quinta-feira, 24 de julho de 2025

Embaixo do azul suburbano

Quando, dia desses, escrevi sobre minha temporada em Friburgo, amparando-me em livro de memórias de viagens, um leitor quis saber: "Por que, estando na Suiça, pensava no Brasil?" Faltando-me, no calor da curiosidade alheia, palavras para discorrer de modo talvez mais convincente sobre o porquê, ou, não compreendendo bem as razões por que me formulara tal indagação, preferi ser taxativo: "Porque nunca esqueço de minhas raízes, telúrico que sou!" 
De Fernando Pessoa, ocorrem-me agora os versos antológicos: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."
É assim que se dá comigo. Viajando por este mundo afora, mesmo diante das belezas mais deslumbrantes, invariavelmente espoca no peito a saudade telúrica, provinciana, da minha aldeia distante. Não raro, na solidão da lembrança, tenho a pueril impressão de que o céu de Iguatu é o mais belo, e suas noites as mais estreladas. Quando me encontro longe, bem longe da 'terrinha', é nela que, inesperadamente, penso, como que para haurir energias e revigorar a minha empolgação com a vida. Penso na força das águas barrentas do meu Jaguaribe, quando, tempo de chuva, há águas barrentas no meu Jaguaribe.
É ali, na vida vidinha da cidade do interior, que estão as minhas raízes, alguns dos grandes amigos e muitas das muitas pessoas que me são indispensáveis. De Iguatu, na linha do que ditou um outro poeta, trouxe comigo esse jeito torto de encarar a vida. De ver poesia em tudo. Por isso, voltam-me os versos do bardo português.
"Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente. É mais livre e maior o rio da minha aldeia."
Iguatu, quando nasci, a 29 de março de 1956, naturalmente, era uma cidade ainda mais provinciana. Não havia a luz elétrica de Paulo Afonso, mas uma casa de forças, a Casa do Motor, como se dizia então, de que resultava a energia a diesel. Às nove em ponto, depois de três sinais que constavam de cortes rápidos da luz, à maneira das batidas de Molière, dominava a escuridão. Carros, uns dois ou três; poucos médicos, um advogado e nenhum dentista. Luis Barreto, que fazia as vezes de cirurgião, 'arrancava' dentes em fila, usando uma só seringa e o mesmo boticão. Não havia emissora de rádio, muito menos cinema. Minto: havia a Rádio Iracema, e o programa "Lembrei-me de você". O Cine Alvorada, que forjaria o cinéfilo, seria inaugurado pouco depois. Na rua em que nasci, a Rua do Fogo, aparado por uma parteira, os homens trafegavam em suas montarias, o que deixava o chão de paralelepípedo literalmente emporcalhado. E dos ficus-benjamins, caiam-me nos olhos, ardendo como pimenta braba, os lacerdinhas, como eram apelidados uns pequeninos insetos provenientes da Ásia.
Meu pai, que trabalhara com Zé Bezerra, no armazém poeticamente chamado de Escondidinho, teria em casa, mais tarde, ao redor dos meus sete, oito anos, um pequeno comércio, a "bodega de Deusdedith", onde se vendia um pouco de quase tudo, falando do estritamente necessário para abastecer uma despensa. Além dos enlatados, bolachas, queijo, feijão, arroz, açúcar etc., reservara um espaço para vender bebidas. Ali, sobremaneira aos sábados, reuniam-se quinze, vinte pessoas, num espaço que, confortavelmente, comportaria seis. Quando um ou outro se excedia, o que não era raro acontecer, e a embriaguez tornava frouxa a língua, na mansidão de um frei beneditino, meu pai se aproximava, e, pegando delicadamente no braço do bebum, apontava o caminho da porta. Se o indivíduo insistia em rejeitar o convite, a mão doce de meu pai ia aumentando a pressão na proporção exata da intransigência do importuno freguês. Uma vez, apenas, vi a coisa querer esquentar, mas logo a turma do "deixa-disso" chegou para aquietar. Na pequenez dos seus 1,60 m, e manso como um cordeiro, a figura de meu pai agigantava-se diante do desacato de quem quer que fosse. A índole, pacífica; a coragem, vez e outra, não.
Iguatu, tal qual a Penny Lane de Paul McCartney, numa canção que faria sucesso na minha adolescência, […] "está nos meus ouvidos e nos meus olhos, / lá embaixo do céu azul suburbano."



