Em casa, tendo nas mãos um clássico de Dostoiévski, recebo ligação telefônica do professor Auto Filho: "Vamos tomar um café na Cultura? Quero apresentá-lo ao Osvaldo Araújo. Ele quer você escrevendo para o Segunda Opinião".
Pelas duas, duas e meia da tarde, encontramo-nos no café da livraria. Osvaldo ainda não havia chegado, e Auto, do alto de sua presença marcante de intelectual imenso (que me perdoem a intencionalidade do trocadilho), discorre sobre o projeto do jornal. Fala de Osvaldo Araújo com um carinho em que pude perceber a existência de uma grande amizade. Mais que isso: Pude perceber que havia entre os dois jornalistas uma identidade intelectual que extrapolava os limites do ideológico para ganhar contornos existenciais, se se pode usar a expressão para dizer do que se entende como verdadeiro papel do intelectual numa sociedade marcada por desumanas contradições.
Era compreensível, pois, no espaço de tempo que não saberia agora precisar, que já pudesse nascer ali, antes de conhecê-lo pessoalmente, uma admiração enorme pela figura de Osvaldo Araújo.
Eis que chega, quase pedindo licença para chegar, tamanha a humildade de sua presença, o homem tão esperado. Vinha lento e manso, elegante e doce, como que envolto no halo de luz que rodeia os verdadeiros homens do bem.
Começava ali, entre um cafezinho e outro, uma dessas amizades de que me orgulho, e que pude dimensionar com exatidão nas primeiras horas de segunda-feira 10, quando nos deixou, assim, ao jeito de um menino arteiro, como que numa brincadeira ou truque lançado a "um milhão" de amigos e admiradores, ainda incrédulos de que tenha partido.
Hoje, como em todas as quintas-feiras nos últimos quatro ou cinco anos, sento-me diante do computador para escrever a crônica da semana para o Segunda Opinião. Mas sou tomado por um bloqueio criativo para o qual, por óbvio, não encontro palavra capaz de definir. Não haverá, do outro lado da linha, a figura indizível de Osvaldo Araújo, a quem confiava a publicação do texto e a escolha da imagem que o encimava, diga-se aqui, muito mais que uma simples ilustração, um tipo de "lead visual" a conquistar o interesse do leitor e antecipar as razões de ser da coisa escrita.
Se, a Carlos Drummond de Andrade, foi possível escrever um poema sobre a própria incapacidade de escrevê-lo, pois que "está cá dentro, viva, inquieta", que esta crônica escreva-se por si própria. Ela nasce do vazio, da ausência, da saudade que nos deixou a figura mais que humana de Osvaldo Araújo.
Como escritor, foi único numa certa forma de dizer sobre outros escritores. Mais que um grande resenhista, desses que atuam nas salas de redação das principais editoras, tinha Osvaldo Araújo um senso aguçado de percepção, uma agudeza de espírito, uma capacidade de transitar por entre as linhas do escrito, que fizeram dele um verdadeiro mestre.
Ao comentar questões da economia e da geopolítica, fazia-o com a sensibilidade analítica e elegância de estilo que tornava compreensíveis os temas mais complexos. Nesse sentido, ia fundo ao falar sobre os problemas sociais, e era notável como sabia apontar caminhos e alternativas de ação. De outro lado, no plano da expressão propriamente dita, tornava deliciosos os assuntos mais áridos, trabalhando à perfeição as potencialidades do léxico e os recursos da sintaxe.
Escreveu, por último, um trabalho raro sobre escritores cearenses, em que comenta três dos livros de minha autoria, já resenhados anteriormente por ele em outras publicações. Quando quis lhe agradecer pela generosidade da iniciativa, fazendo-me figurar entre tantos craques que admiro e que tenho como referência, foi taxativo: "Não seja demasiado humilde, pois não o faria se não admirasse sinceramente o que você escreve!"
Calei, pela simples razão de que, em termos de humildade e elegância, pouca gente sabe o que sabia à perfeição Osvaldo Euclides de Araújo.
É, agora, um pássaro que voa, leve e solto, pelo sem-fim dos tempos.