quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Passé composé*

Em "Sempre Paris", no capítulo intitulado "Antes que me esqueça", livro sobre o qual escrevi aqui semana passada, leio fatos curiosos sobre os generais presidentes. Tomo a liberdade de recontá-los aqui.
No auge da ditadura implantada no País com o golpe de 64, dois de nossos generais presidentes visitaram a França na tentativa de vender bem a imagem do governo militar: Ernesto Geisel e João Figueiredo. O primeiro, em 1976. O Palácio do Elysée, ressabiado com as notícias que chegavam do Brasil, e prevendo manifestações contra a comitiva brasileira, naturalmente associada aos horrores praticados pelos militares contra civis (torturas, prisões e perseguições impensáveis), tratou de hospedar o presidente Geisel no Grand Trianon de Versailles, uma forma de evitar ocorrências desagradáveis ao protocolo estabelecido para os dias da visita.
Na tentativa de obter dividendos políticos do que era mesmo um vexame, a embaixada brasileira lançou mão de um tolo expediente: "Pela primeira vez o Palácio de Versailles é disponibilizado a um chefe de Estado plebeu", alardeou aos quatro ventos.
Relevante, não fosse, antes de qualquer outra coisa, uma prova de desprestígio para a comitiva do presidente brasileiro, afastada do Palácio do Elysée como uma visita indesejada pelos franceses, notadamente os estudantes, à época participando ativamente dos acontecimentos políticos no País.
O mais ridículo, sabe-se, ocorrera na véspera da chegada do presidente Geisel a Paris: numa entrevista à televisão francesa, Geisel reconhecera que de fato havia no seu governo "restrições à liberdade", emendando sua fala com uma declaração que entraria para o anedotário das relações entre os dois países: "Mas só para quem quer fazer subversão!". Como se não bastasse, ampliou o arco de suas declarações estapafúrdias com afirmações hilárias aos ouvidos de quem, minimamente, tivesse do Brasil quaisquer informações: "O Brasil vive em liberdade, até demais".
Giscard D'Estaing, então presidente da França, retribuiria a visita dois anos depois, tempo suficiente para que o regime militar cometesse atrocidades que teriam repercussão internacional: líderes da esquerda brasileira continuavam a ser perversamente torturados e mortos, muitos deles tiveram seus corpos atirados ao mar e jamais foram localizados, a exemplo do que ocorrera a Rubens Paiva, em 1971.
Geisel lançara o famigerado Pacote de Abril, um conjunto de leis outorgado pela Presidência da República em 13 de abril de 1977, que, entre outras medidas, fechou o Congresso Nacional.
O jornalista, professor e dramaturgo Vladimir Herzog foi assassinado em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo.**
Em janeiro de 1981, foi a vez de João Figueiredo visitar os franceses. Era fim de governo de Giscard D'Estaing, e o Brasil começava a viver dias melhores. O presidente brasileiro levou à França uma comitiva gigantesca  --- algo em torno de 150 pessoas, sem contar mais de uma centena de jornalistas e numerosos empresários ---, que ficaria hospedada no Hôtel Crillon, um dos mais caros do mundo.
Por uma infeliz coincidência para a comitiva oficial do Brasil, a chegada de João Figueiredo a Paris ocorreria no mesmo dia em que chegava à capital francesa o então líder sindical Luiz Inácio da Silva, cuja agenda já registrara, na mesma viagem, encontros com o papa João Paulo II, o polonês Lech Walesa e o italiano Enrico Berlinger.
Em seu premiadíssimo "Sempre Paris", livro a que fiz alusão na cabeça do texto, Rosa Freire D'Aguiar narra como se deu a visita de Lula à França: "Ele [Lula] chegou a Paris uma hora depois de Figueiredo. No dia seguinte, enquanto um Lula todo encapotado dava na sede do sindicato DFDT (Confédération Française Démocratique du Travail) uma coletiva lotada de jornalistas, não longe dali o general se encontrava com o empresariado francês. Lula encantou os jornalistas. E a nós também: refiro-me a Celso [Furtado] e a mim, quando o recebemos, na companhia do sociólogo Francisco Weffort, então quadro do PT, em nossa casa".
E desfere: "Por uma viravolta feliz, pouco mais de vinte anos depois o sindicalista seria o presidente do país do general, e construiria a melhor imagem que o Brasil já teve no exterior".
*Passé composé é um tempo verbal composto do francês. É formado pelo auxiliar être (ser) ou avoir (ter) mais o verbo no particípio passado. Refere-se a coisas passadas.
 **Herzog apareceu morto numa cela do Doi-Codi. O laudo médico atestava suicídio por enforcamento. A farsa jamais foi aceita pela sociedade, que prestou ao jornalista uma grande homenagem. Sobre o fato, recomendo aos interessados o incontornável "Meu querido Vlado, a história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração" (Objetiva, 2015), de Paulo Markun.


