terça-feira, 30 de julho de 2024

Bambino a Roma: As memórias literárias de Chico Buarque de Hollanda

Na capa, sob o título do livro, está anunciado: "Ficção". Nada mais enganoso, uma vez que o recém-lançado "Bambino a Roma" (Companhia Das Letras, 2004), de Chico Buarque de Hollanda, é, antes de qualquer outra coisa, um livro de memórias, e extremamente bem construído do ponto de vista narrativo.
Li-o em poucas horas, totalmente submetido à leveza do estilo e à carpintaria de linguagem irretocável. Mas, por que afirmo tratar-se de um livro de memórias (nunca uma autobiografia), o leitor haverá de querer saber. Tentarei fazê-lo, nos limites de uma coluna de jornal e sem a pretensão de emprestar ao texto ares acadêmicos.
Desde o século XIX,* quando o vocábulo foi utilizado para definir um gênero literário, sabe-se que "memórias" ou "autobiografia" é todo e qualquer texto que tem como figura central o próprio autor. Há, no entanto, uma nítida diferença entre os dois tipos de escrita, ainda que muitas vezes confundidas mesmo em trabalhos de cunho acadêmico ou em verbetes de dicionário.
Enquanto a autobiografia tende a estar presa a fatos mais biográficos, sendo por isso mesmo mais objetiva e isenta de subjetivações, pretensamente completa no registro do que diz respeito à vida do narrador, as memórias representam um tipo de extravasamento do "eu", não raro edulcorado pelo estado poético que toma conta do escritor durante o resgate memorialístico de acontecimentos passados.
Assim, não se pode querer das memórias o mesmo rigor historiográfico, a mesma precisão no relato dos fatos vividos pelo autor, ainda que tal isenção jamais seja obtida por completo, quer por esquecimento, às vezes intencional, quer por inevitável tendência a se aumentar ou minimizar passagens da vida do autor. Parece indiscutível, no entanto, que as memórias se prestam mais adequadamente para as abstrações emotivas, para as incursões conscientes no terreno da poesia e do ornamento de linguagem.
As memórias "conversam" intimamente com a literatura enquanto arte da palavra, a autobiografia nem sempre. As memórias tendem a ser literatura, quase invariavelmente, a autobiografia não, ainda que o texto venha a merecer um tratamento de linguagem que resulte em estilo agradável e sedutor. Isso ainda não será arte literária.
As memórias, pois, a exemplo do que se vê no livro de Chico Buarque de Hollanda, "Bambino a Roma", permitem ao autor experiências narrativas mais ousadas, permeadas de obliteramentos e uso motivado de procedimentos pictóricos na construção do texto, o que, fatalmente, confere às recordações um perfume romanesco.
Esta, quero crer, a razão da palavra "ficção" aparecer na perigrafia da obra recém-lançada, como a advertir o leitor de que, embora plasmados na vida do autor, a narrativa e o estilo apresentam deformações intencionais, acréscimos, omissões, ajustes e edulcorações que visam a tornar o texto, antes de qualquer outra coisa, um objeto estético, destinado ao desfrute dos amantes da literatura.
Há, assim, no belo "Bambino a Roma", passagens e passagens que não se pode dizer factuais, mas factíveis, como no capítulo em que o narrador relata os abusos sexuais a que foi submetido por um professor de nome Welsh: "Só acho uma lástima que, a essa altura, mister Welsh com certeza terá morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão".
Se real ou fictício o fato narrado, em tom descontraído, diga-se em tempo, como a superar pelo efeito catártico o trauma advindo de tal experiência, na perspectiva do leitor isso pouco importará. Ficção ou realidade, o que sobressai é a forma como o escritor constrói a narrativa, como elabora o enunciado a partir do manuseio competente da linguagem, como, no plano da expressão, soube fazer de suas memórias uma obra de arte.
Ficção a partir da memória, como afirma o editor Luiz Schwarcz, ou memórias com requintes de alta literatura? Fico com a segunda alternativa: "Bambino a Roma", de Chico Buarque de Hollanda, é demonstração definitiva de que o maior compositor brasileiro é, também, um dos nossos maiores escritores da atualidade.   
*O gênero, sem o rigor de classificação a que me refiro, terá surgido muito antes, supostamente durante os primeiros anos do Cristianismo. Nessa perspectiva, "Confissões", de Santo Agostinho, escrito no ano 400, será um exemplo clássico de Autobiografia.  
 

