Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Pássaro que voa pelo sem-fim dos tempos

Em casa, tendo nas mãos um clássico de Dostoiévski, recebo ligação telefônica do professor Auto Filho: "Vamos tomar um café na Cultura? Quero apresentá-lo ao Osvaldo Araújo. Ele quer você escrevendo para o Segunda Opinião".
Pelas duas, duas e meia da tarde, encontramo-nos no café da livraria. Osvaldo ainda não havia chegado, e Auto, do alto de sua presença marcante de intelectual imenso (que me perdoem a intencionalidade do trocadilho), discorre sobre o projeto do jornal. Fala de Osvaldo Araújo com um carinho em que pude perceber a existência de uma grande amizade. Mais que isso: Pude perceber que havia entre os dois jornalistas uma identidade intelectual que extrapolava os limites do ideológico para ganhar contornos existenciais, se se pode usar a expressão para dizer do que se entende como verdadeiro papel do intelectual numa sociedade marcada por desumanas contradições.
Era compreensível, pois, no espaço de tempo que não saberia agora precisar, que já pudesse nascer ali, antes de conhecê-lo pessoalmente, uma admiração enorme pela figura de Osvaldo Araújo.
Eis que chega, quase pedindo licença para chegar, tamanha a humildade de sua presença, o homem tão esperado. Vinha lento e manso, elegante e doce, como que envolto no halo de luz que rodeia os verdadeiros homens do bem.
Começava ali, entre um cafezinho e outro, uma dessas amizades de que me orgulho, e que pude dimensionar com exatidão nas primeiras horas de segunda-feira 10, quando nos deixou, assim, ao jeito de um menino arteiro, como que numa brincadeira ou truque lançado a "um milhão" de amigos e admiradores, ainda incrédulos de que tenha partido.
Hoje, como em todas as quintas-feiras nos últimos quatro ou cinco anos, sento-me diante do computador para escrever a crônica da semana para o Segunda Opinião. Mas sou tomado por um bloqueio criativo para o qual, por óbvio, não encontro palavra capaz de definir. Não haverá, do outro lado da linha, a figura indizível de Osvaldo Araújo, a quem confiava a publicação do texto e a escolha da imagem que o encimava, diga-se aqui, muito mais que uma simples ilustração, um tipo de "lead visual" a conquistar o interesse do leitor e antecipar as razões de ser da coisa escrita.
Se, a Carlos Drummond de Andrade, foi possível escrever um poema sobre a própria incapacidade de escrevê-lo, pois que "está cá dentro, viva, inquieta", que esta crônica escreva-se por si própria. Ela nasce do vazio, da ausência, da saudade que nos deixou a figura mais que humana de Osvaldo Araújo.
Como escritor, foi único numa certa forma de dizer sobre outros escritores. Mais que um grande resenhista, desses que atuam nas salas de redação das principais editoras, tinha Osvaldo Araújo um senso aguçado de percepção, uma agudeza de espírito, uma capacidade de transitar por entre as linhas do escrito, que fizeram dele um verdadeiro mestre.
Ao comentar questões da economia e da geopolítica, fazia-o com a sensibilidade analítica e elegância de estilo que tornava compreensíveis os temas mais complexos. Nesse sentido, ia fundo ao falar sobre os problemas sociais, e era notável como sabia apontar caminhos e alternativas de ação. De outro lado, no plano da expressão propriamente dita, tornava deliciosos os assuntos mais áridos, trabalhando à perfeição as potencialidades do léxico e os recursos da sintaxe.
Escreveu, por último, um trabalho raro sobre escritores cearenses, em que comenta três dos livros de minha autoria, já resenhados anteriormente por ele em outras publicações. Quando quis lhe agradecer pela generosidade da iniciativa, fazendo-me figurar entre tantos craques que admiro e que tenho como referência, foi taxativo: "Não seja demasiado humilde, pois não o faria se não admirasse sinceramente o que você escreve!"
Calei, pela simples razão de que, em termos de humildade e elegância, pouca gente sabe o que sabia à perfeição Osvaldo Euclides de Araújo.
É, agora, um pássaro que voa, leve e solto, pelo sem-fim dos tempos. 
 
 
       
 
  

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Valorizar as pausas, respeitar o silêncio

Anton Tchekhov (1860-1904), mestre do conto moderno e importante dramaturgo russo, confiara a segunda montagem da peça A Gaivota, clássico de sua autoria, a Constantin Stanislavski (1863-1938). Espetáculo pronto, chega para o diretor e reclama: - "O que você fez, o espetáculo vai ficar esticado, muito maior do que o previsto?", ao que Stanislavski responde: - "Nada, apenas observei as pausas, valorizei o silêncio." 
Que bela lição, não apenas de semiótica teatral. Falo de uma outra lição, que pouca gente aprendeu: observar as pausas, valorizar o silêncio.
Na vida, quase sempre, é assim. A gente não observa as pausas, não valoriza o silêncio. E, no entanto, quanta coisa ruim poderia ser evitado. Quantas feridas abertas a menos, quanto sofrimento...
É que quase nunca percebemos o momento de calar, de ouvir mais o que o outro tem a dizer.
Nos relacionamentos, não raro, acontece de uma palavra desnecessária pôr por terra o que se ergueu com tanto entusiasmo, o que se fez com tanto amor.
Por que disse que beijaria o chão em que eu pisasse, se deveria me matar?,  diz Nina, personagem da peça de Tchekhov, em cena memorável.
Na ânsia de construir, destruímos. Na vontade de fazer valer a nossa vontade, não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio. E o mundo desmorona.

Consta que a primeira montagem de A Gaivota, em 1896, fora um fiasco. De público e de crítica. Uma pena, leve-se em consideração que o texto é maravilhoso, poético, de uma harmonia estética invulgar.
O próprio autor dissera sobre ela: - "[...] uma comédia, três papeis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem (vista para o lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um toque de amor."
Mas o público a repudiara. Não foi capaz de perceber o que havia por trás da cenografia. Não se observaram as pausas, não se valorizara o silêncio.
Mas a vida, assim como esconde, mostra, revela, expõe. O tempo é sábio, e, cedo ou tarde, coloca cada coisa em seu devido lugar. O que desagradava, encanta, seduz, conquista. É observar as pausas, respeitar o silêncio. 
Dois anos mais tarde, sob nova direção, A Gaivota, marcaria época no teatro universal. Desde então, uma "gaivota" passou a ser o símbolo do Teatro de Arte de Moscou, uma das mais prestigiadas casas de espetáculo do mundo.
Como se explica que uma mesma peça seja um fracasso hoje, um sucesso estrondoso pouco tempo depois?
 Simples: Stanislavski, que a dirigiu numa segunda montagem, percebera na obra uma economia de voz, de movimento, uma contenção de gestos, como jamais alguém fizera.
Numa palavra: observou as pausas, valorizou o silêncio.
Na vida, como no teatro, a essência das coisas muitas vezes está nas entrelinhas, num gesto que quase não se percebe, numa palavra que não se diz, nos sinais que nunca vemos...
Nas pequenas coisas da vida estão os mais fortes sentimentos, os maiores significados, as maiores aflições. Todavia, quantas vezes não deixamos de fazer, na vida, como Stanislavski, no teatro?
Não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio...