segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Cartinha ao professor querido

Meu querido professor e amigo Diatahy.

Há intelectuais diante de cujos trabalhos talvez bastasse dizer: "Li o seu artigo, seu ensaio, seu livro etc.", e desse registro tirar-se-iam as conclusões mais óbvias acerca dos mesmos, porque dotados de qualidades tão esperadas que nada mais deveria ser dito em acréscimo. Você está entre esses intelectuais, pelo pouco que tive o privilégio de ler de sua expressiva produção ao longo de muitos anos, em colunas de jornal, artigos acadêmicos de mais fôlego e, a exemplo do que fiz recentemente, já aqui na serra, prefácios como o que produziu para o belo livro, de Ralph Della Cava, "Milagre em Joaseiro" (Companhia das Letras, 2014).

Como você, no entanto, em mais um gesto de humildade para com este seu amigo e aluno, pede-me uma opinião sobre o artigo "A violência da cidade e do programa radiofônico", não me esquivarei a dizer sobre ele duas palavras, cuidando para, à maneira de Machado de Assis, que tanto admiramos você e eu, não desobedecer às qualidades que o Bruxo de Cosme Velho considerava incontornáveis no exercício da crítica: consciência e perseverança; coerência e tolerância; independência e imparcialidade. Vá lá que consiga fazê-lo, como disse, em duas palavras.

Começo por evidenciar o que mais me chamou a atenção mal comecei a ler seu artigo: uma atualidade que o qualifica como uma contribuição importantíssima para o debate em torno de um dos problemas "eternamente urgentes" do mundo contemporâneo e, como o seu texto evidencia, do Brasil, a que tomo a liberdade de acrescentar "de hoje", governado por um fascista que nada fez nesses dois anos senão agravá-lo em proporções gigantescas. Nesse sentido, deixo uma sugestão: por que não reescrevê-lo, inserindo-lhe referências mais diretas à realidade difícil e pungente de agora, essa realidade em que as mulheres, os negros, os homossexuais e os pobres precisam tanto que nos ombreemos todos à sua causa? Sem isso, que me perdoe sair um pouco do assunto, não há Estado de Direito, não há liberdade, não há democracia! Há violência!

Volto ao seu texto. Que densidade de ideias, que clareza de estilo, que alcance bibliográfico para um 'simples' artigo...., como você responsavelmente observa, nascido de uma delimitação tão consciente e despretensiosa! No que, por sinal, como lhe é próprio, revela-se extremamente econômico, pois que o texto projeta-se para amplitudes de análise que o tornam exemplar notável de exame da violência e de sua repercussão em termos radiofônicos  ---  que muito bem se aplica com correção, diga-se em tempo, a outros meios de comunicação. É ver o que têm feito com as pautas de nossos noticiários de TV para constatar o que digo!

A abordagem que faz do tema, tipificando-o em chave nova, é coisa que me chama a atenção com entusiasmo. Nesse sentido, você vai à raiz, revira entranhas, vasculha preconceitos, reescreve teorias, vira e mexe, faz e acontece, tudo sem perder o fio da meada, o leitmotiv da análise, o critério acadêmico, a visada original e inventiva (dando-se ao adjetivo o sentido que se pode permitir para um trabalho de cunho 'científico'!).

Andando mais um pouco, como um formalista assumido, permita-me que faça alusão ao estilo: como você escreve bem, como tem um senso de medida, como sabe lidar com a palavra, azeitando a expressão com esmero, sem lhe tirar a leveza e a espontaneidade. Enfim, é notável o que faz com o estilo, mesmo num texto cuja razão de ser requer apenas objetividade, clareza, coesão, coerência, pertinência etc., essas qualidades em que você sempre foi um mestre e que dispensam referências mais atentas em se tratando de um texto de sua autoria.

Ao citar Marx, mesmo para um tempo em que é tão delicado fazê-lo, você teve a sensibilidade de um craque. Foi fundo na compreensão do que, nele, tomando por base o fragmento usado, é pura e fina ironia. Só isso já é prova de sua capacidade impressionante de lidar com a matéria examinada, o olhar voltado para o que persegue como articulista: o 'nervo' em que pulsa o elemento mórbido de uma sociedade mais criminosa que aqueles que condena, lançando mão de uma super-estrutura viciada e tendenciosa! Aqui, para que meu comentário não seja tão-somente um aplauso ritmado e febril, pelo que o seu rigor certamente me fará restrições (jamais me esqueci de suas aulas numa época que já vai distante!), juro que esperei um pouco mais de Foucault, do "Vigiar e punir", constante de sua bibliografia, e de tantos outros textos ao meu ver incontornáveis, a que negou o seu olhar, frustrando-me expectativas!

