sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

A aldeia distante

No livro O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), estão três dos versos que mais tocam a minha alma e o meu coração: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."

Às suas margens, dia desses, em visita a Portugal, recitei-os para Ticiana, cuidando de lhe comunicar a minha interpretação.

Por meio da repetição e do paradoxo desconcertante, o poeta expressa, no primeiro verso, uma impressão geral sobre o imenso rio lusitano. No segundo, nega-a, pois que, para ele, nenhum rio será mais belo que o rio de sua aldeia, que lhe é próximo, em cujas margens, por certo, terá vivido algumas de suas melhores emoções. O Tejo, ao seu tempo, é uma realidade distante do eu-lírico do poema... O Tejo, enquanto me dirijo a minha mulher, é belo, mas não é o rio Jaguaribe que passa pela minha aldeia, tão maltratado, tão depósito de lixo do que existe de mais podre --- a falta de educação.

Aos amigos, vez e outra, um vinho a mais, costumo dizer que nenhum céu é comparável ao céu de Iguatu, minha aldeia querida, tão próxima e tão distante...

Hoje, bem cedo, recebi de Giovane Oliveira um texto lindo, carregado de sentimentos aldeões, com que ele, o "nosso gênio", como o chamo à boca pequena, festeja os 166 de Iguatu. Com a sensibilidade de um poeta, o estilo solto e espontâneo de dizer as coisas, que é mesmo uma de suas marcas mais notáveis, Giovane canta as belezas de nossa terra, "tão plana em sua topografia e tão plena no seu coração". Texto nas mãos, e me pus a pensar.

Li, certa vez, não me recordo onde, que toda cidade tem sua personalidade, seus caprichos, uma forma de ser alegre ou triste, uma identidade, um espírito autônomo, um jeito de viver seus amores, suas desilusões, sua viuvez. Toda cidade tem seus loucos, seus artistas. Toda cidade é um estado de alma e é bastante que se demore nela um pouco para que esse sentimento se comunique, contagie o nosso interior, a pele, o nosso corpo...

Entendo que todo homem tem com a sua terra algo de cúmplice, um tipo de segredo que não se pode compreender na perspectiva da fria racionalidade... Tampouco se pode explicar. Aos olhos de quem aí nasceu, toda província se agiganta e se embeleza como o Tejo de que nos fala Fernando Pessoa. Talvez por isso, hoje, desde que pude ler a homenagem de Giovane à terra que nos viu nascer, reproduzo, ininterruptamente, na tela das retinas, os filmes mais ternos e mais doces a que já pude assistir, e de que participo, ora protagonizando-os, ora não sendo neles mais que um simples figurante, mas igualmente realizado e feliz por fazer parte de sua história.

Em Iguatu, de Iguatu, por alguma razão tendo Iguatu como sua terra, não importa, estão, são, tornaram-se, os meus melhores, os maiores, os meus verdadeiros amigos. Sem esses amigos, é como se a vida fosse um devaneio tolo... Como se a vida não tivesse amor.

À época de chuvas, como ocorre nesta manhã, enquanto sento para escrever minha crônica do Jornal A Praça, e posso vislumbrar através do vidro o horizonte que se fecha em nuvens escuras (o vento da invernada soprando janela adentro), torno-me menino outra vez... e o coração, comboio de cordas, para ainda uma vez referir o lirismo fernandino, bate no ritmo de uma saudade para a qual não encontro nome.

Como num passe de mágica, que me perdoem o lugar-comum, é da terra molhada de Iguatu que sinto o cheiro, e é de Iguatu o ar que respiro neste instante, enquanto  --- lá fora ---, no burburinho da cidade grande, como que adivinho a presença de um casal de namorados se beijando. Quem sabe sob a proteção de um guarda-chuva azul. Azul, como o céu inconfundível de minha aldeia distante. 