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sempre Paris

No campo da literatura e de outras artes, há algum tempo, premiações e honrarias deixaram de representar, necessariamente, a qualidade de obras e autores. Muito pelo contrário, carregadas de subjetivações e interesses estranhos à matéria de que tratam, essas distinções mais refletem relações de compadrio e motivações escusas, que critério e rigor sobre a coisa avaliada.
Faço essa introdução, um tanto amarga, dirão, e como a incorrer em contradição, para exaltar dois livros vencedores da 66ª edição do Prêmio Jabuti, 2023, cujo resultado foi divulgado nesta semana: "Sempre Paris, crônica de uma cidade, seus escritores e artistas" (Companhia Das Letras, 2023), de Rosa Freire d'Aguiar, e "Salvar o fogo" (Todavia, 2023), de Itamar Vieira Junior.
Li-os mal saídos da fornada, lá pelo início do ano, e considero merecedores da premiação e do prestígio de seus autores. De Itamar, já se tornou clássico o romance "Torto Arado", agora adaptado para o teatro com o musical a fazer sucesso em São Paulo.
"Salvar o fogo", preservando a mesma pegada do romance de estreia de Itamar Vieira Junior, a denúncia das relações de dominação vigentes no Nordeste brasileiro, ganha formato novo e densidade dramática ao tratar da luta de uma mulher (Luzia do Paraguaçu) contra injustiças impensáveis, estigmatizada entre a população por supostos poderes sobrenaturais. Lavadeira do mosteiro na região, Luzia adota como filho o órfão Moisés, a quem educa sob os rigores de uma religiosidade que extrapola os limites da razão, bem ao gosto dos fundamentalismos de hoje, mas com sabor e poesia. Livro denso, profundo, que transita do épico ao lírico com a leveza e a habilidade de um contador de histórias que já conquistou, por merecimento, posição de destaque entre os ficcionistas da atualidade.
Mas é sobre o livro de Rosa Freire d'Aguiar que gostaria de tecer na coluna de hoje algumas considerações. Misto de jornalismo e crônica de memória, "Sempre Paris" é um relato sensível e atento, para não falar de suas imensas qualidades de linguagem, sobre a temporada da autora na capital francesa dos anos 70 até 1990.
É disso, por exemplo, que trata a parte introdutória do volume, intitulada "Antes que me esqueça", uma narrativa marcada por uma capacidade de observação notável, a que se soma o estilo elegante da escrita de Rosa Freire.
Aos que conhecem Paris, ou se assumem apaixonados pela cultura francesa, o texto (re)conduz com maestria pelas ruas e avenidas, praças, bares, bistrôs e livrarias de uma cidade de fato encantadora, com seus mistérios e seduções, mas acima de tudo com os sortilégios que fazem de Paris a mais desejada das cidades. Que o digam, escritores, pintores, músicos, cantores, atores e intelectuais, políticos, filósofos ou simples "sonhadores" de campos os mais diversos.
De fato, "Paris é uma festa", como aliás a descreveu em livro memorável o escritor Ernest Hemingway (1899-1961). Vai além, volta-se, ressignificando-os, para acontecimentos históricos da conjuntura internacional: o processo de redemocratização na Espanha; os ataques de Israel aos campos de refugiados palestinos, numa prova consistente de que se trata de tentativas de genocídio recorrentes, a exemplo do que se vê nos dias atuais.
Como a dar voz à própria cidade, a partir de seus habitantes ilustres, franceses ou não, a segunda parte do livro de Rosa Freire d'Aguiar alteia-se em conteúdo intelectual. São entrevistas importantes, originais, surpreendentes, densas, com escritores, filósofos etc., gente de envergadura intelectual e artística: Alberto Cavalcante, Conrad Detrez, Cortázar, Ernesto Sabato, Simenon, Françoise Giroud, Simone Veil, Roland Barthes e Raymond Aron (sua última entrevista), entre outros.
Livro para ler e ter ao alcance da mão. Recomendo.  