No mais, seu artigo me impressiona e ensina!  

Eram duas palavras. Cumpro o prometido! Mas como tinha ainda por dizer!

Abraço, desse seu amigo e admirador!

Álder Teixeira  

 

 

 

 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Ainda sobre Clarice Lispector

Quando escrevi aqui sobre o centenário de Clarice Lispector, ocorrido na quinta-feira 10, chegaram-me inúmeras manifestações de enorme apreço pela escritora nascida na Ucrânia e vinda para o Brasil contava ela menos de três meses. Muitos desses leitores (curiosamente homens, em sua grande maioria) diziam o quanto a escrita de Lispector os seduzira desde muito cedo, fazendo parte de um imaginário estético subjetivo que os acompanha através dos tempos. Como um admirador assumido da autora de Perto do Coração Selvagem, livro de estreia de Clarice que considero o melhor de toda a sua obra, confesso que fiquei entusiasmado com o fato de um número maior de homens ter revelado o fascínio exercido pela escritora. Explico-me.

Na minha juventude, eram as amigas que me falavam com frequência de Clarice Lispector, que me emprestavam livros de sua autoria, que citavam trechos de seus livros nas coisas que escreviam, nas cartas de amor, nos trabalhos escolares, nas capas de seus cadernos, e, as mais vocacionadas para as coisas da literatura, discutiam seus romances e contos, não raro deitando em suas análises um domínio de linguagem acerca de Clarice que me impressionava.

Passaram-se os anos, já no curso de Letras da UFC, e podia eu perceber que eram as colegas mulheres que sempre conduziam entre os muitos livros os livros de Clarice, que se diziam imensamente identificadas com o estilo da ficcionista, que a exaltavam pelo que sua prosa de ficção trazia, em níveis poucas vezes alcançado, o que existe de mais íntimo e mais misterioso da alma feminina. Assim, abominando invariavelmente qualquer tipo de preconceito, fui cedendo a precipitar juízo sobre a obra dessa escritora inconfundível, das maiores de língua portuguesa: Clarice Lispector é a paixão das mulheres em termos de literatura. Ledo engano, viria a concluir com o passar do tempo, quando os estudos mais embasados do que se pode definir como obra de arte literária passaram a obedecer critérios mais rigorosos e mais consistentes teoricamente falando. Clarice Lispector era uma artista, grandiosa e singularmente "autoral", e produzia, por isso mesmo, uma obra universal, humana, demasiadamente humana, na linha do que professara Nietzsche, não sem razão um dos filósofos mais admirados por homens e mulheres de todos os países que se dedicam a tentar entender o indecifrável mistério da existência.

Em verdade, não é Clarice Lispector uma unanimidade, que não errou Nelson Rodrigues ao afirmar que toda unanimidade é burra, mas é, cada vez mais, com o passar dos anos, uma escritora compreendida pelo que proporcionou de inovação para a estrutura do romance e do conto (para não falar da cronista igualmente original e elegante), para a sondagem do que pulsa no mais profundo da alma de homens e mulheres, pelo uso desconcertante dos recursos da forma e pelo estilo com que tece a urdidura do texto literário.

Já no final de sua vida (Clarice morreria em dezembro de 1977), como para não dar margem aos que a acusavam de indiferente aos problemas sociais do país, num equívoco que se prende a um fundamentalismo esquerdista tolo e sem preparo, abandona ela a inflexão intimista e escreve um dos romances mais lucidamente engajados de que se tem notícia desde a geração de 1930, A Hora da Estrela, cuja tessitura se faz de suor, sangue e lágrimas. Não vou me estender sobre o livro, que já me falta espaço aqui. Dou à própria Clarice a palavra, citando-a em crônica publicada em A Legião Estrangeira, sob o céu sem luz de setembro de 1964, mal começavam os horrores do golpe militar e da ditadura brutal: --- "Desde que me conheço o fato social teve em mim a importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir 'arte', senti a terrível beleza profunda da luta".