 

 

  

 

 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Retrospectiva Dragão

Começou nessa quinta-feira 17 a Mostra Retrospectiva do Dragão. Ao todo, serão exibidos 74 longas-metragens, entre eles clássicos do grande cinema, como Persona, de Ingmar Bergman (24, 20 horas) e Acossado, de Jean-Luc Godard (30, 18 horas). Além desses, também clássicos de Hollywood, com destaque para o aclamadíssimo Juventude Transviada, de Nicholas Ray (25, 20 horas). Terão sessões seguidas de debate com seus diretores O Barco, de Petrus Cariry (19, 19h30min), Los Silêncios, de Beatriz Seigner (22, 19h30min), Sol Alegria, de Tavinho Teixeira (26, 19h30min), Clube dos Canibais, de Guto Parente (27, 19h30min) e o premiado Lembro Mais dos Corvos, de Gustavo Vinagre (29, 19h30min).

Na abertura, ontem, Central do Brasil, de Walter Moreira Salles, foi objeto de espontânea manifestação de entusiasmo por parte de um público que, a concluir pela faixa etária, quase de todo entre os 15 e 20 anos, nunca antes vira, pelo menos em tela grande, o concorrente brasileiro ao Oscar de 1999. Aplaudidíssimo, o filme mostra-se de fato sintonizado com os dias atuais naquilo que discute em torno dos grandes conflitos humanos, atemporais e incontornáveis sempre.
O roteiro, escrito a partir de ideias do diretor, como fica evidenciado na ficha técnica da versão totalmente restaurada exibida ontem (admira, nesse sentido, que tenham sido preservados os elementos estruturais do filme, o que dignifica o belo trabalho levado a efeito pelos restauradores) é algo que se aproxima da perfeição.
Pautado por um senso de realidade que exorbita aqui e além, como na cena do brutal assassinato de um adolescente já no início do filme, a narrativa jamais compromete o equilíbrio entre as necessidades técnicas e estéticas exploradas pelo diretor. Pelo contrário, do uso sensível da câmera, quer no que diz respeito a sua movimentação quer na escolha dos planos enquanto escala de enquadramento, é que surge a força poética do filme, que é mesmo uma marca da filmografia de Walter Salles. A hierarquização dos ruídos, diga-se de passagem, um dos elementos estéticos mais felizes de Central do Brasil, pois o filme ambienta-se em grande parte na estação de trem que lhe dá nome, é algo notável. Em momento algum se perde qualquer palavra dos diálogos, e o barulho, não raro ensurdecedor, incorpora-se aos meios narrativos a partir dos quais Walter Salles soube dar ênfase ao que é fundamental do ponto de vista dramático no seu belo filme.
As locações são as mais felizes. Da Central do Brasil aos exíguos espaços interiores, como o apartamento em que mora Dora Teixeira, brilhantemente interpretada por Fernanda Montenegro, ao sertão esturricado e tremendamente pobre do Nordeste brasileiro, o que se vê é uma refinada percepção do que é uma representação realista propriamente dita. Não o realismo improvável e ultrapassado de André Bazin (por importante que tenham sido suas contribuições acerca do realismo no cinema), todo ele sustentado na equivocada ideia da imparcialidade da câmera. Longe disso. A câmera de Walter Salles* é detalhista, assumidamente parcial, bem na linha do que professava o famoso escritor russo Ivan Turguêniev: "O verdadeiro talento se mostra nos detalhes".
Vinte anos desde o seu lançamento, Central do Brasil, de Walter Moreira Salles, mantém com sua simplicidade e sua poesia imagética estonteante, o charme de um belo filme. Não surpreende, assim, que desperte o interesse de um público aparentemente estranho a sua narrativa pontuada de elementos estéticos convencionais, com os quais seu diretor foi capaz de contar, com extraordinário talento, a trajetória de Dora em busca do pai de seu inusitado amigo Josué (Vinícius de Oliveira), cuja mãe acaba de morrer vítima de um atropelamento. Começa bem a Retrospectiva Dragão do Mar 2019.

*A direção de fotografia é de Walter Machado.