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O amor não é necessário

Li, durante a semana, o recém-lançado (e recomendabilíssimo!) "Clarice Lispector, entrevistas", publicado pela Rocco com organização de Claire Williams, da Universidade de Oxford. Sobre o livro escreverei em coluna das próximas semanas, mas o farei transversalmente em alusão a uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas realizadas em diferentes jornais e tevê pela autora de "Perto do coração selvagem": "O que é o amor?".
A pergunta me fez retornar a uma crônica publicada no livro "Do amor e outras crônicas", de minha autoria, que tomo a liberdade de publicar neste espaço do eclético Segunda Opinião. Vamos ao texto.
Durante happy hour, amigos conversamos sobre cinema e um deles levanta a seguinte questão: "Que cena lhe é mais marcante sobre o amor?". Cinéfilo inquieto cito uma cena de "Cinema Paradiso" me emociona muitíssimo todas as vezes que revejo o belo filme de Tornatore. Alguém cita a soberba cena do aeroporto no filme "Casablanca": "... nós sempre teremos Paris". Um outro nos desconcerta ao lembrar o encontro de Dean Stanton e Nastássja Kinski em "Paris Texas". Uma amiga volta à comovente passagem do xaroposo "Love Story", em que Ali McGraw diz para Ryan O`Neal: "Amar é ter jamais de pedir perdão!". Discute-se o perdão, o que é o amor, na esteira do filme dirigido por Arthur Hiller.
Um tanto polemista, considero a fala de Ali McGraw uma ingênua e idealizada compreensão desse sentimento ao mesmo tempo tão simples e tão complexo. Acho que o amor vai mudando no ritmo das mudanças que os tempos nos impõem. O amor que não recebe e não dá o perdão, não é amor. É paixão, fogo de palha, emoção esférica, demasiada febril para ser considerada amor. É algo dionisíaco, é irmã da loucura, como quis Drummond. Mas, afinal, o que é o amor?
O amor é sentimento plano, apolíneo, coisa serena, com pés no chão e olhar para o infinito.
Por isso, na contramão do que está no clássico adolescente dos anos 70, amar é saber dar e pedir perdão. Se não há perdão e a necessidade de que ele exista, amor não é. É paixão, é desejo efêmero, é fogo que arde, ferida de que se cura na brisa mansa da antemanhã.
A Filosofia, desde que se a compreenda como uma interpretação racional da realidade, oferece-nos diferentes conceitos do amor e da paixão. Para Platão, por exemplo, o amor/paixão é uma enfermidade do coração. É o amor Eros, que é desejo, o que leva o amante a cometer desmandos, a querer a maravilha da quase posse do objeto amado: "Quero tê-lo perto, quero protegê-la, quero cuidá-la, pois que é coisa minha!". Daí surge o ciúme delirante, que impede o amor de acontecer, esse "monstro dos olhos verdes" de que nos falou Shakespeare.
Volto ao que conversávamos à mesa do bar, e o debate enche-se de entusiasmo, acalora-se, afloram os exemplos, impõem-se as convicções mais enraizadas da subjetividade de cada um. Deslizamos para o campo da filosofia barata, e nos damos ao gratuito exercício das definições. O que é o perdão? "Perdoar é esquecer", diz alguém, a que outro contesta. Agarra-se a Hannah Arendt: "O perdão não é sinônimo de esquecimento. O perdão é a lembrança". Aplaudo, pois que não precisa do perdão aquilo de que somos capazes de esquecer. O perdão é algo indispensável para aquilo que, permanecendo vivo na memória, cicatriza pela força do amor, pelo saber compreender, pelo desejo da reconciliação. Do contrário, terá sido "beicinho", jogo passional, um tipo de charme ardiloso e vulgar.
E vamos em frente, esses contendores do bom combate, a dar espaço às amenidades, ao anedotário da semana, muito mais propícios para a boa hora, quando os telefonemas das esposas já formalizam a irrecusável convocação.
Não sem antes, já sobre a mesa a "saideira", recordar "Cenas de um casamento" e a antológica fala de Liv Ullmann: "... ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas, se quiser uma descrição detalhada, vá à Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. Se Paulo estiver certo sobre o que é o amor, acho que ninguém o vivencia. Mas em discursos de casamento e outras situações sociais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário."
Antes de nos despedirmos, pode-se concluir, cito eu a cena inesquecível. Está em Ingmar Bergman.
  

