Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

sexta-feira, 13 de junho de 2025

A dama de preto

Em "Personagem", poema antológico, Cecília Meireles descreve uma personagem silenciosa, sem forma definida, um ser ausente que existe unicamente no universo onírico do eu-lírico. Essa figura, "sem forma e sem nome", é, no entanto, objeto de um desejo indomável, embora exista apenas no "abismo do meu sonho".

Em letra de música de rara beleza, Eduardo Dusek e Isolda apresentam como objeto poético um ser nunca visto, e, no entanto, amado, sentido nas entranhas da alma, "lembranças de um tempo esquecido" que insiste em voltar: "Que saudade é esta de um amor que não tive?/Por que é que te sinto, se nunca te vi?/(...) Diz se fiz com os céus algum trato/Esclarece esse fato e me faz compreender/Esse beijo, esse abraço na imaginação/E descobre o que guardo pra ti no meu coração/(...) Mas deixa eu sonhar/Deixa eu te ver/Vem e me diz quem é você".

PARIS. Também conhecido como Beaubourg, o Centro Cultural Pompidou, ou simplesmente Centre Pompidou, é um dos lugares mais visitados da França. Zaira, Batista, C. e eu chegamos cedo, ávidos de explorar com a melhor atenção este espaço ocupado por alguns dos mais bem-sucedidos projetos culturais franceses de todos os tempos.
O prédio já impressiona pela excentricidade do seu projeto, com tubulações hidráulicas aparentes, o diálogo indisciplinado do ferro e do concreto, suas imensas escadas rolantes e os muitos elevadores panorâmicos. A biblioteca, que ocupa três pisos do edifício, possui um acervo gigantesco, os eventos ligados à arte são frequentes e quase sempre grandiosos, mas é o Musée National d'Art Moderne que mais impressiona. Pela primeira vez deparo com obras de Picasso, Matisse e do abstracionista americano Jackson Pollock, alguns dos artistas da modernidade que admiro mais.
Enquanto contemplo atentamente Tristeza do Rei, de Matisse, supostamente a sua última obra, aparece ao meu lado, vinda do improvável, uma dama de preto, elegante e detentora de uma beleza ligeiramente exótica. Faz considerações inteligentes sobre a técnica do pintor modernista desde que foi diagnosticada a doença irreversível que o levaria à cadeira de rodas. Olhando-me vez e outra, fala com desenvoltura sobre os recortes feitos com o auxílio de uma tesoura a partir de cartolinas previamente coloridas a guache, absolutamente diferentes de tudo o que fizeram outros grandes nomes da arte moderna, como Picasso e Kandinsky. Finalmente comenta a Tristeza do Rei com um domínio de análise em tudo convincente, original e profundo.
Olha-me ainda uma vez, despede-se com o seu francês impecável, embora deixe claros sinais de que não nascera aqui, que apenas retorna a este centro pelo amor às artes, com que parece traçar seus rumos, tecer seus projetos, edificar a vida. Atravessa o salão com passadas firmes e serenas. Como se fora uma garça negra, sequer olha para os lados, vai, vai altiva e bela, até que desaparece por uma porta de saída.
Percebo que minha companheira acompanhara a rápida conversa com a dama de preto, que olhara, quem sabe de soslaio, querendo e não querendo dar a ver o seu desconforto. Dirijo-me a ela, que tão-somente responde ao que pergunto, indiferente, fria, ligeiramente ruborizada, como ficam os enciumados nessas horas.
Quando deixamos o Beaubourg, descendo pelas escadas rolantes, ainda carrego na memória todos os gestos, todas as palavras, a expressão do olhar, o sorriso indecifrável com que me dirigira a palavra, na eternidade daquele instante, a dama de preto.
Esteta, crítica de arte, também ela artista? Fico a imaginar o que pode o inusitado, o imprevisível da vida. O que justifica que alguém que jamais verei novamente, de quem sequer sei o nome ou de onde veio, sequer se existe de fato, penetre tão fundo a alma, deixe no peito algo que não é saudade, mas que em tempo algum será esquecimento?
Vinte, vinte e poucos anos depois, voltando àquele lugar, ainda me perseguia na lembrança essa mulher que talvez nunca tenha existido, mas que consigo ver, rever, ouvir, sentir, quase tocar, com sua voz doce, com suas mãos expressivas, com seu olhar enigmático, com as mesmas passadas firmes e elegantes, até desaparecer outra vez…
Ao chegar à praça em frente ao Centre Pompidou, onde se veem artistas em plena execução de suas obras, caminho em direção ao Atelier Brancusi, bela reconstituição da oficina do artista plástico romeno Constantin Brancusi. Desta vez, estou só. Vem-me uma nostalgia das pessoas com quem estive aqui alguns anos antes. Lembro de C., de Zaira, do jovem e talentoso Batista. E como se por um passe de mágica, obra do talvez ou do quem sabe, ainda vejo à distância a dama de preto.
É quase noite, tomo o rumo de uma estação de metrô e cruzo os braços numa tentativa de me proteger do frio, que agora parece me cortar o corpo --- e afagar a alma, inebriada pelo perfume de uma simples mulher vestida de preto.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