Em 1968, quem atentar a vista para as fotos da passeada dos Cem Mil, que marcaria época nos atos em favor da liberdade no Brasil, saberá identificar Clarice Lispector na cabeça da manifestação histórica. Um outro modo de expor a sua coragem e a sua coerência. Viva Clarice Lispector!

P.S. Feliz Natal aos leitores!

 

 

 

 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sublime Clarice Lispector

"Sou uma mulher simples. Não tenho sofisticação. Parece que me mitificaram. Eu não quero ser particular." A frase, que cairia à perfeição se proferida por uma de suas personagens, é dita pela escritora, revelando-se avessa à fama adquirida já a partir da publicação do seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1943.

Nessa quinta-feira 10, Clarice Lispector faria cem anos. A data foi e será comemorada nos mais importantes eventos dedicados à literatura, pois que a aniversariante, morta em 9 de dezembro de 1977, é responsável por uma obra cuja função sintonizadora, aquela que rompe o tempo e o espaço, imortalizando-se e imortalizando quem a escreveu, tornou-se quase uma unanimidade no Brasil e nos mais de trinta países para os quais foi traduzida.

O texto, inicialmente desafiador, pela ousadia do estilo e pela profundidade com que explora a alma humana, é de uma beleza estética desconcertante. Às vezes, causa um compreensível estranhamento, tamanha é a originalidade com que Clarice Lispector tece a sua urdidura, mas a palavra logo seduz pelo encanto da pegada, pela sutileza dos ardis que sua prosa vai abrindo aos olhos do leitor. Por essa razão, entre outras atinentes à forma e ao conteúdo, quem lê um livro da escritora ucrano-pernambucana (nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil ainda bebê) tende comumente a querer ler os demais, como quem, num dia de sol escaldante, mergulha nas águas doces de um lago e não quer mais sair.

Em A Paixão Segundo G.H., de 1964, romance que começa e termina com seis travessões, como a indicar o que teria sido e o que virá a ser a narrativa, num todo vertiginoso construído de memórias e projeções por que é tragado o leitor, Clarice Lispector explora uma das mais inusitadas situações dramáticas de que se tem notícia desde A Metamorfose, de Franz Kafka: em seu apartamento, no último andar de um edifício, a narradora resolve ir ao quarto da empregada que se demitira. Lá depara-se com uma barata saindo de um armário. A consciência de sua solidão, dela e da barata, a leva a um estado de morbidez incontrolável, como se desejando tocar na barata, mais que isso, comer a barata para sentir o seu gosto e, assim, voltando à condição primitiva, de tal modo selvagem, que a purifique, despojando-a dos vícios e costumes de uma sociedade artificial, asséptica e alienante.

"Ontem de manhã --- quando saí da sala para o quarto da empregada --- nada me faria supor que eu estava a um passo da descoberta de um império. A um passo de mim. Minha luta mais primária pela vida mais primária ia-se abrir com a tranquila ferocidade devoradora dos animais do deserto."

Ler Clarice Lispector é adentrar um universo desconhecido e não raro alucinante, experiência capaz, no entanto, de nos levar, sob a força de uma poesia a um só tempo doce e  profundamente dolorosa, à descoberta de nossa realidade interior   --- o lado mais irrevelável de cada um: --- "Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada, eu te entrego tudo  --- para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu nunca falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia."

Sublime Clarice Lispector!

 

 

 

 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Quando a desfaçatez desconhece limites

Ao tornar-se "sócio-diretor" da Alvarez & Marsal, empresa responsável pela recuperação judicial da Odebrecht, conglomerado empresarial condenado por ele mesmo quando juiz e figura central da Lava Jato, o ex-ministro Sergio Moro escancara o seu despudor e assume de forma indefensável o seu envolvimento com práticas nada condizentes com o que, à época, dizia ser a mais definitiva ação contra a corrupção do país. Tudo em troca de salários estratosféricos.

O mais irônico no festival de desfaçatez que o ex-juiz tem promovido desde que assumiu o Ministério da Justiça, como paga por ter limpado o caminho que levaria Jair Bolsonaro à presidência da República, é que a empresa de que agora Sergio Moro se torna sócio-diretor é a mesma que emitiu parecer, amparado em minuciosa investigação, de que o ex-presidente Lula nunca fora proprietário do tríplex do Guarujá, bem como fraudulento o processo que o levaria à cadeia por determinação do próprio Sergio Moro. Por oportuno, deixe-se claro o que fará o ex-juiz, segundo justificativa de sua contratação pela Alvarez & Marsal: "... desenvolvimento de políticas antifraude e corrupção". Hilário, não fosse ridículo.

