Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Podridão em Brasília

Como asseverou o escritor Oscar Wilde (1854-1900), invertendo pelos olhos de sua genialidade uma máxima do mundo artístico, "a vida imita a arte", pelo menos no Brasil, ou mais particularmente na Câmara dos Deputados, em Brasília. É o que me ocorre pensar se tomo como referência o que vem ocorrendo naquele plenário, em especial nas últimas semanas.
Em meio a articulações e negociações inconfessáveis, e na falta da mínima autoridade da parte do presidente Hugo Motta (o mais despreparado e fraco de caráter de que se tem notícia em muitos anos), como nas comédias de Molière (1622-1673)*, aquilo lá virou palco dos mais impensáveis espetáculos de cinismo, desfaçatez e absoluta ausência de escrúpulos. Sem falar, por óbvio, de ignorância dos fundamentos constitucionais, ou, o que é mais grave, de sistemático descumprimento do que estabelece a Carta Magna de 1988.
Depois de aprovar, ia alta a madrugada, o que mal define como PL da Dosimetria, a fim de tentar livrar da cadeia o ex-presidente Jair Bolsonaro, e, por extensão, seus comparsas golpistas e os desordeiros fanáticos do 8/1 de 2023, altas horas, outra vez, bem na linha do que fazem os bandidos, a Câmara dos Deputados livrou da cassação a deputada Carla Zambelli, uma foragida da justiça, condenada em processo transitado em julgado e presa na Itália, até que se conclua o pedido de extradição, em andamento, feito pela STF.
Na perspectiva "wildiana", e tomando a literatura brasileira como referência, a Câmara dos Deputados, com a exceção de uns poucos de seus integrantes, assume-se como uma Antares ao contrário, toda ela tomada por cadáveres insepultos, em meio a uma greve dos coveiros. Mas o mau cheiro vem do corpo vivo da corporação, a lembrar o que ocorre no clássico de Érico Verissimo.
Refiro-me ao último livro do escritor gaúcho, "Incidente em Antares", 1973, sobretudo na primeira parte da narrativa, onde reside, no melhor estilo do realismo fantástico, a aguda crítica moral da obra: os vivos passam a ser vistos, e julgados, pelos mortos. E o mau cheiro que emana dos corpos em decomposição, toma conta da cidade. Mas, bem ao jeito dos senhores deputados do Centrão, com destaque para aqueles que compõem o PL de Valdemar Costa Neto, são eles, os vivos, que parecem exalar o fedor insuportável.
No romance, em página memorável da melhor literatura, do coreto da praça da cidade imaginária, os mortos contemplam a dura realidade: a podridão parece vir dos vivos --- é o mau cheiro da (in)consciência, na esplêndida metáfora de Verissimo, tão apropriada, infelizmente, para o que se pode enxergar nos meios políticos do país hoje em dia.
No parlamento brasileiro, nas últimas horas, parecem atuar os que estão moralmente mortos; os que não medem consequências, para o restante dos brasileiros, daquilo que fazem, como fazem e por que fazem; os que são capazes de qualquer coisa para assegurar seus objetivos, seus interesses e suas posições.
Como asseverou Antônio Candido, em ensaio sublime sobre o romance de Érico Verissimo, "a denúncia moral dos mortos insepultos se torna denúncia política nesse acontecimento fantástico de um 13 de dezembro, acrescentando uma dimensão profunda à fábula admiravelmente arquitetada por Érico Verissimo".
Sob a batuta desafinada de um maestro medíocre, mal-ajeitado numa cadeira de presidente que vez e outra lhe usurpam, orquestram-se em Brasília inconfessáveis projetos, como a tornar procedente, em setores da chamada elite da política nacional, a irônica afirmação do escritor irlandês: A vida imita a arte. E como.
*Jean-Baptiste Poquelin foi um dramaturgo francês do século XVII, inexcedível por suas comédias satíricas com que criticava, acidamente, a sociedade e a natureza humana.
 