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quinta-feira, 25 de julho de 2024

A forma doce e terna de dar e receber amor

Pesquisa divulgada recentemente aponta: O brasileiro está se casando mais. Curioso: O outro resultado da pesquisa, infelizmente, desaponta: O brasileiro está se separando mais. O número de separações legais supera hoje todas as estatísticas. Pena. Se o casamento é uma instituição falida, como querem alguns (e as pesquisas parecem indicar essa tendência), por que tantos homens e tantas mulheres ainda buscam na vida a dois o que definem como felicidade? O que ainda leva as pessoas a tentar viver juntas, dividir camas e lençóis, como se o que chamam de felicidade fosse, necessariamente, um tipo de cumplicidade?

Levantamentos indicam que é cada vez maior o contingente de pessoas que moram sós --- e conseguem estar de bem com a vida. Nos supermercados e afins, cresce a oferta de produtos para solteiros, o que facilita o cotidiano daqueles em cuja mesa um só talher é bastante. Mas, a pesquisa quantifica, aumenta o número daqueles que acreditam na utopia do improvável, "até que a morte os separe".

Não é sem razão que o tema do amor frustrado povoa o imaginário das pessoas, notadamente dos artistas. O cancioneiro popular é pródigo em cantar essa dor, quase sempre insuportável. "A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida", dizia Vinicius de Moraes, ele mesmo exemplo clássico de amores desfeitos e buscas incansáveis. Consta que casou nove vezes, poeta das paixões, como se tornaria conhecido.

Há mesmo, entre os grandes compositores, quem parece ter se especializado em cantar o sofrimento de quem perde o objeto amado, e não preciso falar aqui de Lupicínio, que seria um tipo de redundância. É do próprio Vinicius, é de Chico Buarque (perfeição!), de Roberto Carlos, de Dolores Duran, de Evaldo e Jair Amorim, de Cartola, de Herivelto Martins, para citar apenas alguns emblemáticos da canção brasileira, que tomaram nas mãos a missão de eternizar as desilusões e insucessos do relacionamento e a amargura que advém disso.

Na literatura, é inimaginável a quantidade de livros, bons ou ruins, que exploram o tema, não raro grandes clássicos da poesia e da prosa de ficção. No cinema, então, essa dura experiência humana está registrada em cenas inesquecíveis. Quem haverá de esquecer "Casablanca" e a mais bela fala de amor de que se tem notícia: "Nós sempre teremos Paris".

A propósito, na busca de um "mote" para a crônica de hoje, larguei os dados da pesquisa e fui à estante ao encontro de algo que fizesse contraponto, que ilustrasse o eixo discursivo do que pretendia escrever. Caiu-me nas mãos esta pérola de Dalton Trevisam: "Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano,a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles iam embora e eu ficava só, sem o perdão de sua presença e todas as aflições do dia, como última luz na varanda.

E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada --- meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcharam. Não tenho botão na camisa, calço meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor".

Machista, afeito a exaltar o exercício da domesticidade? Talvez sim, talvez não. Ponto de vista. Quem disse que fazer certas coisas atribuídas à Senhora é desmerecê-la, ignorar que está em igualdade de condições? Algum dia, em algum lugar, haverá mulheres a sentir falta do homem para afastar o móvel, repor a cortina, trocar o pneu, desfazer o varal... Quem sabe fazer a farofa com torresmo que só ele faz.

Não são papeis que definem o lugar de fala, nem a vocação para fazer bem o que há de ser feito, tampouco o nível de independência, a igualdade de direitos, o respeito e consideração recíprocos. O que diz da correlação de forças no casamento, no namoro, na convivência a dois, são os pequenos gestos, a forma de tratar e reconhecer direitos e deveres (se existem deveres no amor). O politicamente correto, o que dá a dimensão do verdadeiro encontro, a medida da bela cumplicidade, não são discursos e estandartes, mas a forma doce e terna de dar e receber amor.  

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Sem açucar, sem afeto

A minha coluna da semana passada, a propósito da obra de Chico Buarque de Hollanda, teve boa receptividade. Entre e-mails e mensagens pelo "zap", foram muitos os comentários, mas gostaria de destacar um deles, que me pareceu particularmente relevante: é da psicanalista Maria José, a queridíssima amiga Mazé, cujo texto, vazado numa linguagem elegante e expressiva, discorre sobre o "eu feminino" na poesia de Chico Buarque com rara sensibilidade.