quinta-feira, 17 de julho de 2025

O canto de sereia das estradas*

"Fortíssimos consórcios, eu desejo/Há muito já de andar terras estranhas,/Por ver mais águas que do Douro e Tejo./Várias gentes e leis e várias manhas.", está n'Os Lusíadas, de Camões. Nos ensandecidos das estradas, nos amantes dos mais distantes rincões.
Quem costuma viajar de carro por certo terá reparado: é comum depararmos com viandantes solitários pelas estradas. São seres esgueiriços, incomunicáveis, ivariavelmente mal vestidos, de pés descalços, cabelos e barbas enormes, verdadeiros anacoretas a trilhar caminhos que parecem levar a destinos ignorados.
A estrada é mesmo a metáfora do imponderável. Está em Dante, "No mezzo del camin de nostra vita me retrovai per uma selva oscura" – ou seja: "No meio do caminho de nossa vida me encontrei em uma selva escura." Está em Drummond, "No meio do caminho tinha uma pedra." Em Bilac: "E paramos de súbito na estrada/Da vida: longos anos, presa à minha/A tua mão, a vista deslumbrada/Tive, da luz que teu olhar continha", e outros incontáveis poetas da literatura ocidental. As conotações são as mais diversas, mas sempre o caminho a sugerir a trajetória de cada homem, o vir-a-ser de nossa existência.
Em Paris, Texas, o clássico de Wim Wenders, vemos Travis caminhando por uma estrada deserta, como Proust, à procura de um tempo perdido. Carlitos faz o mesmo, ingênuo e terno, n'O adorável vagabundo --- para desaparecer na estrada feita "de pó e de esperança."
Acho que todos nós, que amamos viajar, temos um pouco desse componente quixotesco a nos mover ao encontro do improvável. A estrada metaforiza à perfeição essa prazerosa busca do desconhecido, ainda que se tracem projetos prévios e bem pensados. Há sempre a incógnita, o lado imprevisível da linha traçada. O surpreendente.
É assim que me sinto ao viajar. Embora tenha o costume de abrir o mapa sobre a mesa e percorrer com o lápis o trajeto a ser seguido, não raro mudo o destino programado, crio alternativas novas de chegar ao destino imaginado. A viagem torna-se mais curiosa e emocionante, as novidades surpreendentes, os lugares mais bonitos e mais sedutores, pela simples razão de serem novos e impensados os caminhos.
A vida bailarina, o viravoltear das coisas.
As viagens internacionais, por óbvio, as fiz de avião ou navio. São hoje em torno de 25 países --- vinte e três, para ser mais preciso. Mundos estranhos a atravessar minha vida, deslumbrando o menino da província que acalento no mais profundo de mim, pois que, à maneira de Milton e Fernando Brant, "há um menino, há um moleque/morando sempre em meu coração./Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão".
No écran das retinas, belezas impagáveis; no coração, histórias magníficas, imagens vivas de cidades nascidas dos sonhos de homens impossíveis: São Petersburgo, de Pedro, "O Grande", e de Dostoiévski, intérprete da loucura humana a um só tempo bela e insuportavelmente dolorosa. De Estocolmo, de Bergman e Strindberg, de Paris, de Victor Hugo, Flaubert, Sartre e Zola.
Em pensamento, volto a caminhar à beira do Sena, vendo à distância a Catedral de Notre-Dame, com suas torres imponentes, seu pináculo espetacular, seus portais ornamentados de esculturas e a sedutora rosácea central.
Agora, mais próximo, seus arcobotantes monumentais, na ponta leste da igreja, e, no alto, ameaçadoras, as suas famosas gárgulas. Ocorre-me lembrar Quasímodo, o simpático corcunda criado pelo gênio de Victor Hugo.
A magia das viagens, o canto de sereia das estradas.
*Do livro "Memória de viagens".


quinta-feira, 10 de julho de 2025

Belo país, outro mundo

Tomo nas mãos, e abro aleatoriamente, minhas "memórias de viagens". Ocorrem-me os versos de Imre Madách (1823-1864), em A Tragédia do Homem: "O que aqui é verdade sempiterna,/em outros mundos talvez seja absurdo,/onde o normal talvez seja o impossível."

