quinta-feira, 28 de maio de 2020

Contra o Ódio

À exceção dos 20% de fanáticos que seguem insanamente o presidente Jair Bolsonaro, a que se somam ortodoxos de extrema-direita e a gente endinheirada para quem nada é mais importante que sua riqueza, perfazendo os 30% que ainda dão sustentação a esse governo tresloucado e fascista, todos sabem: o país está à beira do caos.

Entregues à sorte das vontades inconfessáveis da primeira-família, os brasileiros assistimos, como que impotentes, ao ódio institucionalizar-se pelos quatro cantos do território nacional. Em meio ao pandemônio, que lembra o pior da ficção da literatura e do cinema, resta-nos ler bons livros, nomeadamente aqueles que nos ajudem a compreender o destino tenebroso a que fomos condenados.

A esse propósito, acabo de ler, em versão eBook, o oportuníssimo Contra o Ódio ( Editora Âyiné, 194 págs.), da filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, um consistente trabalho em que se misturam ensaio crítico e reportagem capaz de apontar caminhos para a interpretação de um tempo marcado pela aversão ao diferente e ao contraditório.

Nesse sentido, embora apoiado predominantemente em exemplos extraídos dos Estados Unidos e da Europa, o livro constitui um esteio analítico bem apropriado para se tentar penetrar o universo autoritário e intolerante por que o Brasil vem sendo conduzido no atual (des)governo.

Sobre a Alemanha, por exemplo, o ensaio examina como, à luz de uma política reacionária a exemplo da nossa, é que os alemães professam o fortalecimento de um sentimento nacionalista que se contraponha à globalização, à convivência pacífica com os imigrantes, com as minorias e os grupos historicamente excluídos, como forma de construir o que a autora define como, para esses, seria a verdadeira Alemanha.

Contra o Ódio, subdivide-se em três partes: 1. Visível – Invisível; 2. Homogêneo – Natural – Puro e 3. Elogio ao Impuro. Mas é na segunda delas que o livro concentra toda a sua força, com reflexões originais acerca de temas considerados eternos, o Amor, a Esperança, a Preocupação, o Ódio e o Desprezo.

Numa percepção a um tempo simples e esclarecedora, Carolin Emcke nos faz lembrar que "O outro é fabulado como um poder supostamente perigoso ou como algo supostamente inferior; e assim os maus-tratos e o desejo de erradicação subsequente do outro não são reivindicados apenas como medidas desculpáveis, mas necessárias. O outro é aquele a quem alguém pode denunciar ou desprezar, ferir ou matar impunemente".

Para quem, não pertencendo ao esquema perverso que impera hoje no Brasil sob diferentes máscaras, queira respaldar em chave teórica a sua interpretação do Brasil hoje, o livro de Carolin Emcke constitui uma leitura oportuna e por demais enriquecedora.

Recomendo.

  

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Apesar de Você

"Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu de inventar / O perdão".

A arte tem, entre as suas principais funções, a função sinfrônica, isto é, a capacidade de extrapolar os limites cronológicos, reatualizando-se e, por isso mesmo, imortalizando-se e ao seu criador.

Um romance calcado em bases estéticas consistentes, um conto bem tecido em sua perspectiva formal e conteudística, um poema capaz de expressar a verdade dos sentimentos humanos mais profundos, um texto de teatro elaborado em conformidade com os elementos teóricos e estruturais da grande dramaturgia, uma composição pautada na lógica matemática dos pressupostos musicais, um filme em que sobressaiam o domínio da linguagem cinematográfica e a percepção sensível dos conflitos do homem, exemplificam a arte atemporal, sintonizadora, que se ressignifica e se adequa a cada momento histórico de um país, de um povo ou da própria humanidade. Com a arte popular não é diferente.

"Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / E eu pergunto a você / Como vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar / Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar".

Os versos de Chico Buarque aqui citados, para ficar num exemplo extraído do cancioneiro popular brasileiro, pertencem à canção Apesar de Você, de 1970, inspirados nos horrores infligidos aos brasileiros desde o golpe militar de 1964.

