sexta-feira, 29 de junho de 2012

Woody Allen, o perdedor

Amigo me envia por e-mail uma entrevista recente de Woody Allen. Sou fã de carteirinha de Allen e leio tudo que me chega às mãos sobre este gênio do cinema. O livro Conversas com Woody Allen, para que se tenha uma ideia, li e reli com o mesmo entusiasmo, em que pese tratar-se de um livro de entrevistas. Mas há muito, confesso, não 'via' do cineasta (e outras tantas coisas mais que é!) nada que me causasse um impacto tão desconcertante quanto uma declaração sua nessa entrevista que acabo de ler.

O mais curioso: uma declaração aparentemente desimportante e tola, mas tão cheia de significado e tão capaz de nos despertar coisas boas como pais de filhos adolescentes. A uma dada altura, indagado se assiste aos seus filmes com as filhas, de 12 e 13 anos, em casa, Allen diz: -  "Quanto menos eu as transformo em uma família do show business, melhor. Eu não quero que elas pensem em mim como seu pai, a celebridade. E elas não pensam. Elas pensam que sou um perdedor. Elas já me disseram, em termos inequívocos, 'oh pai, você é um perdedor! Sinto-me melhor assim do que se elas fossem para a escola e dissessem: 'Oh, o filme do papai arrecadou 12 milhões de dólares só na primeira semana!'"

Num tempo de desumana inversão de valores, em que o 'ter' leva tanta gente a pensar que o dinheiro é capaz de tudo comprar, num mundo povoado de gente que se arvora e se deslumbra com a força da grana que possui, ouvir uma declaração assim é como assistir a uma aula de humanidade, de senso de realidade em torno do que é fundamental (ou deveria ser) na vida das pessoas. Pena que nem todos tenham lido a entrevista de Allen, para compreender que não é feio levar as nossas crias a descobrir que seus pais são humanos, que perdem vez e outra, mesmo quando as contas bancárias andam explodindo de gordas!

A propósito, nas proximidades do colégio em que fora apanhar minha filha, presenciei dia desses um pai abaixar o vidro blindado do seu carro, dentro do qual o filho pequeno acabara de entrar, para destratar um catador de materiais recicláveis pelo simples fato de que o pobre rapaz, numa manobra infeliz, tocara levemente com a sua carroça a lateral do carrão: - "Seu animal!, não viu que eu ia dobrar!?" Como fosse com o meu carro logo atrás, assisti àquela cena inundado de revolta, mas nada me era possível fazer. Lendo Woody Allen, há pouco, me ocorreu pensar naquela cena outra vez. E, vai ver, talvez o último filme daquele senhor, tão cego pela força do dinheiro que tem, nem tenha arrecadado 12 milhões de dólares só na primeira semana...



 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Uma cena inesquecível

Quando nos lembramos de filmes de que gostamos, lembramo-nos de cenas e não de filmes inteiros. A afirmação de Syd Fields, no seu belo livro sobre roteiros, é absolutamente correta. Com efeito, podemos esquecer da história em seus detalhes, do nome dos atores que interpretam os papeis principais e até do título do filme, mas guardamos para sempre as cenas que nos marcaram quando as vimos. Como todo bom cinéfilo, tenho vivas na memória algumas cenas que considero emblemáticas do cinema. A despedida de Rick e Ilsa em Casablanca, é uma delas:
 Rick
"Nós sabemos que, no fundo, você deve ficar com Victor... Se aquele avião decolar sem você, você vai se arrepender  --  talvez não hoje nem amanhã, mas logo, e para o resto da sua vida".   
Ilsa
 "Mas... e nós dois?"
Rick
 "Nós sempre teremos Paris".
É um dos momentos mágicos do cinema, desses de que nos lembramos sempre que, por alguma razão, somos levados a pensar em despedidas românticas. E em ações nobres. Tão simples, tão sem efeitos dramáticos e, no entanto, tão arrebatador! Por quê? Syd Field, que também a coloca entre as suas cenas preferidas, explica de forma absolutamente convincente: - "No início de Casablanca, Rick é um homem que vive do passado, remoendo a dor causada pela relação mal-sucedida com Ilsa. Quando ela reaparece em sua vida, Rick lamenta: 'De todas as espeluncas de todas as cidades do mundo, ela tinha que vir parar bem na minha'  --  e então sabemos que é chegada a hora de ele confrontar e finalmente resolver seu passado".
É isso. A cena encerra com uma força simbólica extraordinária um grande filme. Sob muitos aspectos, talvez o mais belo de todos os tempos. Um grande homem se revela por suas ações, não por suas palavras. No caso de Rick, tão excepcionalmente interpretado por Bogart, é o que fica evidenciado. Ilsa (Ingrid Bergman), lindíssima, é a mulher com quem se relacionara havia algum tempo, em Paris, e que o levara a sofrer uma dolorosa decepção, abandonando-o no ápice de sua paixão por ela. O mundo, sabemos, dá suas voltas, na ficção e na vida real. Quis o destino que os dois se reencontrassem em Casablanca, vivessem um flashback capaz de fazer explodir no coração de Ilsa a paixão de antes, mas, agora, Rick tem outros objetivos, maiores, mais elevados para a sua dignidade pessoal. Na mesma fala, citada acima, ele diz: - "Não tenho muito talento para ser nobre, mas é bem fácil perceber que os problemas de três pessoas comuns não representam nem um punhado de feijões neste mundo doido..."
Ilsa, que traíra o marido com Rick e Rick com o marido, na indecisão de sua alma leviana, agora quer de volta o amante de antes, nos idos de Paris, mas Rick, num gesto que nos dá o tamanho do seu caráter, renuncia o seu amor pela causa dos Aliados e decide ficar em Casablanca para combater os nazistas. A cena, pois, cobre-se de poesia e força simbólica, eleva-se às alturas da grande arte, razão por que fica na nossa memória para sempre, como um dos momentos extraordinários do cinema.