A música como que por milagre

Quase sempre o extraordinário começa no ordinário, assim um estudioso de fama definiu o despertar para a música. Em inícios dos anos 60 chega a Iguatu o bispo Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago. Eu tinha uns seis, sete anos, e lembro que a cidade se engalanou para recebê-lo. Uma festa.
Homem de refinada extração intelectual, amante da música erudita, Dom Mauro, mal chegara, adotou uma prática que exerceria sobre mim grande influência no que diz respeito ao senso estético: mandou instalar um sistema de som em volta da Catedral e, duas ou três horas antes da missa das cinco, alto-falantes em forma de cornetas espalhavam no entorno da praça as maiores composições de Beethoven, Chopin, Tchaikovsky, Bach, Haydn, Strauss e tantos outros.
Estou certo que, daí, nasceu o meu gosto pela música clássica, como apreciador, como diletante, claro, uma vez que não tenho qualquer formação musical. Neste instante, fecho os olhos e chego a escutar, por exemplo, As quatro estações, de Vivaldi. Gostava mais da Primavera, embora, à época, não soubesse de que concerto se tratava e, sequer, quem o compusera. Mas o solo dos violinos me encantava, como que me transportava dali para a natureza em festa, o canto dos passarinhos acariciando-me os tímpanos e a alma. Pura intuição, uma captação impressionista daquele som tão envolvente e sedutor, cobrindo de ternura as nossas tardes de domingo.
Anos depois, adquiriria quase tudo o que chegava às lojas dos principais clássicos, os românticos à frente. Passei a ouvir com certa freqüência Mozart, Schubert, Listz, Dvorak, Sibelius, Haendel, Wagner, Bizet e muitos e muitos outros. Tudo, insisto, por conta das tardes domingueiras de Iguatu. E pela sensibilidade artística de Dom Mauro.
Mas é Ludwig van Beethoven, o meu compositor favorito. Apaixona-me a força e o brilho de suas composições, sonatas, concertos, sinfonias – e a profundidade de sentimento que emana de sua arte incomparável. Emocionam-me, desconcertam-me mesmo, os contrastes abruptos e a intensidade emocional da quinta ou a alegria contagiante da nona, sua última sinfonia. A arte, enfim, desse artista extraordinário, criador de obras que desafiaram as fronteiras geográficas e romperam as marcações do tempo.
Dele, em medida de grandeza que faz jus ao gênio alemão, Jan Swafford, premiado compositor e musicólogo, escreveu a monumental biografia "Beethoven: Angústia e Triunfo", que recomendo com entusiasmo aos que amam a música.
Ocorre-me recordar agora: Certo dia, no Rio de Janeiro, vou com minha mulher, à época, e Saulo, meu filho, assistir ao filme Minha Amada Imortal, de Bernard Rose, com uma excepcional interpretação de Gary Oldman no papel de Beethoven. A obra narra uma história a um tempo simples e curiosa: Viena, 1827. Beethoven morre e um amigo, Anton Felix Schindler, decide realizar o último desejo do compositor, que é deixar para a mulher sua herança. No testamento, contudo, não diz o nome da mulher, a sua "Amada Imortal." A empreitada é desafiadora e revela a face desconhecida do gênio.
Lembro que, como o cinema estivesse lotado, sentamo-nos no chão, acomodando-nos com alguma dificuldade. Saulo, pequenino, tinha por volta dos três ou quatro anos, adormece no colo da mãe. A beleza do filme, a família ali reunida no chão acarpetado de uma sala de cinema no Rio, e, sobretudo, a música prodigiosa de Beethoven traziam-me uma emoção imprevista, uma vontade de chorar, não de tristeza, mas de alegria, de felicidade e de gratidão a Deus pelo milagre da vida. Apertei suavemente a mão de minha mulher, e, ao som de Sonata ao Luar, que considero uma das mais tocantes composições de toda a história da música clássica, fiquei extremamente emocionado, segurando a custo as lágrimas que me encharcavam os olhos naquele instante.
É, de fato, uma cena lindíssima do filme de Rose. Relembro com detalhes seu desenrolar: Beethoven, já quase completamente surdo, escreve e executa ao piano Sonata ao Luar, acompanhado à distância, sem que o saiba, por Anna Marie Edordy, vivida pela atriz Isabella Rossellini, a sua amada. A fim de sentir a música, já quase inteiramente surdo, Beethoven encosta o ouvido à madeira do piano, sente suas vibrações. Uma cena desconcertante, extremamente poética, primorosa, cinematograficamente perfeita.
Assim, a música esteve sempre presente na minha vida, de todos os gêneros, de uma forma em nada preconceituosa. Gosto, gostei sempre, da Música Popular Brasileira, por exemplo, assim como da música de outros países, de outras matrizes culturais, e da música erudita, objeto de minhas recordações de agora.
Tenho o hábito de acordar cedo e, aos primeiros raios do sol, ouvir música, como que para começar o dia de maneira harmônica e melodiosa.
A música, assim como Deus, exercendo sobre mim o poder jamais compreendido de operar milagres.
Dom Mauro faria por esses dias 100 anos. Foi com ele, em termos musicais, que tudo começou para mim.