Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Mãe do medo e da covardia*

"Será que poderia haver um campo mais amplo do que... um tratado sobre a ignorância?", Francesco Petrarca (1304-1374)
O autor é conhecido por suas incursões no campo do conhecimento, tendo publicado livros incontornáveis sobre o assunto, a exemplo do clássico "O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag".
Mas é seu livro mais recente que vem, particularmente, em boa hora, como a apontar caminhos para a compreensão de um tempo marcado por tantas contradições e fundamentalismos que se contrapõem à racionalidade como a entendemos em termos objetivos.
Refiro-me a "Ignorância, uma história global", Editora Vestígio, 2024, do historiador britânico Peter Burke, cuja leitura é mais que recomendável num momento em que se assiste à produção da ignorância como uma ameaça à democracia e à preservação do Estado Democrático de Direito e aos pressupostos do que se convencionou chamar de Iluminismo, ou seja, a ideia setecentista de que o conhecimento é a condição "sine qua non" para o progresso material, espiritual e, frise-se, moral.
Como a epígrafe que o autor escolheu sugere, curiosamente extraída de uma fala famosa do político brasileiro Leonel Brizola, durante um debate, "A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância", o livro constitui um criterioso levantamento da história da ignorância e  de como a ausência de conhecimento pode explicar o mal-estar da realidade contemporânea mundo afora, num cenário de ressurgimento de movimentos de extrema direita em diferentes países, bem na perspectiva do que ocorre no Brasil hoje.
Casado com uma brasileira, a também historiadora Maria Lúcia Pallares, professora de Cambridge, com quem escreveu um livro sobre Gilberto Freyre, Peter Burke é bom conhecedor do país, que visita com certa frequência, razão por que alude ao passado recente da política nacional e da figura do ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo do que existe de pior em termos de ignorância, aquela que leva (palavras minhas) tanta gente a defender o "terraplanismo", a bater continência para pneus e professar a volta do regime militar como caminho para o que considera a definitiva redenção do Brasil.
É nesse sentido, pois, que, no capítulo 11, intitulado "A ignorância na política", Burke reporta-se ao ex-presidente como verdadeiro exemplo de ignorância presidencial, bem como o seu guru norte-americano, Donald Trump, sofrendo "de ignorância em sua forma mais aguda, a de nem mesmo saber que nada sabe".
Como prova da absoluta ausência de conhecimento do "mito" da extrema direita brasileira, cita a crise do novo coronavírus de 2020, destacando a recusa de ambos, Jari Bolsonaro e Donald Trump, em compreender a seriedade do problema, criticar os epidemiologistas e defender o uso de medicamentos de eficácia duvidosa, como a hidroxicloroquina.
A abrangência do levantamento e o alcance da análise, no entanto, são muito maiores. Burke discorre sobre as diferentes formas de ignorância, de como elas se manifestaram no transcorrer da história, como cada época emite juízos imprecisos sobre seu passado: os renascentistas consideravam a Idade Média como uma era das trevas, o chamado Século das Luzes procurou vencer a superstição e a religiosidade, impondo a razão e o cientificismo como alternativas únicas para os problemas da sociedade. Vai além e chega ao mundo hodierno, enredando-se ele na realidade hiperconectada e um tanto perdido em face de suas consequências ainda imprevisíveis.
Em palavras ligeiras, portanto, "Ignorância, uma história global", de Peter Burke, é leitura de que não se deve prescindir se se tem qualquer pretensão de identificar por que, como, onde nascem as monstruosas ameaças da atualidade no campo da religião, da ciência, da política e dos negócios.
Com bela e lúcida apresentação de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, o livro tem no Brasil uma edição extremamente bem cuidada, tradução rigorosa de Rodrigo Seabra e, mais importante, um significado histórico que o credencia a figurar entre as grandes produções intelectuais de 2025. Confiram.
*O título da coluna dialoga com um verso de Chico Buarque de Hollanda.
 
