terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Carta de amor

Chega à cidade, enfim, a última edição de Carta a D., de André Gorz. Havia anunciado o fato em crônica recente, salvo engano intitulada Eis que o amor pode ser eterno. Li esse pequeno-grande livro há muitos anos, razão por que fiz questão de adquiri-lo na elogiada tradução de Celso Azzan Jr. Devorei-o de uma sentada, não menos encantado do que havia feito antes. A rigor, é uma carta escrita pelo filósofo a sua mulher pouco antes de cometer com ela, em pacto serenamente firmado, o suicídio, que é mesmo um dos mais comoventes atos de amor de que se tem notícia.

Groz e Dorine conheceram-se, na Suiça, através de amigos comuns. Amor à primeira vista, sem que os dois sequer tocassem a mão um do outro, o que ocorreria na terceira vez que se viram. Assim o missivista descreve o encontro: - "[...] cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947."

Os dois, desde esse momento, passam a viver juntos por quase sessenta anos, até 22 de setembro de 2007, quando foram encontrados mortos, abraçados, no quarto da casa deles, na França. Dorine padecia de um câncer do endométrio, estava esquálida e sofria as dores lancinantes da fase terminal da doença. Gorz toma a decisão de morrer com Dorine, pois não saberia viver sem ela. Dedica-se a escrever, entre 21 de março e 6 de junho de 2006, o seu último livro, uma declaração de amor que emociona do começo ao fim: - "Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centimetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher."

Num tempo de amores efêmeros, ler Carta a D., de André Gorz, para além de prazeroso, pelas qualidades literárias que a obra possui, é acima de tudo enriquecedor. Faz-nos pensar sobre esse sentimento a um tempo realizador e doloroso com que se busca preencher a parte incompleta de cada um. Groz, com sua decisão, deu mesmo uma demonstração de que o amor existe: - "Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos." Na contramão do que afirmou Pessoa, nem todas as cartas de amor são ridículas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário