidária. Terminada a faculdade e as primeiras especializações, estabelecer-me-ia em Iguatu, seria eleito presidente do PT local e seu primeiro candidato a vereador a ganhar assento.
Viriam os primeiros contratempos, o cair da ficha de que o senso de justiça e correção, a coerência entre o pensar e o fazer, a percepção do que é essencial em face do aparente, essas e outras coisas mais, estão muitas vezes para além dos partidos, das fronteiras meramente ideológicas. Elas fazem parte do recheio interior dos homens, estão acima das cores e das cartilhas, são mais uma questão de sensibilidade e respeito aos valores fundamentais da existência. De noite, todos os gatos são pardos, diz a sabedoria popular.
Hoje, da altura dos meus 68 anos, continuo pensando politicamente mais à esquerda, ainda nutrindo o sonho de um mundo mais justo, mais livre, menos desigual. Da convivência com quadros partidários ditos progressistas, guardo algumas lembranças positivas e muitas desilusões.
De Iguatu, chegam-me as notícias de uma campanha em que antigos companheiros de luta descem à sujeira dos esgotos e das privadas. Antigo companheiro de militância, para ficar num exemplo, vejo o candidato Sá Vilarouca medir os outros com o metro pequeno do seu caráter, e armar ardis inescrupulosos no objetivo inconfessável de alçar voos para os quais se revela despreparado.
Triste fim de um Policarpo Quaresma ao avesso, desprovido de boas intenções e de utopias, cuspindo à direita e à esquerda a sua baba nojenta, como um lagarto peçonhento, matador de si mesmo na maldisfarçada pretensão de ser o que não é. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

De poesia e subjetivações

Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música "Paralelas", para a qual diz ter escrito outro final, já gravado, por aqueles dias, pela cantora Vanusa. Como o disco já estivesse sendo prensado, Erasmo lamenta ser irreversível sua difusão com o texto original.
Curioso e invariavelmente atento às sutilezas de estilo e feeling poético, Braz pede-me uma opinião sobre qual das versões é poeticamente melhor.
Eis a questão.
A primeira versão, gravada por Erasmo Carlos, mais bem trabalhada do ponto de vista poético, no meu entender, é esta: "E as borboletas do que fui/pousam demais/por entre as flores do asfalto/em que tu vais".
A segunda versão, gravada por Vanusa, e que faria maior sucesso, é mais simples, mais direta em seu lirismo ligeiramente derramado: "Como é perversa a juventude/do meu coração/que só entende o que cruel/o que é paixão".
Minha, é mera subjetivação a escolha, pois que em matéria artística nem sempre o rigor acadêmico deve ser tomado como parâmetro ou prova de acerto. A poesia traz em si seus segredos, suas idiossincrasias, também eles sujeitos ao entendimento íntimo, à cumplicidade subjetiva a que se sujeita a emoção estética ou mesmo as limitações do crítico.
As doutrinas em torno do fazer poético constituem um campo de estudo extremamente vasto, e são historicamente associadas à filosofia grega, de que Platão e Aristóteles são as bases incontornáveis. Da mimese ou imitação, como de início se supôs ser o seu caráter, a poesia alcançou outras dimensões em termos axiológicos ou valorativos, passando do dogmático aristotélico para a abstração ética de Horácio, que em sua "Arte Poética" exalta o papel do poeta: deleitar e comover na medida exata e na mesma proporção.
Donald A. Stauffer, em livro clássico sobre a natureza da poesia (The Nature of Poetry, 1962), adverte que "a natureza da poesia é fluida, de forma que as suas leis, à semelhança das leis da Natureza, podem ser deduzidas como princípios genéricos no interior dos quais os poetas se movem facilmente, de acordo com a sua própria índole, e sem nenhum empecilho ou coerção".
Sem entrar no mérito das razões por que Belchior terá decidido mudar os versos finais de uma de suas obras-primas, igualmente bem interpretada por Erasmo Carlos e Vanusa, e desculpando-me por incorrer em inevitável olhar para o campo teórico, vasto e complexo como a própria poesia, evidencio que também ao leitor é dado o direito de escolher de conformidade com sua íntima motivação, seu estado de espírito, suas circunstâncias existenciais, seu repertório, sua sensibilidade estética.
De minha parte, como encontro-me no instante em que escrevo esta crônica semanal, sinto-me mais tocado, mais envolvido e mais cúmplice da poesia em sua primeira versão, cuja força sensorial, estando a meio caminho entre a razão e a emoção, como a transitar de Kant a Hegel, faz escolher a bela imagem das "borboletas do que fui pousam demais por entre as flores do asfalto em que tu vais".
Não é demais lembrar que a relatividade é atributo inerente à poesia, mesmo quando sobre ela nos debruçamos armados com os instrumentos da ciência, na linha do que professa o respeitado teórico Johannes Pfeiffer, de quem tomo, à guisa de conclusão, a irrecusável afirmação: "A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento".
Que falta Belchior nos faz.        
 
