quinta-feira, 24 de abril de 2025

Capital Mundial do Livro


Como no verso de uma de suas mais aclamadas canções, o Rio de Janeiro continua lindo. Vimos à cidade, entre outras coisas, para assistir ao show "Tempo Rei", último da carreira de Gilberto Gil em palco. Enquanto esperamos o início do espetáculo, entre um e outro gole de vinho "safra-ruim", comprado num quiosque próximo de onde estamos, fico a reparar no cenário parcialmente iluminado.
Há, nos momentos que antecedem o início de um show, de uma peça de teatro ou mesmo de um filme, antes que se apaguem as luzes e se abram as cortinas, algo indefinível, uma magia sem nome, como uma sensação de estranhamento, um misto de curiosidade e cúmplice emoção. Noutras palavras: há na arte algum sortilégio, uma força que emana do improvável e toca fundo nossos corações.
É o que sinto, enquanto trocamos impressões sobre as instalações da casa de shows, no coração da Barra, e, na contramão do que é recorrente em grandes eventos do gênero, o nível de organização, que nos impressiona. Tudo certinho, bem cuidado, desde a recepção, a passos da entrada, por moças e rapazes vestidos a caráter com roupas alusivas ao show, à acomodação propriamente dita --- o palco gigantesco a nossa frente.
No alto, uma espiral metálica que lembra o viravoltear de uma serpentina. Só começado o show, Gil conduzindo-se como se fora um menino, da vastidão de seus mais de oitenta anos, voz e violão arretados, pudemos perceber que serve o inusitado adereço para projetar sobre a multidão a fina poesia do artista baiano, oscilando o público entre o silêncio deslumbrado e a incontida movimentação de uma dança que se confunde com um ritual sagrado.
Na última turnê de uma carreira exemplarmente vitoriosa, Gilberto Gil parece cantar como nunca, como se o tempo, ao invés de lhe estragar a voz, desse a ela um brilho novo, uma afinação que se tornou irretocável, um jeito de escandir palavras e articular falsetes que dizem, no apagar das luzes de uma carreira brilhante, o que só aos grandes artistas, à maneira de Dostoiévski, é dado dizer: "A beleza salvará o mundo".
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De agora até abril do próximo ano, o Rio de Janeiro é a Capital Mundial do Livro. De Estrasburgo, França, a Cidade Maravilhosa recebeu neste mês a "tocha literária", e a empunhará como símbolo da luta dos poderes constituídos em favor da leitura, da literatura, do livro.
Do palco do Teatro Municipal, ancorando-se nas potências da Inteligência Artificial, ouvem-se as vozes de Machado de Assis, Olavo Bilac e Rui Barbosa, como se renascendo das páginas de livros gigantes que decoram o cenário do mais belo dos teatros brasileiros na solenidade de abertura da efemeridade.
O negativismo das previsões sobre a sobrevivência do livro físico, golpeado pelo livro eletrônico e outras mídias digitais, é felizmente contrariado: pesquisas apontam que o mercado do livro eletrônico atinge hoje, no Brasil e na Europa, algo em torno dos 6% ou 7% dos livros vendidos. Ao redor dos 94% do mercado, pasme o leitor, são de livros convencionais, esses que folheamos em contato direto com o papel, de que acariciamos a textura e respiramos o perfume inconfundível de que se enchem os nossos pulmões antes da boa leitura.
A contar positivamente na busca de incentivos ao hábito de ler, entre outras ações que se traduzem na reabertura de livrarias e melhoramento das bibliotecas existentes, salta aos olhos a belíssima iniciativa governamental de proibir o uso de celulares nas escolas. Há poucos meses da adoção da medida, já se constatam avanços no rendimento escolar (em matemática, línguas e interpretação de textos) e aumento na frequência às bibliotecas dos colégios de ensino médio, além de terem caído os eventos associados à prática do bullying e cyberbullying.
A demandar iniciativas, afirmam livreiros e especialistas, ainda constitui um desafio o preço dos livros no Brasil. Não se trata de tabelamento, mas do preço fixado pelos editores, hoje brutalmente elevados.
Capital Mundial do Livro, o Rio de Janeiro é, por longo tempo, muito mais que samba, bundas e carnavais. Regozijemo-nos.
 
 
 
 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Simplesmente eu, Clarice Lispector

            "A arte é o vazio que a gente entendeu", C.L.

