quinta-feira, 10 de julho de 2025

Belo país, outro mundo

Tomo nas mãos, e abro aleatoriamente, minhas "memórias de viagens". Ocorrem-me os versos de Imre Madách (1823-1864), em A Tragédia do Homem: "O que aqui é verdade sempiterna,/em outros mundos talvez seja absurdo,/onde o normal talvez seja o impossível."

Estou em Friburgo, na Suíça. Aqui sou hóspede de Vadinho e Paulinho da Gigi, dois iguatuenses para os quais o mundo se tornara pequeno. É um apartamentinho quarto e banheiro, simplesmente mobiliado com móveis arrebatados da rua. Neste país de bonecas é comum as pessoas abandonarem na calçada peças de sua mobília, sempre que adquirem outras novas. A cama, o armário de roupas, a pequena tevê e o freezer haviam sido adquiridos assim. Recordo que esse fato me deixou estupefato. Lembrei do meu país de tantos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, para muitos do quais ter em casa estes utensílios era apenas um sonho improvável.
Havia à disposição dos estudantes estrangeiros um belo casarão ali perto. Era conhecido como Centre Libre, ricamente instalado com duas imensas cozinhas, salão de jogos, vários banheiros, biblioteca e equipamentos eletrônicos de última geração. Nas cozinhas, havia grandes armários divididos em pequenos espaços onde os usuários armazenavam açúcar, sal, manteiga, biscoitos e enlatados. Não tinham fechadura, suas portas trancavam ao leve toque de um ímã. Cada pessoa dispunha de um desses espaços e, muitas vezes, pude presenciar estudantes europeus de outros países interromperem o preparo da comida a fim de comprar, por exemplo, sal ou azeite que acabara, e, por esquecimento, não fora reposto. Impressionava-me que nenhum deles se sentisse à vontade para abrir a portinha ao lado e lançar mão daquilo de que estivessem necessitando. Envergonhava-me saber que os meus anfitriões não fizessem o mesmo. Eu não tinha lugar para colocar as mãos ao ver Paulinho abrir as portinhas uma a uma, até encontrar o que procurava para preparar o lanche. Hoje, corre mundo, e faz sucesso com uma empresa de turismo. Foi bom amigo.
A correção do povo suíço, nesse aspecto, é algo realmente impressionante. Certa vez, para citar um exemplo, visitando com um amigo friburguense um ponto turístico da cidade, deparei com uma objetiva de uma máquina fotográfica, pelo visto sofisticada, abandonada sobre uma mureta. Como não houvesse ninguém por perto (se não me engano, por instantes estávamos sós ali), tomei-a nas mãos, a um tempo surpreso e curioso, pelo que fui de imediato repreendido: – "Não toque, o proprietário haverá de voltar à sua procura!"
Aos poucos, no convívio de uma realidade tão diferente daquela a que estamos habituados, foi ficando mais claro para mim o conceito do que seja a educação e do quanto esse valor é importante na vida de um povo. Das minhas impressões, Vadinho discordava, alegando que os bancos suíços constituem o destino de tanto dinheiro roubado mundo afora. Mas, isso são outros quinhentos.
Intrigava-me que os ônibus não tivessem o que no Brasil chamamos 'trocador', aquele sujeito encarregado de receber os tíquetes, os quais são adquiridos em cada ponto com a simples inserção de uma moeda. Assim, não agindo com honestidade, o usuário pode se deslocar gratuitamente, o que via muitos brasileiros fazer.
Nas bancas de revista, que mais adequado seria chamar de pontos de venda de revistas e jornais, posto que não ofertam a imensa variedade das nossas, no Brasil, faz-se o mesmo que aos tíquetes de ônibus, com a diferença de que o acesso aos exemplares é absolutamente livre. Deixa-se a moeda, leva-se o jornal ou a revista. Vadinho e Paulinho, meus anfitriões, estavam sempre em dia com as notícias e os acontecimentos do mundo. Sem custos, é bom lembrar.
Naquele tempo era chocante para os turistas latinos encontrar tantos autosserviços para o que quer que fosse. Quando escrevo estas memórias, felizmente, muitos estão à disposição dos brasileiros em qualquer grande centro. Não vulneráveis quanto os suíços, é importante frisar, mas confiados à honestidade e à retidão de quem deles necessite.
A Suíça é, como disse, uma casa de bonecas. Nenhum país que conheço é tão rico quanto esse em beleza, com suas montanhas cobertas de neve, suas simpáticas estações de esqui, seus chalés de cores vibrantes, suas instituições culturais e suas muitas cidades medievais. Friburgo, a cidade em que estou à altura dessas memórias, é uma delas.
Fundada por volta de 1157, esta encantadora cidade está situada às margens do rio Sarine. Aqui, fala-se indistintamente o alemão ou o francês, mas é esta a língua dominante. Nas universidades, contudo, o alemão e o francês são recorrentes e, em algumas, o italiano, a terceira língua oficial do país. Além do romanche, o dialeto falado na Suíça oriental.
A poucos minutos de Lausanne e Berna, em viagem de trem, a que vou com alguma frequência durante os meses de minha permanência na Suíça, Friburgo destaca-se como atração turística europeia pelo seu centro histórico medieval, totalmente preservado. A sua catedral é exuberantemente bela e sua arquitetura gótica anuncia-se à distância com sua torre de mais de setenta metros.
Os dois meses e meio, três meses, que passo em Friburgo assinalam as menores temperaturas em cinquenta anos. O frio é inclemente e neva com frequência, o que, curiosamente, torna a baixíssima temperatura um pouco mais suportável. Coberta de neve, no entanto, a cidade é ainda mais bonita. Paradisíaca, é razoável dizer.
A Tragédia do Homem, peça de que citei os versos do poeta húngaro, é um drama de cunho filosófico que narra a história da humanidade através dos sonhos de Adão e Eva sob a influência de Lúcifer. De cunho existencial, explora o sentido da vida e a luta do homem por um mundo melhor. Tem um final apocalíptico, nada condizente com o país a que me refiro no texto. Por que, então, me ocorreram seus versos? Ao certo não saberei dizer. Que o leitor busque uma explicação. 




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