Lançada, em princípio, em compacto simples, a obra seria proibida de ser executada nas rádios brasileiras e retirada de circulação até 1978, tornando-se carro-chefe do LP Chico Buarque, uma dos álbuns mais importantes da história da Música Popular Brasileira.

"Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar".

A canção seria gravada por Clara Nunes, uma das cantoras brasileiras de maior prestígio à época. Numa interpretação marcada pelo rigor técnico que era mesmo uma das marcas da sambista carioca, Apesar de Você seria objeto de uma das ocorrências mais bizarras no que diz respeito à censura militar e suas práticas hediondas: sob ameaças inconfessáveis, que iam de uma provável prisão ao assassinato de pessoas da família, fragilizada moral e psicologicamente, Clara Nunes negociaria o perdão militar com sua participação como cantora oficial das Olimpíadas do Exército de 1971.

"Apesar de você / Amanhã a de ser / Outro dia /  Você vai ter que ver / A manhã renascer / E esbanjar poesia / Como vai se explicar / Vendo o céu clarear / De repente, impunemente / Como vai abafar / Nosso coro a cantar / Na sua frente".

Chico Buarque, após um autoexílio na Itália, retornaria ao Brasil em 1970. Supostamente incentivado a voltar por diretores de sua gravadora, a Philips, sob a alegação de que o país vinha passando por mudanças que apontavam para a redemocratização, o artista depararia com um cenário tenebroso: tortura, desaparecimento de pessoas contrárias à ditadura, perseguição desenfreada a intelectuais, professores e estudantes, prática de bandalheiras acobertadas pelo regime militar (que golpeara de morte a democracia sob o pretexto da moralização no trato da coisa pública), enfim, um país politica e eticamente devastado.

"Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai se dar mal / Etc. e tal".

Carregada de metáforas simples e belas, que Chico Buarque estrutura em versos a um tempo fáceis e rebuscados, pois que dando a ver o pleno domínio da carpintaria poemática explorada pelo autor, Apesar de Você é sugestivamente dirigida a Emílio Garrastazu Médici, o ditador de plantão à época, mas constitui exemplo clássico de uma arte capaz de reatualizar-se com igual força e incontrastável oportunidade tantos anos depois. O caráter sintonizador e atemporal da arte a nos dar confiança no porvir.

Em tempo: O quadro de inominável terror que tomava conta do país, ocultava-se canhestramente sob músicas de cunho nacionalista do tipo Eu Te Amo Meu Brasil, da dupla Dom e Ravel, e Pra Frente Brasil, há poucos dias mal entoada em rede de tevê pela atriz Regina Duarte. Sim: e as pessoas vestiam-se com a camisa da seleção brasileira a festejar a conquista do tricampeonato mundial de futebol, no México.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Normal repaginado

No 'pacote' de expectativas para o pós-pandemia, a exemplo do que ocorre sempre que a humanidade é posta diante de grandes crises, capazes de afetar a sua lógica de normalidade, é comum que as pessoas busquem construir "discursos" que apontem, passado o pior, para mudanças na sua forma de pensar e ver as suas experiências de alteridade. É como se, diante do quadro de medos e incertezas, tão logo restabelecida a tal normalidade, todos se dispusessem a rever seus valores, suas práticas e forma de encarar a vida. E o mundo, a partir de então, fosse uma boa novidade.

O discurso da vez, também no Brasil, em meio ao caos que toma conta do país em decorrência da pandemia da Covid-19 e do desgoverno que a agrava dramaticamente, é que viremos, terminada a pandemia, a viver um "novo normal", com mudanças significativas em tudo que diz respeito à nossa maneira de lidar com o outro e com nós mesmos, aí evidenciada a necessidade de adotarmos no dia a dia providências que nos protejam de novas doenças ou mesmo de uma segunda onda do ser invisível que transformou o mundo em poucos meses.

Como ressalta, com a agudeza de sempre, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em belo artigo publicado pela Gama Revista, a expressão "novo normal" não é um termo recente, nem tampouco diz em realidade o que ocorreu sempre que a sociedade foi obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária.