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A beleza salvará o mundo

A frase é de Dostoiévski e aparece em pelo menos dois romances do escritor russo. Mas o seu simbolismo ganha peso no delicado momento em que o ideário neofascista ganha corpo ao redor do mundo com a vitória da ultradireita nos Estados Unidos.
A trazer alento ao que poetiza o autor de "Os irmãos Karamazov" (1879), estreia nesta quinta-feira 7, nos cinemas do País, "Ainda estou aqui", o aclamado filme de Walter Salles sobre os horrores da ditadura militar no Brasil a partir da destruição de uma família durante os anos de chumbo.
Não bastasse o que traz de belo artisticamente falando, o filme lança luz sobre o que está por trás do festejado avanço da extrema direita após a vitória de Donald Trump e seus assanhados reflexos no Brasil sob o manto do que existe de mais arcaico e perverso em matéria política: falência dos direitos fundamentais do homem, negacionismo ideológico, retrocesso geopolítico, exaltação da tortura e dos torturadores, desprezo pelas mulheres, pela comunidade LGBTQIA+, tentativa de extermínio das comunidades indígenas, liberação de armas e corrupção desenfreada.
Sem esquecer que o filme de Walter Salles reúne condições reais de arrebatar pelo menos um Oscar numa das seguintes categorias: melhor filme internacional (melhor filme em língua estrangeira), melhor diretor (Walter Salles), melhor atriz (Fernanda Torres), ator coadjuvante (Selton Mello), roteiro adaptado (Murilo Hauser e Heitor Lorega) e montagem (Affonso Gonçalves).
"Ainda estou aqui", sabe-se, foi laureado com o prêmio de melhor roteiro em Veneza, além de alardeado pela imprensa italiana como verdadeira obra-prima.
Com roteiro adaptado do livro homônimo de Marcelo Paiva, o filme narra o drama da família do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado pelo regime militar nos anos 1970. Mas o assassinato de Paiva, pai do escritor Marcelo Paiva, como que serve de pano de fundo para a trágica trajetória de sua família, tendo à frente a viúva Eunice, interpretada por Fernanda Torres.
Numa atitude que lembra grandes heroínas da literatura e do cinema (e tantas mulheres simples do País durante a ditadura militar), Eunice teve de encontrar forças quase inumanas para enfrentar as dificuldades financeiras e emocionais de sua família, e, sobretudo, conseguir o reconhecimento legal de que Rubens Paiva fora brutalmente assassinado pelo governo militar.
Por essas e outras razões, que extrapolam os limites da arte, "Ainda estou aqui" deve ser recebido com entusiasmo também no Brasil. Conforme declarou Walter Salles em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, "O filme é um exercício de reconstrução da história pessoal [de Rubens Paiva] mas também coletiva".
Em boa hora, pois, "Ainda estou aqui" presta-se a mostrar como os regimes autoritários de extrema direita geram sofrimento e dor, quase sempre disfarçados de nacionalistas e de combate ao que, imprecisamente, definem como "comunismo", bem na perspectiva do que se tem visto no Brasil desde 2018.
Como a ratificar a poética afirmação de Fiódor M. Dostoiévski, o filme de Walter Salles constitui oportuno exemplo de que a beleza haverá de salvar o mundo.