Estou em Friburgo, na Suíça. Aqui sou hóspede de Vadinho e Paulinho da Gigi, dois iguatuenses para os quais o mundo se tornara pequeno. É um apartamentinho quarto e banheiro, simplesmente mobiliado com móveis arrebatados da rua. Neste país de bonecas é comum as pessoas abandonarem na calçada peças de sua mobília, sempre que adquirem outras novas. A cama, o armário de roupas, a pequena tevê e o freezer haviam sido adquiridos assim. Recordo que esse fato me deixou estupefato. Lembrei do meu país de tantos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, para muitos do quais ter em casa estes utensílios era apenas um sonho improvável.
Havia à disposição dos estudantes estrangeiros um belo casarão ali perto. Era conhecido como Centre Libre, ricamente instalado com duas imensas cozinhas, salão de jogos, vários banheiros, biblioteca e equipamentos eletrônicos de última geração. Nas cozinhas, havia grandes armários divididos em pequenos espaços onde os usuários armazenavam açúcar, sal, manteiga, biscoitos e enlatados. Não tinham fechadura, suas portas trancavam ao leve toque de um ímã. Cada pessoa dispunha de um desses espaços e, muitas vezes, pude presenciar estudantes europeus de outros países interromperem o preparo da comida a fim de comprar, por exemplo, sal ou azeite que acabara, e, por esquecimento, não fora reposto. Impressionava-me que nenhum deles se sentisse à vontade para abrir a portinha ao lado e lançar mão daquilo de que estivessem necessitando. Envergonhava-me saber que os meus anfitriões não fizessem o mesmo. Eu não tinha lugar para colocar as mãos ao ver Paulinho abrir as portinhas uma a uma, até encontrar o que procurava para preparar o lanche. Hoje, corre mundo, e faz sucesso com uma empresa de turismo. Foi bom amigo.
A correção do povo suíço, nesse aspecto, é algo realmente impressionante. Certa vez, para citar um exemplo, visitando com um amigo friburguense um ponto turístico da cidade, deparei com uma objetiva de uma máquina fotográfica, pelo visto sofisticada, abandonada sobre uma mureta. Como não houvesse ninguém por perto (se não me engano, por instantes estávamos sós ali), tomei-a nas mãos, a um tempo surpreso e curioso, pelo que fui de imediato repreendido: – "Não toque, o proprietário haverá de voltar à sua procura!"
Aos poucos, no convívio de uma realidade tão diferente daquela a que estamos habituados, foi ficando mais claro para mim o conceito do que seja a educação e do quanto esse valor é importante na vida de um povo. Das minhas impressões, Vadinho discordava, alegando que os bancos suíços constituem o destino de tanto dinheiro roubado mundo afora. Mas, isso são outros quinhentos.