Ela nos lembra que as ciências sociais se dedicaram sempre a tentar entender não como as sociedades mudam, mas sobretudo como elas se mantêm como são. O "novo normal", assim, é um discurso que visa a acomodar uma situação em que as contradições e desigualdades permanecerão, agora encobertas por mudanças que, no fundo, reproduzirão os contrastes de sempre: estar em casa e repensar a utilização racional do espaço doméstico, por exemplo, num país em que 20% das pessoas vivem em moradias de um cômodo (em que convivem quatro ou mais habitantes) e trinta e três milhões de brasileiros não dispõem de abastecimento de água confiável.

"Novo normal" para quem? --- pergunta Schwarcz.

Nesse sentido, dentre as expectativas anunciadas diante do "novo normal", sobressaem novas formas de trabalhar, de divertir-se, de estudar etc., cujas exigências pressupõem sobretudo acesso e um perfeito domínio das novas tecnologias de conectividade, num país em que uma em cada quatro pessoas sequer tem internet em casa.

Nessa perspectiva, pois, é que o "novo normal" é o "normal" repaginado num discurso elitista e indiferente às absurdas desigualdades que sugerem a existência de muitos brasis num só.

Para qual deles estamos falando quando usamos a decantada expressão de um "novo normal"? 

 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

O poeta e a pandilha

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas.

Em fins dos anos 70, os símbolos e as cores nacionais nos causavam pavor. Um simples acorde do hino nacional, era capaz de ocasionar dentro de cada um de nós um misto de ansiedade e medo, um tipo de indignação que nos irava e não raro podia nos levar às lágrimas.

Por trás de tudo isso havia cadáveres, filhos órfãos de pais vivos, estudantes assassinados ou mutilados, intelectuais e artistas presos e mandados para fora do país ou submetidos a sessões de tortura impensáveis nos porões pútridos da ditadura.

Nossos hinos, natural, eram outros, a exemplo da canção Caminhando (também conhecida por Para não dizer que não falei de flores), de Geraldo Vandré, que cantávamos a plenos pulmões, conscientes de que as metáforas desconcertantes da letra, brutalmente censurada, poderiam resultar numa cadeia ou em coisas muito piores.

Pouco depois, 78 ou 79, um compositor carioca até então pouco conhecido entre nós, ganhava o país com a força e a beleza de versos cujo conteúdo homenageava a volta dos brasileiros exilados e tornar-se-ia, da noite para o dia, uma espécie de verdadeiro hino nacional.

Nessa segunda-feira, ampliando impiedosamente um obituário já desmedido em que figuram  nomes como os de Moraes Moreira, Flávio Migliaccio e Rubens Fonseca, morreu, no Rio de Janeiro, aos 73 anos, Aldir Blanc Mendes, num hospital ironicamente localizado no bairro de Vila Isabel, cenário de tantas e tantas de suas mais belas letras, poemas e crônicas.

Aldir Blanc deixa uma das obras mais expressivas do cancioneiro popular, nomeadamente as músicas que assina com o amigo-irmão João Bosco, pérolas como Bala com bala, Corsário, Mestre-sala dos mares, Dois pra lá, dois pra cá, bolero que entra para a história da MPB como uma verdadeira unanimidade em que se depara com um dos mais belos versos de seu repertório: "E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar".

Para não falar, claro, no hino da anistia O bêbado e a equilibrista a que nos referimos acima: "Caía a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos/A lua tal qual a dona de um bordel/Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel".

Num momento em que precisamos tanto da poesia, despede-se de sua gente esse grande poeta e grande brasileiro.

IRONIA

Reconquistados o nosso entusiasmo e o apego aos símbolos e cores nacionais, desde a campanha pelas Diretas Já e a redemocratização do país, voltam eles a ser utilizados na contramão dos anseios dos verdadeiros devotos de nossas melhores tradições, usurpados por energúmenos que apregoam, sob a inspiração tresloucada do psicopata presidente, a volta do Regime de Exceção e do AI5.

Como disse a escritora Claudia Tajes, em texto memorável, que ao menos enquanto a ferida cicatrizar, que o primeiro uniforme [da seleção brasileira] troque o verde e amarelo que foi usurpado pelo azul, rosa, laranja, preto, branco. Sendo cor de burro quando foge, dá para vestir com orgulho novamente. Depois que tudo passar.