 
 
 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Diálogos sobre a fé

"A graça é algo que acontece ao longo da vida. Chega quando você menos espera. Claro, digo isso como quem nunca enfrentou a guerra, ou a tortura, ou a invasão".
Tenho pela obra de Martin Scorsese a maior admiração. Digo mais: tenho pela figura humana do cineasta ítalo-americano, cuja filmografia assemelha-se à dimensão estética do sueco Ingmar Bergman, não menor carinho intelectual (seja lá o que isso for!). Tentarei me fazer compreender.
A concluir pelo que pude conhecer do artista e do homem, a partir dos filmes que fez, das entrevistas que concedeu e dos textos que escreveu, examinados atentamente por este escriba, quero ressaltar, concluo tratar-se de um exemplo, raro, no contexto da grande arte, em que se pode colocar o homem no mesmo plano de sua obra.
Impressiona-me, o diretor e roteirista, pela genialidade de sua cinematografia, uma das mais belas do ponto de vista formal, e, por certo, de maior densidade de conteúdo.
Conquista-me o homem pela profundidade do seu pensamento, por sua visão de mundo, e, pasmem, pela religiosidade.
E quando falo de religiosidade, não me limito a destacar o caráter superficial com que comumente se usa a palavra, mas no sentido filosófico; como atitude diante do sagrado e da relação humana com o transcendente.
Como Bergman, quem sabe com a mesma verticalidade de sondagem psicológica e a mesma qualidade estética, elevada pela disponibilidade de recursos de linguagem certamente mais amplos e mais potentes no plano da expressão, Martin Scorsese transita pelo território da filosofia da religião a fim de investigar a natureza e os conceitos de Deus e do sagrado, a validade da fé e sua conflituosa interrelação com a racionalidade.
É nessa perspectiva, pois, em que artista e homem se encontram, ambos tratando da religiosidade sem se prender a dogmas que circunscrevam essa manifestação do sagrado aos limites de uma dada religião, mesmo, como se sabe, sendo ele, Martin Scorsese, católico e ligado em reconhecida factualidade aos fundamentos do catolicismo de Roma.
Note-se, por necessidade de maior clareza, que a palavra em sua etimologia se prende ao verbo "religar" (ou reconectar, numa opção lexical mais contemporânea), dando a ver a necessidade humana de reconhecer o fundamento último da existência, ou seja, religando-o à vida para além de suas limitações humanas.
É sob este aspecto que me refiro à figura do artista como homem, num tipo de simplificação que reconheço delicada, para tratar de um dos temas mais caros à filosofia da arte, matéria a que dediquei parte significativa de minha trajetória como professor de disciplinas que tratam da Arte em suas diversas dimensões.
É com entusiasmo, portanto, que acabo de ler (e recomendo enfaticamente) o recém-lançado "Diálogos sobre a fé" (Record, 2025), livro em que mais objetivamente se pode compreender o lado "religioso" de Martin Scorsese a partir de conversas levadas a efeito pelo cineasta com o padre jesuíta, jornalista e ensaísta italiano Antonio Spadaro.
Delicioso em sua textura formal, portanto muito mais que bem escrito, o livro vem a público num momento histórico de incertezas, imensas contradições e espiritualidade de consumo, o que, não bastasse o que representa como reflexão sobre uma das mais poderosas obras artísticas do Cinema, ensejando a percepção de elementos estéticos raramente examinados pela crítica especializada, proporciona, tanto ao estudioso quanto ao leitor comum, uma experiência reveladora --- algo como um lampejo em meio à escuridão.
Numa conversa franca, e ao mesmo tempo profunda sobre arte e fé, o livro explora os mistérios que se escondem no que existe de mais humano em Martin Scorsese, quer na perspectiva do artista inclassificável, quer na perspectiva do homem atravessado por obsessões, dúvidas, culpa, violência e incansável busca de Deus.
Ler este livro maravilhoso (que me perdoem o que existe de abstrato na adjetivação) é uma experiência mais que enriquecedora. É conhecer de mais perto um artista grandioso, que fez de sua arte prodigiosa e bela, um tipo de oração, como a descobrir que a fé é caminho único, incontornável, necessário para sua salvação.