quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Sublime Mino. Ou SubliMino?

Cada vez mais o território inicialmente ocupado por críticos de arte, considerados aqui como especialistas em termos de interpretação e avaliação das obras artísticas, vai sendo ocupado pelos próprios artistas, confirmando uma tendência que se verifica desde as contribuições de Leonardo da Vinci, passando por grandes nomes do cânone ocidental, como Van Gogh, com suas notáveis cartas ao irmão Theo, e tantos outros gênios, a exemplo de Delacroix, Goethe, Velázquez, Kandinsky, Paul Klee, Cézanne e Hélio Oiticica, para mencionar aqui os que me ocorrem no momento em que escrevo a coluna de hoje. 

Entre nós, agora por último, vem a público uma edição especial da RiVista que constitui um verdadeiro catálogo da obra pictórica de um artista absolutamente genial, cujo talento e domínio de diferentes técnicas credenciam-no, desde há muito, a figurar entre os grandes nomes do desenho e das artes visuais no Brasil. Refiro-me, claro, a Mino Castelo Branco, que se propôs, finalmente, sair do casulo de sua exemplar humildade para levar a efeito um belíssimo exercício de exegese pictural em torno de sua própria obra. No caso, como pintor. 

O mais relevante, no entanto, é que Mino não se vale dos meios convencionais da crítica de arte, lançando mão de uma dada seção do léxico acadêmico para explorar analiticamente um recorte de sua vasta e excepcional produção. Longe disso. Onde se costuma ver procedimentos descritivos, classificatórios, explanações não raro enfadonhas dedicadas a tentar esgotar as instâncias formal e conteudística da obra em si, algo como o exame do "texto" pictural propriamente dito, agora se depara com uma interlocução do código verbal com o imagético, num jogo de linguagens que reatualiza cada tela, ressignificando-a e tornando a experiência crítica uma nova prática criativa. Nela, arte e ciência crítica se tocam. 

O leitor do texto, pois, tomando-se aqui por "texto" o significado que lhe atribui a semiótica discursiva, que não se limita ao texto verbal, mas é como se define toda unidade de análise, uma peça de teatro, um filme, um espetáculo de dança, uma escultura etc., ou, como está em pauta, uma tela em acrílico, é levado a trabalhar com dois códigos, o verbal e o visual.

Mino, assim, convida o leitor a participar do processo que trouxe a obra à sua existência concreta, num tipo de reconstrução do que, inicialmente, era uma estrutura fechada: a tela. 

Vai adiante. Adensando ainda mais as espessuras textuais, Mino cruza diferentes temporalidades e discursos, incorrendo, numa espécie de metalinguagem sedutora, com a sabedoria de um mestre, num procedimento reflexivo (como pensei a obra?) e intertextual, um tipo de diálogo entre diferentes escrituras, como a tornar evidentes as afirmações do teórico russo Bakhtin de que "todo texto é absorção e transformação de um outro texto". 

Cada "acrílica", como denomina com propriedade os muitos textos picturais do catálogo, diga-se em tempo a primeira e a mais óbvia das reflexividades que o artista leva a efeito, pois com isso já se reporta à própria técnica adotada na pintura (de secagem rápida e empastados espessos com efeitos texturais expressivos) volta-se para o próprio ato de pintar, num jogo de espelho que, invariavelmente, remete a outras telas, quando não se diz a si mesma.

Sob este aspecto, é notável como relaciona as superfícies textuais no caso da obra intitulada Minasso: --- "Eu queria ter uma Picasso mas não podia. Ainda hoje não posso. Então, o que faço? Já sei, pensei...! Vou fazer uma cópia... Mas no meu traço. E, assim, fiz um MINASSO". 

Tela e poema se encontram, pois que a obra é uma recriação das muitas "mulheres" imortalizadas pelo pincel de Pablo Picasso. Se, com a simplicidade que é mesmo uma de suas marcas de caráter, o artista se diz um copista, é que excede em fina ironia, bem na linha do que faz como cartunista extraordinário que é.

Mino opera, desse modo, com a definição do que se deve entender por intertextualidade, na perspectiva da semióloga Julia Kristeva, segundo a feliz síntese de José Luiz Fiorin: "Qualquer referência ao Outro, tomado como posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, variantes linguísticas, lugares comuns etc.". 

É desconcertante, como prática de intertextualidade, o caso da acrílica A Ponte de Langlois, em que Mino dialoga de modo explícito com uma das muitas telas de Van Gogh sobre o tema. É a fase de Arles, 1888, na qual o pintor holandês se revela particularmente profícuo e bastante entusiasmado com os efeitos de luz e cor que dão à sua pintura uma identidade cromática e textural havia muito perseguida.

Sensível à importância do quadro para o conjunto da obra de Van Gogh, pois, Mino o situa como um ponto de fuga na tela por ele assinada. Quadro dentro do quadro. Sentado confortavelmente diante da conhecida tela de Van Gogh (uma ponte com uma carroça amarela e um grupo de lavadeiras à beira do rio) vê-se um excêntrico pescador de paletó azul e chapéu.