 
 
 

terça-feira, 6 de maio de 2025

Alcatraz, fuga impossível

Em mais um de seus inqualificáveis desatinos, o presidente Donald Trump anunciou, no domingo 4, a intenção de ampliar e reabrir Alcatraz, o presídio famoso incrustado numa ilha da baía de São Francisco, na Califórnia.
A notícia, que poderia nada interessar a quem, como este escriba, não tem com os Estados Unidos qualquer relação --- e nutre pelo país assumida antipatia, diga-se em tempo --- desperta no amante do cinema, contudo, um tipo de sentimento que transita da indiferença ao comovido desconforto. Digo por quê.
Trata-se de uma das mais curiosas locações cinematográficas, cenário de alguns filmes clássicos sobre o sistema prisional americano, bem na linha de "Papillon" (1973), "Um sonho de liberdade" (1994) e, por óbvio, "Alcatraz, fuga impossível" (1979), com emblemática direção de Don Siegel e atuação soberba de Clint Eastwood.
Baseado numa história real, a tentativa de fuga de Frank Morris e dos irmãos Clarence e John Anglin, do então considerado presídio de segurança máxima do Estados Unidos, o filme marcou época em produções do gênero, não sem razão considerado um dos melhores de 1979.
Plasmado no livro conhecido de J. Campbell Bruce, o roteiro foi confiado a Richard Tuggle, que o desenvolveu à perfeição naquilo que é a essência da narrativa livresca: a capacidade de prender o leitor, de torná-lo completamente entregue à atmosfera dramática da história, fazendo-o mergulhar no conflito existencial de um homem determinado a superar a todo e qualquer custo o cerceamento de sua liberdade doentia, ela também alvo de desumanos mecanismos de punição legal, bem na linha do que o filósofo Micheal Foucault examina exemplarmente bem no incontornável "Vigiar e Punir".
Sob este aspecto, por sinal, é que se pode fazer a única restrição ao roteiro do filme: a indiferença diante das razões que antecederam o fio condutor da história, leve-se em conta que se trata de uma cinebiografia, gênero em que o documental é elemento indispensável na tessitura da narrativa fílmica.
Ao optar por contar a história de Frank Morris pelo viés psicológico, portanto, o que faz com notável capacidade de análise e visível domínio da fundamentação teórica acerca dos desajustes psiquiátricos da personagem (ou personagens!), Don Siegel, enquanto realizador, submete-se rigorosamente ao que o roteiro estabelece --- e não responde às perguntas do espectador ao final do filme: Quem foi Frank Morris? O que fez? A que se prende a sua incansável e quase irracional busca da liberdade? No livro de J. Campbell Bruce essas curiosidades são clarificadas para o leitor, porque indispensáveis para o completo entendimento da história.
Fosse uma mera obra de ficção, "Alcatraz, fuga impossível" poderia ser considerado, no gênero, um filme quase perfeito do ponto de vista cinematográfico. A tensão dramática advinda das estratégias narrativas escolhidas por Don Siegel é algo que sobrepuja clássicos sobre o sistema prisional americano*: os recursos de som e luz, a angulação da câmera e seus movimentos, a exploração do silêncio como elemento dramático, o enquadre muitas vezes claustrofóbico, a duração dos planos etc., tudo da narrativa fílmica é trabalhado por Don Siegel com esmero e rigor. Há momentos no filme, como nos planos mais abertos, em que o próprio presídio parece adquirir o status de personagem, ganhar vida e delimitar o curso da história com a impassibilidade de um membro de tribunal.
Uma das mais concorridas atrações turísticas de São Francisco, Alcatraz guarda ainda seus mistérios, sua realidade oculta, seu desumano fascínio. Visitei-o há alguns anos, adentrei seus corredores, salas, celas. Gravei vídeos, fotografei à exaustão sua tristeza, toquei, emocionado, suas paredes ainda úmidas e sujas --- o ferro frio de suas grades amarelas. Adentrei masmorras, entreguei-me em ouvidos para a música dos ventos, vindos da baía, em seus espaços vazios. Mas, acima de tudo, milagre do cinema, revi, gravadas na tela das retinas, as imagens inesquecíveis do belo filme de Don Siegel.
Trump delira. Alcatraz pertence, hoje, ao mundo da arte. E haverá de ter para sempre abertas suas grades, amarelas --- e dolorosamente tristes.
*"A rocha", (1996), de Michael Bay, com Sean Connery e Nicolas Cage, e "O homem de Alcatraz" (1962), de John Frankenheimer, com Burt Lancaster, são dois dos vários filmes ambientados em Alcatraz.