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A bossa nova e outras bossas

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou na semana que termina um projeto de lei que "torna" a bossa nova patrimônio cultural da cidade. Mera formalização do que já era uma realidade.
Nascida no Rio, onde residiram seus mais legítimos representantes, a bossa nova ganharia o mundo como um estilo musical essencialmente brasileiro, ainda que suas raízes estéticas estejam reconhecidamente ligadas ao jazz americano.
"Bossa" era como se definia um tipo de virtuosismo recorrente entre os sambistas do Rio de Janeiro nos anos 30, mas a expressão bossa nova viria muitos anos depois, mais precisamente em 1958, quando um grupo de rapazes do Rio de Janeiro se apresentou no Grupo Universitário Hebraico Brasileiro tocando e cantando sambas ditos "modernos".
A fim de despertar a curiosidade do público, o estudante Moisés Fuks, organizador do evento, escreveu a giz, na entrada do auditório: "Sylvia Telles e um grupo bossa nova apresentando sambas modernos".
Estava lançada a sorte de um movimento que logo ganharia a simpatia da classe média alta do Rio de Janeiro, segmento social a que pertenciam os grandes nomes do novo jeito de tocar e cantar denominado a partir de então "bossa nova".
Se as bases rítmicas do estilo remontavam ao fim dos anos 40 e inícios dos anos 50, com músicos, cantores e compositores da estatura de Mario Reis e Carmen Miranda, é notório o fato de que o tom mais sincopado e suave de Cyro Monteiro e Geraldo Pereira, a que se somavam as harmonias delicadas de Custódio Mesquita e José Maria de Abreu, apontavam para buscas de inovação condizentes com o que viria ocorrer na virada dos anos 50, com Dick Farney, Lúcio Alves, Luiz Bonfá e, com maior destaque em termos de enquadramento estético, Tom Jobim, Carlos Lyra, João Donato, Johnny Alf, Billy Blanco, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, João Gilberto e Nara Leão, entre outros.
Mas é arriscado dizer a quem se deve atribuir, pois, papel de maior realce autoral do "movimento", muito embora seja recorrente a afirmação de que foi Johnny Alf o primeiro intérprete do que é próprio da bossa nova: um jeito minimalista, confidente, suave, delicado, de tocar e cantar samba.
Não se pode negar, contudo, que foi João Gilberto o mais legítimo, autêntico e típico "bossanovista", a quem se deve a batida inconfundível do violão, o tom intimista da interpretação, o fraseado doce, a afinação rigorosamente trabalhada que fariam dele o mais prestigiado artista brasileiro na Europa e nos Estados Unidos.
De perfil psicológico complicado e profundamente contraditório, beirando um exotismo doentio e arrogante, capaz de excentricidades inacreditáveis, João Gilberto é mesmo "a cara" da bossa nova. Não é muito dizer, portanto, que ele, Tom Jobim e Vinicius de Moraes compõem a santa trindade do que, agora por força de lei, tornou-se patrimônio artístico e cultural da cidade do Rio de Janeiro.
Por último, em observação aos limites de espaço da coluna, urge ressaltar que bossa nova é uma expressão de amplo alcance estético, dentro de cuja classificação é possível se fazerem presentes outras tendências, umas mais, outras menos, identificadas com a genealogia de um estilo invariavelmente marcado pelo fraseado natural e sem afetação ou teatralidade à maneira de Bing Crosby.