Com a experiência e o domínio de um notável repertório em termos de "jeitinhos" para alcançar seus objetivos, a que se soma o prestígio "Teflon" que ainda detém em torno de sua imagem digna de uma tela do anglo-irlandês Francis Bacon, o famigerado pintor do grotesco, dos pesadelos e das deformações faciais, é de se antever o que fará Sergio Moro a fim de desconstruir as condenações por ele mesmo formalizadas contra a Odebrecht. Além de um salário suficiente para enriquecê-lo em pouco tempo, quais não serão os outros dividendos que o inescrupuloso Moro não terá em vista, é a pergunta que não quer calar.

Por muito menos em matéria de juízo, muitas vezes sustentando suas condenações em suposições, alegando domínio dos fatos e "Garantia da ordem econômica e conveniência criminal", Sergio Moro destruiu reputações, aniquilou realidades e levou às grades inocentes. Revoltante saber: sob o aplauso de multidões.

Fossem outros os tempos, e não maquiados os inconfessáveis interesses de uma imprensa conivente e um Judiciário omisso, os helicópteros estariam sobrevoando um certo endereço em Curitiba. Com a cobertura da Globo, claro, que seria previamente comumicada.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Uma furtiva lágrima

Durante a semana, desde que teci comentários sobre o mais recente romance de Nélida Piñon, foram recorrentes as mensagens que recebi sobre a autora, e, em especial, o seu livro de memórias Uma furtiva lágrima. O fato de que esses comentários estivessem relacionados a este livro, e não a Um Dia chegarei a Sagres, objeto de minha resenha, gerou em mim uma curiosidade: por que tanta alusão a Uma furtiva lágrima, sobre o qual apenas afirmei possuir qualidades estéticas notáveis?

Numa dessas inquietações intelectuais de gosto meramente especulativo, ocorreu-me concluir que o fato se prendia a se tratar de crônicas, em que pese a nítida inclinação para o memorialismo, gênero que tem ganhado nos últimos 30 ou 40 anos um imenso prestígio. Não sem desprezar, por óbvio, a hipótese de que tal motivação ainda se devesse à beleza do título, Uma furtiva lágrima, cuja força expressiva desliza do poético para o confessional, num momento em que são tantas as razões para o pranto discreto, que se faz a furto, como se se procurando passar despercebido.  

Bibliofilia à parte, pensei na hipótese de falar sobre o livro em coluna futura, o que faço hoje motivado, mais ainda, pelas circunstâncias de Nélida Piñon ter arrebatado com Uma furtiva lágrima, na quinta-feira 26, mais um prêmio Jabuti.

O livro é, como já o tinha afirmado, de uma beleza comovente, desses que prendem o leitor por razões que exorbitam suas qualidades formais (embora literatura seja, antes de tudo, isto!) e ganhe musculatura pela ternura que emana de suas páginas, constituindo um exemplo raro nos últimos anos do que se pode identificar como função evasiva da literatura em seu sentido positivo. Explico-me: o livro não representa sob qualquer aspecto um caminho para a fuga da realidade, pelo viés com que se leem comumente certos autores que levam ao esquecimento circunstancial da angústia e das dores tão comuns nos dias de hoje. Não, longe disso. Não é livro de entretenimento.

Dedicado in memoriam ao inesquecível amigo Gravetinho Piñon, segundo palavras com que a própria Nélida reporta-se ao cão a quem dedicou o seu amor mais verdadeiro e mais "humano", Uma furtiva lágrima leva o leitor a fugir do seu lado torto, pragmático e egotista em favor de uma experiência de embelezamento interior que só o milagre da arte e da literatura é capaz de operar com tanta intensidade e de maneira tão definitiva, ainda que na eternidade de um instante  --- que me perdoem o que vai de paradoxal nisso.

Exemplo prático do que afirmo está nas primeiras páginas do livro, no texto intitulado Sentença, quando a escritora se volta para a experiência incomunicável de ter sido desenganada por erro médico a poucos meses de vida. Aí, depara-se o leitor com a dignidade quase sobre-humana da narradora para dizer da morte que se avizinha e da capacidade para domá-la a tempo de enxergar nos detalhes mais bizarros o significado de toda uma existência: "Pensei em fazer um diário breve, um resumo dos meus últimos dias, segundo sentença do oncologista que, com parcimônia e convicção, antes mesmo dos resultados dos últimos exames, foi conclusivo. Eu teria entre seis meses e um ano. Retornei a casa disposta a me preparar".

