Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Diálogos sobre a fé

"A graça é algo que acontece ao longo da vida. Chega quando você menos espera. Claro, digo isso como quem nunca enfrentou a guerra, ou a tortura, ou a invasão".
Tenho pela obra de Martin Scorsese a maior admiração. Digo mais: tenho pela figura humana do cineasta ítalo-americano, cuja filmografia assemelha-se à dimensão estética do sueco Ingmar Bergman, não menor carinho intelectual (seja lá o que isso for!). Tentarei me fazer compreender.
A concluir pelo que pude conhecer do artista e do homem, a partir dos filmes que fez, das entrevistas que concedeu e dos textos que escreveu, examinados atentamente por este escriba, quero ressaltar, concluo tratar-se de um exemplo, raro, no contexto da grande arte, em que se pode colocar o homem no mesmo plano de sua obra.
Impressiona-me, o diretor e roteirista, pela genialidade de sua cinematografia, uma das mais belas do ponto de vista formal, e, por certo, de maior densidade de conteúdo.
Conquista-me o homem pela profundidade do seu pensamento, por sua visão de mundo, e, pasmem, pela religiosidade.
E quando falo de religiosidade, não me limito a destacar o caráter superficial com que comumente se usa a palavra, mas no sentido filosófico; como atitude diante do sagrado e da relação humana com o transcendente.
Como Bergman, quem sabe com a mesma verticalidade de sondagem psicológica e a mesma qualidade estética, elevada pela disponibilidade de recursos de linguagem certamente mais amplos e mais potentes no plano da expressão, Martin Scorsese transita pelo território da filosofia da religião a fim de investigar a natureza e os conceitos de Deus e do sagrado, a validade da fé e sua conflituosa interrelação com a racionalidade.
É nessa perspectiva, pois, em que artista e homem se encontram, ambos tratando da religiosidade sem se prender a dogmas que circunscrevam essa manifestação do sagrado aos limites de uma dada religião, mesmo, como se sabe, sendo ele, Martin Scorsese, católico e ligado em reconhecida factualidade aos fundamentos do catolicismo de Roma.
Note-se, por necessidade de maior clareza, que a palavra em sua etimologia se prende ao verbo "religar" (ou reconectar, numa opção lexical mais contemporânea), dando a ver a necessidade humana de reconhecer o fundamento último da existência, ou seja, religando-o à vida para além de suas limitações humanas.
É sob este aspecto que me refiro à figura do artista como homem, num tipo de simplificação que reconheço delicada, para tratar de um dos temas mais caros à filosofia da arte, matéria a que dediquei parte significativa de minha trajetória como professor de disciplinas que tratam da Arte em suas diversas dimensões.
É com entusiasmo, portanto, que acabo de ler (e recomendo enfaticamente) o recém-lançado "Diálogos sobre a fé" (Record, 2025), livro em que mais objetivamente se pode compreender o lado "religioso" de Martin Scorsese a partir de conversas levadas a efeito pelo cineasta com o padre jesuíta, jornalista e ensaísta italiano Antonio Spadaro.
Delicioso em sua textura formal, portanto muito mais que bem escrito, o livro vem a público num momento histórico de incertezas, imensas contradições e espiritualidade de consumo, o que, não bastasse o que representa como reflexão sobre uma das mais poderosas obras artísticas do Cinema, ensejando a percepção de elementos estéticos raramente examinados pela crítica especializada, proporciona, tanto ao estudioso quanto ao leitor comum, uma experiência reveladora --- algo como um lampejo em meio à escuridão.
Numa conversa franca, e ao mesmo tempo profunda sobre arte e fé, o livro explora os mistérios que se escondem no que existe de mais humano em Martin Scorsese, quer na perspectiva do artista inclassificável, quer na perspectiva do homem atravessado por obsessões, dúvidas, culpa, violência e incansável busca de Deus.
Ler este livro maravilhoso (que me perdoem o que existe de abstrato na adjetivação) é uma experiência mais que enriquecedora. É conhecer de mais perto um artista grandioso, que fez de sua arte prodigiosa e bela, um tipo de oração, como a descobrir que a fé é caminho único, incontornável, necessário para sua salvação.
 
 

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A CURVA DA ESTRADA

Para o poeta Fernando Pessoa a morte era como a "curva da estrada". Não o fim, mas uma passagem, um ponto no percurso da vida. Morrer, "apenas não ser mais visto".

Hoje, 26 de novembro, faz 31 anos desde que morreu Roberto Costa. Sobre ele, escrevi em livro de memórias o texto abaixo.