Intrigava-me que os ônibus não tivessem o que no Brasil chamamos 'trocador', aquele sujeito encarregado de receber os tíquetes, os quais são adquiridos em cada ponto com a simples inserção de uma moeda. Assim, não agindo com honestidade, o usuário pode se deslocar gratuitamente, o que via muitos brasileiros fazer.
Nas bancas de revista, que mais adequado seria chamar de pontos de venda de revistas e jornais, posto que não ofertam a imensa variedade das nossas, no Brasil, faz-se o mesmo que aos tíquetes de ônibus, com a diferença de que o acesso aos exemplares é absolutamente livre. Deixa-se a moeda, leva-se o jornal ou a revista. Vadinho e Paulinho, meus anfitriões, estavam sempre em dia com as notícias e os acontecimentos do mundo. Sem custos, é bom lembrar.
Naquele tempo era chocante para os turistas latinos encontrar tantos autosserviços para o que quer que fosse. Quando escrevo estas memórias, felizmente, muitos estão à disposição dos brasileiros em qualquer grande centro. Não vulneráveis quanto os suíços, é importante frisar, mas confiados à honestidade e à retidão de quem deles necessite.
A Suíça é, como disse, uma casa de bonecas. Nenhum país que conheço é tão rico quanto esse em beleza, com suas montanhas cobertas de neve, suas simpáticas estações de esqui, seus chalés de cores vibrantes, suas instituições culturais e suas muitas cidades medievais. Friburgo, a cidade em que estou à altura dessas memórias, é uma delas.
Fundada por volta de 1157, esta encantadora cidade está situada às margens do rio Sarine. Aqui, fala-se indistintamente o alemão ou o francês, mas é esta a língua dominante. Nas universidades, contudo, o alemão e o francês são recorrentes e, em algumas, o italiano, a terceira língua oficial do país. Além do romanche, o dialeto falado na Suíça oriental.
A poucos minutos de Lausanne e Berna, em viagem de trem, a que vou com alguma frequência durante os meses de minha permanência na Suíça, Friburgo destaca-se como atração turística europeia pelo seu centro histórico medieval, totalmente preservado. A sua catedral é exuberantemente bela e sua arquitetura gótica anuncia-se à distância com sua torre de mais de setenta metros.
Os dois meses e meio, três meses, que passo em Friburgo assinalam as menores temperaturas em cinquenta anos. O frio é inclemente e neva com frequência, o que, curiosamente, torna a baixíssima temperatura um pouco mais suportável. Coberta de neve, no entanto, a cidade é ainda mais bonita. Paradisíaca, é razoável dizer.
A Tragédia do Homem, peça de que citei os versos do poeta húngaro, é um drama de cunho filosófico que narra a história da humanidade através dos sonhos de Adão e Eva sob a influência de Lúcifer. De cunho existencial, explora o sentido da vida e a luta do homem por um mundo melhor. Tem um final apocalíptico, nada condizente com o país a que me refiro no texto. Por que, então, me ocorreram seus versos? Ao certo não saberei dizer. Que o leitor busque uma explicação. 




