"A graça é algo que acontece ao longo da vida. Chega quando você menos espera. Claro, digo isso como quem nunca enfrentou a guerra, ou a tortura, ou a invasão".
Tenho pela obra de Martin Scorsese a maior admiração. Digo mais: tenho pela figura humana do cineasta ítalo-americano, cuja filmografia assemelha-se à dimensão estética do sueco Ingmar Bergman, não menor carinho intelectual (seja lá o que isso for!). Tentarei me fazer compreender.
A concluir pelo que pude conhecer do artista e do homem, a partir dos filmes que fez, das entrevistas que concedeu e dos textos que escreveu, examinados atentamente por este escriba, quero ressaltar, concluo tratar-se de um exemplo, raro, no contexto da grande arte, em que se pode colocar o homem no mesmo plano de sua obra.
Impressiona-me, o diretor e roteirista, pela genialidade de sua cinematografia, uma das mais belas do ponto de vista formal, e, por certo, de maior densidade de conteúdo.
Conquista-me o homem pela profundidade do seu pensamento, por sua visão de mundo, e, pasmem, pela religiosidade.
E quando falo de religiosidade, não me limito a destacar o caráter superficial com que comumente se usa a palavra, mas no sentido filosófico; como atitude diante do sagrado e da relação humana com o transcendente.
Como Bergman, quem sabe com a mesma verticalidade de sondagem psicológica e a mesma qualidade estética, elevada pela disponibilidade de recursos de linguagem certamente mais amplos e mais potentes no plano da expressão, Martin Scorsese transita pelo território da filosofia da religião a fim de investigar a natureza e os conceitos de Deus e do sagrado, a validade da fé e sua conflituosa interrelação com a racionalidade.
É nessa perspectiva, pois, em que artista e homem se encontram, ambos tratando da religiosidade sem se prender a dogmas que circunscrevam essa manifestação do sagrado aos limites de uma dada religião, mesmo, como se sabe, sendo ele, Martin Scorsese, católico e ligado em reconhecida factualidade aos fundamentos do catolicismo de Roma.
Note-se, por necessidade de maior clareza, que a palavra em sua etimologia se prende ao verbo "religar" (ou reconectar, numa opção lexical mais contemporânea), dando a ver a necessidade humana de reconhecer o fundamento último da existência, ou seja, religando-o à vida para além de suas limitações humanas.
É sob este aspecto que me refiro à figura do artista como homem, num tipo de simplificação que reconheço delicada, para tratar de um dos temas mais caros à filosofia da arte, matéria a que dediquei parte significativa de minha trajetória como professor de disciplinas que tratam da Arte em suas diversas dimensões.
É com entusiasmo, portanto, que acabo de ler (e recomendo enfaticamente) o recém-lançado "Diálogos sobre a fé" (Record, 2025), livro em que mais objetivamente se pode compreender o lado "religioso" de Martin Scorsese a partir de conversas levadas a efeito pelo cineasta com o padre jesuíta, jornalista e ensaísta italiano Antonio Spadaro.
Delicioso em sua textura formal, portanto muito mais que bem escrito, o livro vem a público num momento histórico de incertezas, imensas contradições e espiritualidade de consumo, o que, não bastasse o que representa como reflexão sobre uma das mais poderosas obras artísticas do Cinema, ensejando a percepção de elementos estéticos raramente examinados pela crítica especializada, proporciona, tanto ao estudioso quanto ao leitor comum, uma experiência reveladora --- algo como um lampejo em meio à escuridão.
Numa conversa franca, e ao mesmo tempo profunda sobre arte e fé, o livro explora os mistérios que se escondem no que existe de mais humano em Martin Scorsese, quer na perspectiva do artista inclassificável, quer na perspectiva do homem atravessado por obsessões, dúvidas, culpa, violência e incansável busca de Deus.
Ler este livro maravilhoso (que me perdoem o que existe de abstrato na adjetivação) é uma experiência mais que enriquecedora. É conhecer de mais perto um artista grandioso, que fez de sua arte prodigiosa e bela, um tipo de oração, como a descobrir que a fé é caminho único, incontornável, necessário para sua salvação.