RIO --- Em companhia do escritor Clauder Arcanjo e de sua gentilíssima Luzia, Liana e eu assistimos, no Teatro I Love Prio, nesta cidade, ao espetáculo "Simplesmente eu, Clarice Lispector". Plasmado em textos, entrevistas, cartas e depoimentos da autora de "Perto do Coração Selvagem" (1943), a montagem tem direção, adaptação e interpretação (irretocável) de Beth Goulart, constituindo um belo apanhado da obra de Clarice --- uma espécie de ode ao amor, à busca da essência do ser humano e do sentido da existência num mundo marcado por tremendas contradições e impensáveis desafios.
Num espaço cênico minimalista, onde se veem apenas um divã, uma cadeira e uma humilde escrivaninha, sobre a qual sobressai uma máquina de escrever portátil, Goulart conduz o espectador pelo fascinante universo de Clarice Lispector, explorando vida e obra da escritora com rigor estético e notável força dramática. Os méritos da montagem, no entanto, vão além da atuação propriamente dita da atriz, como disse, irrepreensível, mas porque resulta não menos feliz enquanto representação do mundo interior de uma mulher cujo perfil psicológico ganha corpo e voz numa escrita a um só tempo íntima e universal.
Ao público mais familiarizado com a ficção de Clarice Lispector, já no começo da peça, saltam aos olhos fragmentos extremamente bem selecionados de livros representativos da escritora, desde o romance de estreia, "Perto do Coração Selvagem" (Joana), a outros títulos de sua fase mais madura, com destaque para "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" (Lóri) e os contos "Amor" (Ana) e "Perdoando Deus" (A mulher sem nome), este, provavelmente, o ponto mais elevado em termos dramáticos nas quase duas horas de espetáculo.
Por outro lado, como a dar a exata dimensão do domínio técnico da atriz, sobressai a correção com que Beth Goulart internaliza os conflitos pessoais e as diferentes facetas de Clarice Lispector, transitando com igual segurança da ironia sutil ao deselegante de sua conhecida irascibilidade.
Há momentos, sob este aspecto, em que é a voz de Clarice Lispector que parece ecoar pelos espaços do teatro, como se Goulart tão-somente a dublasse em playback, recurso de sonorização fartamente usado em trabalhos do gênero. Não é o que se vê neste belo e por demais convincente "Simplesmente eu, Clarice Lispector". É que a atriz se dedicou com desmedida paixão e rebuscado senso profissional a viver a personagem em toda a sua complexidade: ao lado da técnica vocal esmerada, o corpo responde coerentemente ao que diz a voz, quer quando gesticula, quer quando escande sílabas ou mastiga palavras com a mesma imperfeição prosódica e dicção inconfundível de Clarice Lispector.
Além da interpretação "absoluta" de Beth Goulart, deve-se colocar em evidência outras qualidades do espetáculo: a música original, de Alfredo Sertã, assumidamente inspirada em repertório conhecido de grandes compositores, Erick Satie e Astor Piazzolla, por exemplo, anda em sintonia com as ciclotimias emocionais da personagem e da atmosfera dramática do texto. A luz, de Maneco Quinderé, é outro elemento cênico a merecer destaque, obedecendo com sensibilidade e fina percepção pragmática ao ritmo narrativo da peça, acrescentando beleza e plasticidade à encenação.
Findo o espetáculo, já no hall do teatro, Clauder Arcanjo, especialista na obra dessa que é uma das mais importantes escritoras brasileiras, e eu, simples amante, assim como as duas mulheres, ombreamo-nos com igual entusiasmo e os mesmos rasgados elogios a Beth Goulart, e, por extensão, é óbvio, ao sublime "Simplesmente eu, Clarice Lispector".
 
 
  

