quarta-feira, 22 de junho de 2016

Bloomsday

Aquilo que pode ser dito pode ser dito com clareza.

 (Ludwig Wittgenstein) 

Ocorre-me lembrar que escrevo esta coluna em 16 de junho, data em que se comemora o Bloomsday. É o dia em que se passa o romance que constitui um divisor de águas na literatura mundial, Ulysses, do irlandês James Joyce, cuja história, subentende-se, transcorre em 24 horas. Pouco menos, para ser preciso. 
E, no entanto, mais que um livro absolutamente importante para os amantes da literatura, Ulysses constitui um desafio muitas vezes invencível para leitores do mundo inteiro, muitos dos quais desistem de prosseguir na leitura já nas primeiras páginas. O que tem, então, este livro tão citado e muito pouco lido para justificar a dificuldade de compreensão que é mesmo a marca unânime dessa narrativa a um tempo fascinante e desafiadora? Do que trata? Quem são as personagens centrais do romance? Ulysses é o nome do seu protagonista? Em poucas palavras, tentemos clarificar. 
É a história de Leopold Bloom, filho de judeus, homem inexpressivo mas dotado de uma curiosidade intelectual que explica em parte as peripécias em que se verá enredado. Na manhã de 16 de junho de 1904, sai de casa para participar do enterro de um conhecido. Como fosse cedo, aproveita o tempo disponível para comprar produtos farmacêuticos para a mulher, Molly, e, creiam, tomar banho. 
Findo o enterro, Bloom volta ao centro da cidade e resolve pendências pessoais junto a um jornal para o qual presta serviços como vendedor publicitário. Isto feito, poderia retornar para casa, mas decide gastar as horas vagueando pela cidade. No fundo, Leopold Bloom intenciona chegar em casa quando a mulher já estiver dormindo, para não ter de falar com ela. É que o casal vive uma crise desde a morte de um filho, Rudy, e Molly, a mulher de Bloom, espera a visita de um "admirador" com quem, presume, virá a ter um caso. Está traçada a trama desse romance pungente e difícil. 
O delicado fio que separa a decisão de voltar para casa ou permanecer na rua, evitando, assim, o desconforto de olhar nos olhos da mulher adúltera, é a matéria com que Joyce tece sua história envolvente e ao mesmo tempo impenetrável para a maioria dos leitores, pois, na contramão do que a princípio parece ser extremamente simples, a narrativa se constrói com experimentos de linguagem e originalidade de estilo que confundem, desnorteiam, levam mesmo a um beco sem saída que explica as razões por que Ulysses é um livro, na mesma proporção, tão amado e tão odiado pelos quatro cantos do mundo. 
Mas, por que Ulysses, uma vez que a personagem chama-se Leopold Bloom? É aqui que reside o grande segredo do livro. Ulysses é a "odisseia" do herói no retorno a sua casa. O 16 de junho é o dia em que Bloom (acompanhado de Dedalus, outra personagem central da história a que os limites de espaço não me permitiram fazer referência) vagueia pela cidade enquanto a mulher, em casa, é objeto do desejo masculino, assim como Penélope, no livro de Homero. 
A cada episódio (é assim que Joyce intitula os capítulos do livro) uma cena da Odisseia é metaforicamente referenciada, do que se conclui ter o romance o seu esqueleto, a sua estrutura narrativa assumidamente baseada no clássico da literatura ocidental. As ressonâncias são muitas, percorrem todo o desenvolvimento da narrativa, a exemplo do episódio denominado Ciclope, em que a estaca em chama com que Ulysses cega Polifemo, no livro de Homero, aparece em Joyce como um cigarro em brasa com que Bloom intimida um interlocutor indesejado. Na mesma linha, a pedra atirada contra o herói no clássico grego se materializa na forma de uma lata de biscoito arremessada contra o herói do livro de Joyce.
Bloom é o Odisseu da epopeia de Homero, apenas redimensionado pelo caráter humano de que se reveste a personagem do Ulysses de James Joyce. Ambos percorrem a trajetória de volta para casa. Aquele, o general de muitos ardis, o herói dotado de poderes que extrapolam as limitações humanas. Este, o homem isolado, perdido entre as banalidades da existência, algumas vezes maiores que a sua capacidade de resolução, mas dentro de cujo peito bate o coração que movimenta, em qualquer que seja a proporção, a vida de cada um de nós. 
 
  
 
   
           

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O estupro em tela

Clássico da filmografia de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, 1971, entrou para a história do cinema não somente pela força de sua arte em tudo extraordinária, mas pela polêmica que suscitou à época do seu lançamento. Há nele mais que uma música arrebatadora e uma linguagem que já projetara Antony Burguess, autor do livro em que se baseia, como um escritor inovador e dono de uma visão do futuro assustadora.

Uma sequência, particularmente, impressiona: uma mulher é estuprada por uma gangue ao som de Singing in the Rain. Lembro que a reação das pessoas durante a projeção (a nudez ridiculamente coberta por bolas pretas) traduzia bem o impacto diante de imagens tão chocantes  --  mãos no rosto, cenhos franzidos e gritos incontidos.

Violento, assustador, sordidamente vocacionado para a estetização da maldade humana eram palavras e expressões recorrentes mal se deixava a sala de projeção do filme. Jamais, todavia, ocorria a alguém achar possível tanta brutalidade se não na perspectiva de uma arte controvertida e, deixemos isso claro, absolutamente incontornável de um gênio do cinema.

Aos olhos do senso comum, a arte, no caso, nem mesmo imitava a vida. Indicado ao Oscar em quatro categorias, no entanto, Laranja Mecânica ganharia incontáveis prêmios mundo afora, com destaque para o de Melhor Filme e Melhor Direção dos Críticos de Cinema de Nova York. Passados tantos anos desde o seu lançamento, a película ainda seduz e choca, num misto de encantamento e escárnio que imortaliza a obra e seu realizador.

Outros filmes abordariam o tema do estupro, com destaque para o emblemático Irreversível, de Gaspar Noé, 2002. Num plano-sequência arrebatador, Alex, interpretada por Monica Bellucci, é violentada por quase dez minutos, durante os quais o espectador é preso sob o domínio de uma estética paradoxal, pois as imagens deslumbram e revoltam com igual intensidade.

Anos antes, a atriz Jodie Foster havia conquistado o seu primeiro Oscar na pele de uma mulher violentada em Acusados, 1988, de Jonathan Kaplan. A sequência do estupro impressiona pelo realismo da câmera de Kaplan, que construíra seu filme a partir de um roteiro de Tom Topor.  O filme, registre-se, foi inspirado num caso real ocorrido no estado americano de Massachusetts.

Semana que vem, já aguardado com grande expectativa, estreia aqui Paulina, do cineasta argentino Santiago Mitre (O Estudante, 2011), em que a protagonista que dá nome ao filme é violentada por adolescentes numa região pobre da Argentina. Não o vi e, por óbvio, não posso tecer sobre o longa de Mitre qualquer comentário, mas vejo com entusiasmo o timing da aludida estreia (refiro-me ao hediondo estupro de uma adolescente de 16 anos no Rio) como oportuna alternativa para que autoridades, entidades de classe, escolas e universidades possam levar a efeito um debate responsável sobre a violência contra a mulher, num país em que, a custo de inconfessáveis verdades, levanta-se a prumo um governo fascista e misógino.