Na contramão do que um certo feminismo tem feito, para ressaltar o equívoco que é tachar de machistas canções importantes no conjunto da obra do autor de "Com açúcar, com afeto", objeto de exame da coluna de mesmo título, a leitora evidencia a beleza poética da canção, o real sentido do seu conteúdo e a importância do que diz sobre as relações amorosas entre homem e mulher no contexto de uma sociedade marcada por severas contradições.

Ao agradecer o privilégio de tê-la como leitora, ocorre-me a motivação de voltar ao assunto para tecer hoje mais algumas considerações. Começo por destacar que existem inúmeros trabalhos de corte acadêmico sobre a presença da mulher na música popular brasileira, dentre os quais, com alguma dose de subjetivação, tomo a liberdade de indicar o belíssimo estudo "O eu feminino na canção brasileira: desenvolvimento cultural entre 1901 e 1985", de André Simões.

Nascido de sua tese de doutorado para a PUC-SP, o texto de Simões é fundamental para evitar equívocos de interpretação, juízos apressados, inconsistências argumentativas, sobre uma obra absolutamente correta nos planos do conteúdo e da forma. Sem pruridos inoportunos ou deslizes de natureza conceitual, o trabalho serve para tornar evidente o que há muito tenho por convicção: embora calcadas o mais das vezes em situações de aparente dependência da mulher em relação ao homem, o cancionista Chico Buarque de Hollanda é sutil aqui, irônico acolá, ardiloso ou intencionalmente ferino no fraseado de suas composições, mas nunca indiferente ao que pode advir de sua visada poética como reflexão em torno do que, na falta de melhor expressão, pode-se delimitar como a questão feminina.

Em certa medida, pois, há nas mulheres de Chico Buarque um não sei quê de machadiano, e muitas delas trazem no corpo o perfume de Capitu, a mesma dissimulação que as faz irresistivelmente sedutoras, capciosas, "dominantes enquanto dominadas", que me permitam o que há de paradoxal na afirmação e de incorreto politicamente falando.

Para se ter uma ideia do que fez Chico Buarque na perspectiva do eu lírico feminino, o quanto o tema o persegue como poeta, romancista e dramaturgo, destaco aqui algo próximo de cinquenta canções, a maior parte delas dramáticas, ou seja, canções compostas para peças de teatro ou cinema: "Noite dos mascarados", "Soneto", "Ana de Amsterdam", "Bárbara", "Cala a boca Bárbara", "Não existe pecado ao sul do Equador", "Tatuagem", "Tira as mãos de mim", "Joana Francesa", "Bem-querer", "Mambordel", "O que será", "Tira as mãos de mim", "À flor da pele", "Folhetim", "O meu amor", "Teresinha", "Ai se eles me pegam agora", "Uma canção desnaturada", "Não sonho mais", "Sob medida", "Qualquer amor", "A história de Lily Braun", "Meu namorado", "Mil perdões", "A violeira", "Las muchachas de Copacabana", "Palavra de mulher", "Sentimental", "Tango de Nancy", "Anos dourados", "Abandono", "Sol e lua", "A mais bonita", "Lábia", "Veneta", "Fora de hora", "Sem fantasia" e as não dramáticas "Com açúcar com afeto", Atrás da porta", "Olhos nos olhos", "Sem açúcar", "O meu guri" e "Se eu soubesse".

Por último, como observa André Simões em seu trabalho (o que reproduz no livro "Chico Buarque em 80 canções", Editora 34, 2024), há casos em que o ponto de vista feminino alterna com o ponto de vista masculino, a exemplo do que se pode ver na incontornável "Sem fantasia", composta para a peça "Roda Viva" (1968), forjada na mesma pegada homérica da mulher que acolhe o homem "maltrapilho e maltratado" de volta ao lar.

Imagine, leitor ou leitora, o que seria da música popular brasileira sem essas verdadeiras pérolas. Ufa!

 

  

 

 

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Com açucar, com afeto

Durante palestra no Cine São Luiz, dentro da programação em homenagem aos oitenta anos de Chico Buarque de Hollanda, evento organizado pela Academia Cearense de Cinema, levanta-se a questão: "Músicas como 'Com açúcar, com afeto' devem ser excluídas do repertório do compositor?"

O debate prende-se ao depoimento do próprio compositor no documentário "O canto livre de Nara Leão" (2022), dirigido por Renato Terra, em que afirma que não cantará mais a aludida música em seus shows por ter assimilado críticas feministas identificando machismo na letra.

Escrita do ponto de vista da mulher, "Com açúcar, com afeto" apresenta uma mulher submissa ao marido farrista, que ao final de um dia de trabalho gasta as horas livres andando de bar em bar, discutindo futebol e "olhando as saias, de quem vive pelas praias coloridas pelo sol".

Na contramão do que professa o movimento feminista, a mulher não apenas se deixa aborrecer pelo marido, numa sutil tentativa de explorá-la sexualmente, como vai esquentar seu prato e abrir-lhe os braços, como a simbolizar o gesto referido o próprio abrir de pernas na relação carnal.

"Com açúcar, com afeto" foi composta em 1966 e, além de constar do disco "Chico Buarque de Hollanda, vol. 2", aparece no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", de 1975. É a primeira experiência poética do compositor na perspectiva do eu lírico feminino, algo que passaria a ser mesmo uma das marcas mais notáveis da obra de Chico Buarque de Hollanda, aquela em que revela à perfeição os sentimentos e emoções da mulher em relação ao homem. É que o conteúdo poético dessas letras, quase invariavelmente, dá a ver a mulher como um ser sentimentalmente dependente, entregue aos caprichos e idiossincrasias masculinos.

Ora, ora. A discussão ignora o fato de que se trata de uma obra de arte como tantas e tantas outras que, se retiradas do repertório poético nacional, subtrairiam parte considerável do que existe de mais valioso esteticamente falando. E não é de agora: Gonçalves Dias, num dos mais bem realizados poemas da poesia romântica brasileira, já o fizera em meados do século 19 com o seu irretocável "Leito de folhas verdes", em que uma indígena se submete às inconstâncias do amado para o qual preparara com esmero o confortável leito em que se amariam. Mas ele falta ao compromisso deixando-a só e abandonada. O poema é lindo, envolvente, e o ponto de vista feminino adorna com singular encanto o desencontro amoroso, nada expondo de desrespeitoso acerca do papel da mulher. Desencontros existem, e também os homens enriquecem as estatísticas da desilusão amorosa, o que ensejou matéria primorosa para o cancioneiro popular em torno do que se convencionou chamar de dor-de-cotovelo. A vida como ela é, sem tirar nem pôr.

Sobre o fato envolvendo o maior compositor vivo do país, ocorre-me lembrar o que diz  André Simões em livro recém-lançado (recomendadíssimo!) sobre as canções de Chico Buarque de Hollanda: "... há o fato de que não é possível para uma canção ser machista, pois apenas pessoas podem sê-lo: assim como um filme que conta a história de um assassinato não é 'um filme assassino', uma canção que retrata machismo não se torna automaticamente uma 'canção machista'".

Há, como me parece ser o caso de "Com açúcar, com afeto", que se estabelecer a sábia diferença de que cantar o amor, ainda que fora dos padrões recomendados pelo olhar feminista, é algo diferente de fazer a apologia de comportamento machista. A composição de Chico Buarque apenas retrata uma situação, infelizmente recorrente, ainda hoje, na relação homem/mulher. Desnecessário dizer, por óbvio, que o faz emblematicamente bem do ponto de vista poético, e a canção, por suas qualidades estéticas, figura entre as grandes composições do autor.

É significativo acerca da polêmica o que diz Fernanda Takai, do alto de sua feminina jovialidade e inquestionável beleza: "Com açúcar, com afeto" é obra muito bem escrita, que dá voz a uma personagem num espaço bem delimitado na arte".

De fato, a canção de Chico Buarque de Hollanda foi vazada em linguagem poética adequada, com elegantes versos de sete sílabas (redondilhas maiores), com esquema de rimas clássico: aabcd. A letra é ainda mais valorizada pelo requinte musical, com modulações extremamente competentes e condizentes com o elemento dramático da narrativa, o que, já em início de carreira, Chico Buarque já era capaz de explorar enquanto compositor em pleno domínio da teoria musical.

A MPB, assim como a literatura, o teatro, o cinema, está acima do que propõe o debate simplista e despreparado que se quer levar a efeito sobre ela. "Com açúcar, com afeto" é obra-prima do cancioneiro popular.

Chico Buarque escorregou em casca de banana, que me perdoem a expressão em nada poética de que lanço mão para lhe contrapor minha humilde opinião.

 

Em tempo: Dia 12 de agosto, no Tribunal de Contas do Estado (você não leu errado), Mantovani Colares e eu faremos palestra sobre a obra de Chico Buarque de Hollanda.

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Humberto morreu de amor

"Kalu, Kalu,/Tira o verde desses óios de riba d'eu/Kalu, Kalu,/Não me tente se você já me esqueceu/Kalu, Kalu,/Esse oiá depois do que se assucedeu".

A atividade intelectual e o gosto pelo jornalismo (escrevi para o jornal "O Estado de Mato Grosso" e dirigi rádio por muitos anos) levaram-me a ter o hábito de entrevistar pessoas interessantes, algumas delas famosas. Que me lembre, agora, entrevistei os escritores Jorge Amado, Zélia Gattai, Moreira Campos; o filósofo Edgar Morin; o cantor Raimundo Fagner, mais de uma vez; os cineastas Walter Lima Jr. e Paulo César Saraceni; o educador Moacir Gadotti, os políticos Ciro Gomes, Lula (rapidamente), e, em plena Av. Atlântica, o antropólogo Darcy Ribeiro, entre muitos outros. Mas, foi a entrevista com o cantor e compositor Luiz Gonzaga que mais me tocou, pelo desprendimento e informalidade do que se tornou, antes, mais uma conversa demorada que uma entrevista propriamente dita.

Era outubro, novembro, não me lembro bem, mas o ano com certeza era 1987, já bem perto da morte de Gonzagão, ocorrida em agosto de 1989. Em Iguatu, ele era hóspede do médico Hildernando Bezerra. De manhã, ainda à mesa do café, contando com a presença da saudosa Marlene Teixeira, primeira mulher a fazer rádio no interior do estado, começamos Luiz Gonzaga e eu uma conversa, como disse, demorada, sobre música popular brasileira, a carreira esplêndida do compositor de "Asa Branca" e, principalmente, a convivência com seu parceiro Humberto Teixeira. Hildernando, o anfitrião, aqui e ali, fazia intervenções curiosas sobre o tema da conversa.

Gonzagão discorria, com um jeito bem nordestino de ser, sobre o percurso que fizera desde o início de sua carreira, ainda entre os cáctus e cipoais do sertão, até a consagração, que, na sua humildade peculiar, em momento algum assumiria perante os entrevistadores. Falava das circunstâncias em que compusera uma e outra canção, das parcerias, do pai Januário e de sua amizade com Humberto.

Entre uma mordida na pamonha e um "trago" de café, Luiz Gonzaga recorda situações difíceis de sua trajetória, as parcerias, os programas de rádio, as decepções, mas, sobretudo, como disse antes, com a voz grave e ligeiramente trêmula, de sua convivência com o iguatuense Humberto Teixeira, o guardanapo a enxugar a lágrima discreta. Conta-nos, ouvintes privilegiados, como surgiu a ideia de compor "Asa Branca" e outras músicas que ficaram no cancioneiro brasileiro como verdadeiros clássicos da MPB.

Sabendo-me vereador e autor de um projeto de lei que instituiria o Museu Iguatuense da Imagem e do Som, a uma dada altura da entrevista, sem que eu saiba por quê, Gonzaga assume comigo o curioso compromisso: – "Assim que o museu for inaugurado, mando para seu acervo o primeiro disco de ouro que eu e Humberto ganhamos com Asa Branca." Todos aplaudiram e o burburinho era tão grande que tive de interromper a entrevista. Foi aí que Luiz Gonzaga fez a afirmação premonitória: – "Guarde a fita [da entrevista] que, se eu tiver morrido, você mostra pro [o barulho de conversas paralelas e ruídos de talheres impedem a compreensão do que diz] e volta com o disco debaixo do braço." Suponho que tenha dito o nome do filho Gonzaguinha, que, ironicamente, morreria em 1991, num desastre de carro.

Marlene Teixeira, que tinha uma bela voz, traz com ela uma música inédita de Humberto Teixeira e a cantarola para Gonzagão, que fica em silêncio por um momento, os olhos nitidamente marejados, e faz a afirmação conhecida: – "Humberto morreu de amor!"

Anos depois, falei sobre o assunto com a atriz Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira, que viera ao Ceará para lançamento de um projeto que tinha por objetivo resgatar a importante presença do pai no contexto da MPB. Numa solenidade no auditório do IFCE, em Fortaleza, eu faria um rápido pronunciamento em nome da família de Humberto em Iguatu.

Denise, sempre muito reticente em relação à vida amorosa de Humberto, por razões que sabemos e não me cabe explorar, apenas esboçou um sorriso e repetiu: – "Sim, Humberto morreu de amor!"

(Do livro "Depoimento", de Alder Teixeira)