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de alguém que chega a Paris numa manhã de sol.
Explicou-se. Ali estão enterrados grandes vultos da humanidade, entre eles, Allan Kardec, o pai do espiritismo. E, para me convencer de que valeria a pena irmos ao Père Lachaise, desfia um rosário de nomes famosos que descansam ali. Sabendo-me amante da literatura, menciona Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Paul Éluard, Marcel Proust, entre outros. Vai à música: Maria Callas, Édith Piaf, Rossini, Frédéric Chopin. Cita pensadores: Pierre Bourdieu, Auguste Comte, Michelet. Atores e cineastas: Sarah Bernhardt, Marcel Camus, Yves Saint-Laurent. E, como sabe que aprecio a pintura, dá-me o golpe fatal: Amedeo Modigliane, Eugène Délacroix, Jeanne Hébuterne…
Levanto-me, traço um café au lait avec petit-beurre, e saímos em direção ao metrô.
O Cemitério Pére Lachaise fica nos arredores do gigantesco centro de Paris, vigésima circunscrição administrativa da capital francesa. É o principal cemitério da cidade e o mais famoso do mundo. Fica no alto de uma colina, de onde se vê Paris. É bastante arborizado e, diferentemente do que se dá na maioria dos cemitérios, o lugar exerce sobre o visitante um certo sortilégio. É mágico. É fascinante estar aqui.
O nome constitui uma homenagem ao confessor de Luís XIV, Père de La Chaise, e seu terreno foi adquirido por Napoleão, em inícios do século XIX. O projeto dessa necrópole foi confiado ao arquiteto Alexandre Théodore Brongniart, em 1803.
É expressivo o número de pessoas que visitam todos os dias este campo santo. Sem que tivéssemos combinado, para que se tenha uma ideia, vamos cruzar com muitas pessoas conhecidas, brasileiros que, como nós, estavam aqueles dias em Paris e com as quais havíamos estado antes, em algum lugar. É curioso como um recanto destinado aos mortos, guarde tanta vida, tanta animação. Aqui, as pessoas riem, brincam, comem sanduíches e bebem refrigerantes. Uma festa. E muita fotografia, claro, que, para todos os efeitos, não é coisa permitida.
Os túmulos lembram monumentos. Repousam sob imensos blocos de pedra, como disse, celebridades. Consta que, pela incomensurável demanda da burguesia parisiense o Pére Lachaise teve de passar por muitas reformas e ampliações. A localização do cemitério, um lugar de difícil acesso, ensejou uma grande insatisfação entre os franceses, até que, para cá, viessem trasladados restos mortais de pessoas importantes da sociedade parisiense. Hoje, é motivo de orgulho para os franceses, e constitui uma das mais procuradas atrações turísticas da cidade.
Logo à entrada, numa pequena via ladeada por pilastras e grossas correntes, deparamos com um mapa do cemitério, em que se veem outras informações relevantes para o visitante. As ruas são pavimentadas, renques de árvores ladeando o caminho.
O primeiro túmulo que visito é o da escritora Colette, em cuja lápide se lê a inscrição sucinta: Ici repose Colette (1873-1954). Em seguida, o de Louis Visconti (1791-1853), arquiteto, um mausoléu imponente, encimado pela figura do artista em posição de descanso. A escultura é, sem si, uma obra de arte em estilo neoclássico do mais elevado nível.
E vou, agora sem a companhia do amigo espírita, que desabalara à procura do jazigo de Allan Kardec, percorrendo as alamedas pavimentadas em cujas laterais estão as sepulturas. Paro aqui, dou uma espiadela ali, demoro numa e noutra, leio as inscrições, os epitáfios, os elogios fúnebres gravados das mais variadas maneiras, sempre atento, contudo, sem jamais perder de vista o significado de estar na morada de muitos dos maiores vultos da história das artes, da filosofia e de tantos outros campos do conhecimento.
Louis-Jacques David (1748-1825) está logo ali. Diante do túmulo do pintor neoclássico, ocorre-me lembrar das suas obras vigorosas, vibrantes, a vocação para registrar os atos heróicos do povo. Vem-me aos olhos, num registro da memória, O Juramento dos Horácios, com que o artista celebra a arte, a glória e o patriotismo da Roma antiga. Vi-o, há poucos dias, no museu do Louvre. É um dos quadros mais belos da história da pintura e faz parte do conjunto de obras de que mais gosto, que mais admiro.
Adiante, lado a lado, dois monstros sagrados da literatura: La Fontaine (1621-1625) e Molière (1622-1673), próximo, a poucos metros, deparo com o mausoléu do pintor Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875). À esquerda, mais simples e não menos belo, o túmulo de outro grande nome das artes plásticas, Dominique Ingres (1780-1867).
E vou, sem perder o entusiasmo, visitando a morada de grandes nomes, paro aqui, passo a vista acolá, anoto uma coisa e outra, fotografo… O diário já cheio de rabiscos.
Agora, a dançarina Isadora Duncan (1877-1927), minutos depois, la famille Gasson-Piaf, onde repousa a genial Édith (1915-1963). Atrevidamente, solfejo La vie en rose, ao que me segue, num francês elogiável, o meu amigo espírita, que voltara finalmente à minha companhia.
E assim, concluímos a visita ao Pére Lachaise, duas ou três horas depois. Não sem antes irmos, ainda, aos túmulos de Oscar Wilde (1854-1900), Marcel Proust (1871-1922), autor que me fascinara com o seu monumental Em Busca do Tempo Perdido, George Bizet (1838-1875), Honoré de Balzac (1799-1850) etc.
Sobre a lousa de mármore dos túmulos, é comum se verem bilhetes, declarações de amor aos que ali repousam. No de Modgliane, para ficar num exemplo, sob pequenas pedras que lhes servem de peso, são incontáveis os papeis com referência à vida desregrada do pintor, um verdadeiro ícone da arte maldita.
Caía a tarde, quando deixamos o Père Lachaise, esta necrópole cheia de encanto, de mistérios, de poesia, que nos toca e emociona  –  e de que nunca vou me esquecer.
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