Como asseverou o escritor Oscar Wilde (1854-1900), invertendo pelos olhos de sua genialidade uma máxima do mundo artístico, "a vida imita a arte", pelo menos no Brasil, ou mais particularmente na Câmara dos Deputados, em Brasília. É o que me ocorre pensar se tomo como referência o que vem ocorrendo naquele plenário, em especial nas últimas semanas.
Em meio a articulações e negociações inconfessáveis, e na falta da mínima autoridade da parte do presidente Hugo Motta (o mais despreparado e fraco de caráter de que se tem notícia em muitos anos), como nas comédias de Molière (1622-1673)*, aquilo lá virou palco dos mais impensáveis espetáculos de cinismo, desfaçatez e absoluta ausência de escrúpulos. Sem falar, por óbvio, de ignorância dos fundamentos constitucionais, ou, o que é mais grave, de sistemático descumprimento do que estabelece a Carta Magna de 1988.
Depois de aprovar, ia alta a madrugada, o que mal define como PL da Dosimetria, a fim de tentar livrar da cadeia o ex-presidente Jair Bolsonaro, e, por extensão, seus comparsas golpistas e os desordeiros fanáticos do 8/1 de 2023, altas horas, outra vez, bem na linha do que fazem os bandidos, a Câmara dos Deputados livrou da cassação a deputada Carla Zambelli, uma foragida da justiça, condenada em processo transitado em julgado e presa na Itália, até que se conclua o pedido de extradição, em andamento, feito pela STF.
Na perspectiva "wildiana", e tomando a literatura brasileira como referência, a Câmara dos Deputados, com a exceção de uns poucos de seus integrantes, assume-se como uma Antares ao contrário, toda ela tomada por cadáveres insepultos, em meio a uma greve dos coveiros. Mas o mau cheiro vem do corpo vivo da corporação, a lembrar o que ocorre no clássico de Érico Verissimo.
Refiro-me ao último livro do escritor gaúcho, "Incidente em Antares", 1973, sobretudo na primeira parte da narrativa, onde reside, no melhor estilo do realismo fantástico, a aguda crítica moral da obra: os vivos passam a ser vistos, e julgados, pelos mortos. E o mau cheiro que emana dos corpos em decomposição, toma conta da cidade. Mas, bem ao jeito dos senhores deputados do Centrão, com destaque para aqueles que compõem o PL de Valdemar Costa Neto, são eles, os vivos, que parecem exalar o fedor insuportável.
No romance, em página memorável da melhor literatura, do coreto da praça da cidade imaginária, os mortos contemplam a dura realidade: a podridão parece vir dos vivos --- é o mau cheiro da (in)consciência, na esplêndida metáfora de Verissimo, tão apropriada, infelizmente, para o que se pode enxergar nos meios políticos do país hoje em dia.
No parlamento brasileiro, nas últimas horas, parecem atuar os que estão moralmente mortos; os que não medem consequências, para o restante dos brasileiros, daquilo que fazem, como fazem e por que fazem; os que são capazes de qualquer coisa para assegurar seus objetivos, seus interesses e suas posições.
Como asseverou Antônio Candido, em ensaio sublime sobre o romance de Érico Verissimo, "a denúncia moral dos mortos insepultos se torna denúncia política nesse acontecimento fantástico de um 13 de dezembro, acrescentando uma dimensão profunda à fábula admiravelmente arquitetada por Érico Verissimo".
Sob a batuta desafinada de um maestro medíocre, mal-ajeitado numa cadeira de presidente que vez e outra lhe usurpam, orquestram-se em Brasília inconfessáveis projetos, como a tornar procedente, em setores da chamada elite da política nacional, a irônica afirmação do escritor irlandês: A vida imita a arte. E como.
*Jean-Baptiste Poquelin foi um dramaturgo francês do século XVII, inexcedível por suas comédias satíricas com que criticava, acidamente, a sociedade e a natureza humana.