Nada de muito notável, não pescasse o referido homem nas águas brilhantes retratadas por Van Gogh em sua famosa A Ponte em Langlois. Os peixes, arrebanhados em uma cesta do lado direito da tela, intencionalmente ecoam a paleta de Van Gogh: são amarelos e azuis. Mas é o azul do paletó do homem que se destaca aos olhos do contemplador como contraponto da tela homenageada, em que a terra é laranja, a grama verde, mas a água e o céu, azuis.

Essa relação entre diferentes discursos pictóricos está presente na maior parte dos quadros do catálogo da RiVista. Mas é o exercício da metalinguagem (o código pictórico reportando-se à própria pintura) o que predomina. E isso se dá de diferentes maneiras: quadro dentro do quadro, um texto de que se origina outro texto, o espaço e os instrumentos do artista representados, a obra em execução, o artista autorretratado, o espectador incluso na obra, o convite à reflexão sobre a pintura, a explicação da técnica e a pintura como tema da própria pintura.

Mino a nos lembrar que todo texto pictórico (a exemplo de qualquer outro) é um intertexto. Nem sempre reconhecíveis, há dentro de cada quadro outros quadros, em medidas e formas as mais variáveis.

Não à toa, pois, os títulos da quase totalidade das obras reportam-se à pintura: Acrílicas, Ateliês, Aprendiz de Pintor, Pablitas, Mulher de Picasso Sob o Céu de Van Gogh, Exposição, Pintor Minoritário etc., para não falar das vezes em que deparamos com paletas, pincéis, suportes, cavaletes etc., como objeto central dessas belíssimas telas do artista cearense.

Sublime Mino. Ou SubliMino apenas?     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Adeus, Professor!

Um amigo que morre é um pedacinho da gente que se vai.

Morreu Aurício Colares, um dos amigos mais queridos. Há muito, nem lembro há quanto tempo, não nos víamos, que a vida, com suas estranhezas e caprichos, vai separando a gente. 

Mas recordava dele sempre, com um sentimento bom e uma saudade tranquila, mesmo com uma ternura que só sentimos, assim, gratuita e desinteressada, por aqueles que marcam a nossa vida positivamente.

É o caso. Aurício Colares foi um companheiro e tanto.

Dele me aproximei ainda menino. Ele, homem feito. Maria Esther, sua mãe, era minha madrinha, num tempo em que ser madrinha, lá pelo sertão da gente, era quase ser mãe. Por isso, Aurício e eu, éramos  ---  mais que simples amigos  ---, quase irmãos. Vou além: para dizer melhor, éramos amigos no sentido que a amizade tem de mais bonito, o querer bem desinteressado e constante.

Colegas de trabalho, anos após anos, convivíamos diariamente. E quando chegava o fim da jornada, habitualmente fazíamos um happy hour regado a cerveja e petiscos, por costume, no La Barranca, que ficava a meio caminho de casa.  

Perito na arte de contar piadas, deixava-nos exaustos de tanto rir, o anedotário sempre em dia e um jeito de transmitir estórias que mais ninguém possui.

Por muito tempo, as esposas morando em Fortaleza, viajávamos todas as sextas-feiras de Iguatu à Capital. E Aurício, incansável, contando histórias e estórias de que jamais vou esquecer. As verdadeiras, temperava-as com acréscimos nascidos de sua riquíssima capacidade de imaginar, enfeitando-as com adjetivos e metáforas que me faziam transitar, num piscar de olhos, do espanto para a gargalhada. As inventadas, à maneira do filósofo, contava-as não como as coisas são, mas como deviam ser.  

Nisso, era genial.

Hoje, bem cedo, ao ser informado de sua morte por uma amiga, pude sentir, no impacto da novidade que jamais queria ouvir, o quanto Aurício era importante para mim, o quando tinha para lhe agradecer pelo amigo que foi  --- e por todas as coisas que me ensinou, com a sua doçura contagiante e o jeito inconfundível de ser um homem bom.

Dotado de caráter e sentimentos nobres, de alma magnânima, foi amado por alunos e alunas como se fosse, tanto quanto o belo professor, um pai, dos quais (amigo!) acompanhava, não raro, as aventuras e o destino. "Que me custa ajudar?", perguntava-nos sempre!   

Enquanto as horas passam, e a ficha vai aos poucos caindo, caindo... repasso na tela da retina os muitos filminhos em que atuamos juntos.

Ah, querido amigo!, que falta imensa você vai fazer, quanta saudade já sinto da sua companhia invariavelmente agradável e muito divertida, de suas histórias e "causos", de suas gargalhadas soltas que nos faziam afrouxar de rir, contaminados com a alegria desse coração puro e exemplarmente generoso, que, para o empobrecimento de um mundo já tão carente de homens como você, há poucas horas parou de bater... Para "encher de vazio" a tarde que se aproxima.

Fica em paz, amigo, que é assim mesmo a vida.

A morte, como quis o poeta, não chega de fora, não toca a campainha, não se anuncia por carta, nem telefona: ela está em nós, completamente. Um dia descobrimo-la, como algo que esquecemos no bolso do capote.