Os primeiros anos de minha vida, dividi-os entre as casas de papai e tio Nelzinho. Não raro, passava meses sem conviver com meus irmãos, por conta de viagens que fazia com o meu 'outro pai e a minha outra mãe', que eram Julieta Barros Costa, ou, simplesmente, Titieta, como a chamava amorosamente, e meu tio.
Cresci sendo educado, parte por meus pais, parte por esses tios maravilhosos, que, assim, naturalmente, passariam a ocupar no meu coração quase o mesmo espaço que meus pais de sangue. Amei-os tão fervorosamente como se fosse dado a alguém o milagre nunca conseguido de se ter dois pais e duas mães, igualmente amáveis e zelosos.
Mas foi a convivência com esse ser humano diferenciado que me causaria as maiores impressões, o jeito alegre de viver, a inteligência privilegiada, a sensibilidade de uma alma superior, a capacidade de lidar com as adversidades sem franzir a testa ou demonstrar qualquer irritabilidade. O sorriso sempre aberto.
Esses e outros incontáveis atributos, estavam ali, à minha frente, constituindo um exemplo a ser seguido, cedo ou tarde.
Com o tempo, na medida em que fui amadurecendo, a minha convivência com Roberto foi se tornando mais íntima, mais frequente. Saíamos juntos, ele, Edilmo e eu, mal começava o dia, até a Varzinha, onde, agrônomos, os dois administravam os algodoais e o rebanho bovino. Ficávamos ali até por volta das dez, onze horas, quando de volta à cidade, acompanhava-os de volta à casa.
Nos finais de semana, ao cair da tarde, ia com esses irmãos siameses (Roberto e Edilmo andavam quase sempre juntos) ao encontro de um grande e invariável grupo de amigos, para um drinque, e jogar conversa fora. Acho que, mais novo e condicionado a conviver com esses homens feitos, por isso mesmo fui amadurecendo precocemente. Participava das conversas, discutia os mesmos assuntos e tinha, guardadas as pequenas diferenças, os mesmos gostos para quase tudo.
Mais tarde, viria a atividade política. Roberto vereador, vice-prefeito, deputado estadual, prefeito, uma liderança leve e destituída dos achaques tão comuns aos políticos em geral, como a hipocrisia, a vocação para prometer e nunca cumprir, a arrogância e a prepotência, ia, passo a passo, constituindo uma referência que eu, sem qualquer esforço para tanto, passava a imitar, num tipo de espelhamento que me fazia crescer como gente. Hoje, quando paro para escrever estas memórias, a imagem de Roberto parece estar aqui, ao alcance de um simples olhar, e, sem esforço, posso ouvir a voz ligeiramente trêmula desse primo querido a quem devo tanto pelo que sou.
É compreensível que, pela visibilidade social e, sobretudo, pelo sucesso na atividade política, Roberto despertasse algum desconforto a muita gente, coisa que a sua morte e o reconhecimento, um tanto tardio, de suas imensas qualidades de homem poriam por terra.
Em vida, aqui e acolá, vez e outra, foi retaliado e objeto da maledicência de uns poucos, incompreendido, injustiçado, sem, contudo, jamais perder a serenidade ou alimentar qualquer sentimento negativo ou revanchista. Um homem bom, superior a qualquer maldade ou inveja de que fosse alvo.
Acima de tudo, porém, Roberto soube granjear amigos como ninguém. E era um líder nato, uma figura humana para a qual, onde quer que estivesse, todos os olhares naturalmente se voltavam. Tinha algo abençoado nos seus gestos mais desinteressados, uma radiação benigna em sua palavra.
Com o passar do tempo, cada vez mais, fico convencido de que Roberto era uma dessas pessoas que vêm ao mundo para cumprir uma missão, para dar com a sua vida um exemplo de complacência permanente, e boa vontade no trato com o próximo, a quem veem como um irmão.
Não bastassem essas qualidades absolutamente necessárias, de natureza íntima do ser humano, Roberto estava invariavelmente bem-humorado e tinha uma presença de espírito desconcertante. Eram alegres os momentos de entretenimento ao seu lado, tinha sempre uma piada nova, uma improvisação brincalhona, uma provocação jocosa com um e outro, um jeito de fazer festa das mínimas coisas.
Na atividade política, onde se notabilizaria pela capacidade de negociação, pela disposição para o diálogo e pela correção de propósitos, foi um visionário e um construtor de sonhos. Para ele, pude testemunhar de perto, nada era maior que o interesse coletivo, o bem-estar do povo. Suas ideias eram radicalmente assentadas na vontade da maioria, na satisfação das aspirações alheias, desde que, para torná-las realidade, jamais tivesse de abrir mão dos seus princípios, dos valores morais por que orientava suas decisões.
Sem dúvida, foi, à larga, um dos melhores prefeitos de Iguatu, em que pese o tempo mínimo de sua administração.
Como vereador e líder de bancada na Câmara, só uma vez me indispus com Roberto. Coisas da atividade política. Fui favorável a uma emenda a um projeto de aumento de salário dos servidores municipais, apresentada por um vereador de oposição, e, considerando a repercussão aos cofres públicos superiores às possibilidades reais, Roberto vetou-a. Deixei a liderança da bancada e 'cruzei' os braços ante os projetos de sua administração. E as matérias do seu interesse começaram a ser derrubadas pela oposição.
Dois ou três meses depois, por volta de onze horas, meia-noite, pouco mais ou menos, Roberto bate à porta de minha casa. Estava com o então vice-prefeito Marcelo Sobreira, exultantes os dois. A primeira pesquisa de opinião, uma novidade à época,  sobre a administração Iguatu acima de tudo, o lema do seu governo, indicava uma aprovação enorme, com números nunca obtidos por qualquer prefeito naquele tempo.
Fomos para a varanda de casa, abri um uísque e varamos a madrugada jogando conversa fora. Acabara aquilo que, em verdade, nunca existira, a suposta inimizade entre nós. Nas sessões seguintes, os projetos de Roberto voltariam a ser aprovados. Havia mais que o meu voto pessoal, que jamais negara ao que fosse bom para a cidade, havia o meu empenho, o discurso relativamente hábil e convincente, o jeito de tratar com os opositores, àquela altura, hoje vejo com clareza, assimilado do próprio convívio com Roberto.
Na noite do sábado, véspera do acidente trágico em que viria a falecer, Roberto veio a ter comigo. Eu jantava com Sulene, minha mulher à época, num restaurante da cidade. Falou-me das visitas que fizera a alguns vereadores. Nutria a vontade de me tornar presidente da Câmera.
Não o fez. Sorrateira e implacável, "A indesejada das gentes"* esperava-o à beira do caminho. 
*A expressão é do poeta Manuel Bandeira, e se refere à Morte.