Diante da violenta ação policial nos complexos do Alemão e da Penha, que resultou na execução sumária de mais de uma centena de pessoas, entre as quais muitos adolescentes, a maioria identificados como bandidos, impõe-se ao juízo de muitos a necessidade de que, no combate aos traficantes que assomam país afora, tudo é válido e aceitável, mesmo que ao arrepio da lei e da mais elementar noção do que seja o Estado de Direito.
Prato cheio para as pretensões eleitorais da extrema direita, ávida de retomar o poder e implantar políticas de segurança pública baseadas na convicção de que violência se combate com violência, e, a exemplo do que se viu na terça-feira no Rio de Janeiro, autorização prévia para execuções extrajudiciais que extrapolam até mesmo o Direito de Guerra.
É revoltante, não fosse antes lamentável que se pense assim, num país em que a riqueza é desumanamente concentrada, e no qual as classes dominantes permanecem indiferentes ao caos em termos de segurança pública, contanto que preservados seus privilégios e garantidas as formas muitas vezes inconfessáveis de aumentar sua fortuna.
Há pouco mais de 24 horas do início da operação (um sucesso, nas palavras do governador Cláudio Castro), contam-se 121 mortos. Muitos deles com tiros de fuzil à queima-roupa, pés e mãos amarrados, outros com perfurações de faca e alguns literalmente decapitados.
Na esteira das estarrecedoras imagens exploradas à exaustão pelos principais jornais e tevês brasileiras, em que se veem dezenas de corpos enfileirados numa praça da Penha, pôde-se perceber: eram quase todos negros.
Atacam-se as consequências, ignoram-se as causas, numa lógica de interpretação intencionalmente alheia às relações do tráfico de drogas, entre outras práticas da criminalidade, com as engrenagens perversas da economia, da forma de governar (de que o Rio é tradicionalmente o melhor exemplo) e das instituições públicas, não raro indiretamente envolvidas em práticas de favorecimento de lideranças do PCC e do Comando Vermelho.
E haja oportunismo e desfaçatez, bem na linha do que professam os governadores do Rio, de Minas e de Goiás, os dois últimos já em plena campanha como virtuais candidatos da extrema direita a presidente.
Para essa gente, não importa que comunidades e vidas sejam sacrificadas em nome da "ordem e do progresso", numa alusão freudiana que remete ao lema positivista do pavilhão nacional. A uma e outra, pouco significa que falte o saneamento, escolas, postos de saúde, creches, áreas de esporte e lazer, espaços de convivência, programas de incentivo à arte e à leitura, pois que é menos custoso para o Estado a compra de "caveirões" com que transportar cadáveres --- e a indiferença diante dos esgotos a céu aberto dentro dos quais se misturam a lama podre dos dejetos e o sangue ainda quente das execuções.
Se é procedente a afirmação de que nem todos os problemas de segurança são de cunho social, não há negar que jamais haverá para os mesmos qualquer solução que ignore a desigualdade social no país, das mais alarmantes mesmo na perspectiva de países pobres.
No desfecho da coluna de hoje, cabe uma derradeira informação: a Polícia Civil do Rio de Janeiro acaba de divulgar a lista parcial de 99 mortos na operação da última terça-feira nos complexos do Alemão e da Penha. Desses, nenhum havia sido identificado pelo Ministério Público na investigação em que se baseou a operação. Ou seja: nenhum deles tinha mandado de prisão relacionado a esse processo.
Diante desse quadro de horror e incertezas, ocorrem-me os versos de Cristina Peri Rossi, poeta uruguaia sobre cuja obra escreverei aqui na próxima crônica: "Tenho uma dor aqui/do lado da pátria".
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