terça-feira, 1 de julho de 2025

Sobre cidades*

Não amo, sem alguma restrição, Recife e Salvador. Um tipo de ingratidão, uma vez que fui sempre muito feliz nas vezes em que estive numa cidade e outra. E não foram poucas. Falta à primeira, a leveza de Fortaleza, à segunda, a elegância de São Paulo, ainda que mal compare. Mas é belo seu centro histórico; irresistível, sua comida. E que Brasil circula pelas ruas, pelos becos do Pelourinho...

João Pessoa e Natal, embora simpáticas e charmosamente provincianas, ainda não marcaram a minha vida sob qualquer aspecto. Uma viagem aqui, outra acolá, mas nenhuma que tenha me ocasionado aquele prazer de estar ali. Maceió, já não digo. Acho a capital alagoana um degrau acima em termos de regozijo, de festividade. As praias de Alagoas são maravilhosas, muito mais que as praias de Natal, que andam na moda por esses tempos em que escrevo minhas memórias.
Belo Horizonte é uma das minhas paixões. Se falta a praia, o elemento natural que pesa muito no meu senso de valoração turística, sobra à capital mineira o encanto da cidade inteligente. Inteligente, este é o adjetivo que se aplica bem a BH, pelo que se respira aqui de cultura. Gosto de Belo Horizonte desde muito antes de conhecê-la, acho que tocado pelos livros de Pedro Nava, o maior dos nossos memorialistas.
Estudei na PUC de Minas, onde fiz mais de uma especialização em literatura brasileira. Além disso, fui a Belo Horizonte inúmeras vezes, algumas delas de passagem para Ouro Preto e outras cidades históricas, época em que fazia estudos sobre o barroco de Minas Gerais. Fiz 'morada' num hotel da Via Contorno, que tinha este nome e fica localizado ali nas proximidades do Felício Roxo, que é um hospital muito conhecido da cidade.
Anos depois, na Escola de Belas Artes da UFMG, fiz o doutorado, mergulhando nas águas profundas do "planeta Bergman". E Minas, para todo o sempre, passou a fazer parte de minha vida em termos intelectuais e artísticos. Terra de Drummond, de Nava, de Affonso Romano de Sant'Anna, de Adélia Prado, de Cyro dos Anjos, de Silviano Santiago... para citar uns poucos.
O mineiro, em que pese o preconceito de ser um povo desconfiado, é extremamente afetivo e sabe receber como poucos no Brasil.
Ademais, a cidade é um importante centro de literatura e teatro. Considero o teatro de Belo Horizonte, o fazer teatral, quero dizer, o melhor do país sem contar o eixo Rio-São Paulo. O grupo Galpão é hoje uma referência obrigatória. Com uma linguagem própria, através da qual se vai de Stanislávski a Brecht, de Tchékhov a Shakespeare, o grupo é sensacional. Por último, vi do Galpão uma colagem sobre Moliére, excepcional, nada que se compare, contudo, ao impacto que me causou a releitura de "Romeu e Julieta", há alguns anos. Puro Shakespeare, em que pese o "disruptivo" da montagem.
Além disso, como se pensa cultura nessa cidade! Os barzinhos de BH são maravilhosos e aqui se pode discutir literatura com a mesma naturalidade com que se discute o clássico Cruzeiro x Atlético de logo mais, no Mineirão.
Dia desses, voltei a BH. A cidade guarda o mesmo encanto, mas suas montanhas se dão a ver desfiguradas, objeto da sanha capitalista. Agora é a Serra do Curral, marco geográfico e cultural da capital mineira, que se dobra ante as ameaças da mineração. Que importa se é tombada pelo IPHAN, se foi um dia referência para a fundação de Belo Horizonte?
"Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te meu Triste Horizonte e derradeiro amor", voltam-me aos tímpanos as palavras de Drummond.  
Tempos atrás, enquanto estudava a poética de Carlos Drummond de Andrade, decidi ir a Itabira, cidade em que nascera o poeta. Estava em BH havia alguns dias, pouco menos de um mês, quero crer. Fui.
Itabira do Mato Dentro, como se chamava antes, fica a uns cem quilômetros de Belo Horizonte. É conhecida, quem sabe se por influência do filho ilustre, como a "cidade da poesia". Há nos lugares, em muitos, placas com poemas que assinalam 'a presença' de Drummond ali. Fiquei um dia inteiro em Itabira e visitei lugares interessantes, como o Museu Carlos Drummond de Andrade e o centro cultural que leva seu nome. Entrevistei pessoas que conviveram com o poeta e uma senhora, de quem (imperdoável) esqueço o nome agora, a quem está confiado o legado do poeta na cidade. Foi interessante, mas nada que pudesse acrescentar de muito significativo ao que já sabia sobre o autor pesquisado.
Lembro, contudo, que um tanto emocionado, diante da casa em que nasceu Drummond, não me contive e, de cor, interpretei para a minha companheira, à época, o clássico "Confidência do Itabirano", o desconcertante poema do nosso poeta maior: "Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso, sou triste, orgulhoso: de ferro. / Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. / E esse alheamento do que na vida é porosidade, / e comunicação. // A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, / vem de Itabira, de suas noites brancas, sem / mulheres e sem horizontes. // E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, / é doce herança itabirana. // De Itabira trouxe prendas diversas que / ora te ofereço. / Esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; / este São Benedito do velho santeiro Alfredo / Duval. / este couro de anta estendido no sofá da sala / de visitas; / este orgulho, esta cabeça baixa… // Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Só então observei, sensibilizado, que rolavam daqueles olhos grandes e lindos, duas lágrimas. Serenamente, tão serenamente como agonizava aquela tarde de janeiro entre montanhas.
*Fragmento do capítulo sobre cidades. Memórias de viagens.