Quando, dia desses, escrevi sobre minha temporada em Friburgo, amparando-me em livro de memórias de viagens, um leitor quis saber: "Por que, estando na Suiça, pensava no Brasil?" Faltando-me, no calor da curiosidade alheia, palavras para discorrer de modo talvez mais convincente sobre o porquê, ou, não compreendendo bem as razões por que me formulara tal indagação, preferi ser taxativo: "Porque nunca esqueço de minhas raízes, telúrico que sou!"
De Fernando Pessoa, ocorrem-me agora os versos antológicos: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."
É assim que se dá comigo. Viajando por este mundo afora, mesmo diante das belezas mais deslumbrantes, invariavelmente espoca no peito a saudade telúrica, provinciana, da minha aldeia distante. Não raro, na solidão da lembrança, tenho a pueril impressão de que o céu de Iguatu é o mais belo, e suas noites as mais estreladas. Quando me encontro longe, bem longe da 'terrinha', é nela que, inesperadamente, penso, como que para haurir energias e revigorar a minha empolgação com a vida. Penso na força das águas barrentas do meu Jaguaribe, quando, tempo de chuva, há águas barrentas no meu Jaguaribe.
É ali, na vida vidinha da cidade do interior, que estão as minhas raízes, alguns dos grandes amigos e muitas das muitas pessoas que me são indispensáveis. De Iguatu, na linha do que ditou um outro poeta, trouxe comigo esse jeito torto de encarar a vida. De ver poesia em tudo. Por isso, voltam-me os versos do bardo português.
"Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente. É mais livre e maior o rio da minha aldeia."
Iguatu, quando nasci, a 29 de março de 1956, naturalmente, era uma cidade ainda mais provinciana. Não havia a luz elétrica de Paulo Afonso, mas uma casa de forças, a Casa do Motor, como se dizia então, de que resultava a energia a diesel. Às nove em ponto, depois de três sinais que constavam de cortes rápidos da luz, à maneira das batidas de Molière, dominava a escuridão. Carros, uns dois ou três; poucos médicos, um advogado e nenhum dentista. Luis Barreto, que fazia as vezes de cirurgião, 'arrancava' dentes em fila, usando uma só seringa e o mesmo boticão. Não havia emissora de rádio, muito menos cinema. Minto: havia a Rádio Iracema, e o programa "Lembrei-me de você". O Cine Alvorada, que forjaria o cinéfilo, seria inaugurado pouco depois. Na rua em que nasci, a Rua do Fogo, aparado por uma parteira, os homens trafegavam em suas montarias, o que deixava o chão de paralelepípedo literalmente emporcalhado. E dos ficus-benjamins, caiam-me nos olhos, ardendo como pimenta braba, os lacerdinhas, como eram apelidados uns pequeninos insetos provenientes da Ásia.
Meu pai, que trabalhara com Zé Bezerra, no armazém poeticamente chamado de Escondidinho, teria em casa, mais tarde, ao redor dos meus sete, oito anos, um pequeno comércio, a "bodega de Deusdedith", onde se vendia um pouco de quase tudo, falando do estritamente necessário para abastecer uma despensa. Além dos enlatados, bolachas, queijo, feijão, arroz, açúcar etc., reservara um espaço para vender bebidas. Ali, sobremaneira aos sábados, reuniam-se quinze, vinte pessoas, num espaço que, confortavelmente, comportaria seis. Quando um ou outro se excedia, o que não era raro acontecer, e a embriaguez tornava frouxa a língua, na mansidão de um frei beneditino, meu pai se aproximava, e, pegando delicadamente no braço do bebum, apontava o caminho da porta. Se o indivíduo insistia em rejeitar o convite, a mão doce de meu pai ia aumentando a pressão na proporção exata da intransigência do importuno freguês. Uma vez, apenas, vi a coisa querer esquentar, mas logo a turma do "deixa-disso" chegou para aquietar. Na pequenez dos seus 1,60 m, e manso como um cordeiro, a figura de meu pai agigantava-se diante do desacato de quem quer que fosse. A índole, pacífica; a coragem, vez e outra, não.
Iguatu, tal qual a Penny Lane de Paul McCartney, numa canção que faria sucesso na minha adolescência, […] "está nos meus ouvidos e nos meus olhos, / lá embaixo do céu azul suburbano."