Em meio à angústia, e ao silêncio só rompido ante a presença de Gravetinho (e Suzy, uma cadelinha igualmente amada), Nélida reúne forças para soerguer-se, impávida, contra a brutalidade do mundo: "... Não ignoro os efeitos do mal radical e tampouco desejo que se faça desta exposição visceral instrumento de arte. E isto porque sou vulnerável aos estertores oriundos da inquisição, do tráfico negreiro, do holocausto, dos genocídios sistemáticos das guerras religiosas, da limpeza étnica, do estupro ideológico, dos porões da ditadura".

Um livro raro, que não se deve desconhecer.

 

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

PT lidera em returnos

Foi morta pelo poder/que queria silenciar/a sua voz de denúncia/e a extrema rebeldia/com palavras de luar (Maria Teresa Horta, sobre Marielli)

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, comemorado hoje como forma de desconstruir o mito da benevolência de uma princesa branca contra o racismo, o Brasil dá mais uma incontrastável prova de viver um tempo de horrores no que diz respeito à questão racial.

Primeira negra eleita na cidade de Joinville, a professora Ana Lúcia Martins, do PT, vem sendo alvo de ameaças assumidamente fascistas, coisa de resto já esperada num país que tem como presidente Jair Bolsonaro.

Mal saído o resultado das urnas, na segunda-feira 16, acumulavam-se mensagens no Twitter que indicam correr Ana Lúcia os mesmos riscos que culminaram com o assassinato da vereadora Marielli Franco, no Rio de Janeiro, há pouco mais de dois anos.

As mensagens, segundo depoimento da advogada Andreia Indalencio Rochi, à Folha, "falam que precisam matá-la para um suplente branco assumir, que fascistas mandam e que ela precisa se cuidar". Com Marielli, sabe-se, em inícios do seu mandato como vereadora do Rio de Janeiro, ocorreu exatamente isso. Até que se cumprisse o que diziam essas ameaças, num crime hediondo que, mesmo não esclarecido em sua totalidade, tem evidências apontadas para um endereço bastante conhecido do Rio de Janeiro.

A poucos dias do segundo turno das eleições para prefeito em 57 cidades com mais de 200 mil habitantes, nas quais 28 candidatos pertencem a partidos de esquerda ou identificados a ela, pode-se perceber que está em jogo muito mais que o destino administrativo de cidades. Das urnas, a 29 deste mês, sairá uma forma de pensar o país, o Estado de Direito e a democracia.

A professora negra Ana Lúcia, eleita vereadora em Joinville, é do PT, legenda que dobrou a sua participação no segundo turno em relação a última eleição para prefeito  ---  e participa do processo, este ano, com o maior número de candidatos.

Não é pouco, diga-se por fim, para um partido que as vozes do fascismo no Brasil afirmam ter degringolado.

 

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Novos Ventos

É muito cedo, por certo, para falar em desconstrução do ideário neofascista no mundo. Há indícios, no entanto, de que a onda ultradireitista vem sofrendo abalos sucessivos, o que constitui alento para os que amam a democracia e se angustiam com as ameaças que esta vem sofrendo na segunda metade dos anos 2000.

Começou com a vitória dos chilenos em favor de uma nova carta constitucional, o que já seria significativo por si só. Mas os chilenos foram além: não era bastante espezinhar o texto de conteúdo pinochetista, jogando-o à lata de lixo a que a própria História já se encarregara de fazer com o seu idealizador. A nova constituição nascerá de uma constituinte formada meio a meio por homens e mulheres, algo impensável à luz dos valores profundamente conservadores (ou reacionários) por que se vinham orientando as ações de mesma natureza mundo afora.

Na sequência, e talvez a mais significativa das mudanças ocorridas nos dois últimos anos, a vitória do socialista Luis Arce (MAS), na Bolívia, numa reação contundente contra o golpe que derrubara Evo Morales.

Em tempo, deve-se frisar: o ex-presidente foi recebido como herói em sua volta ao país.

Sem falar, porque já distante, o caso da Argentina, onde Alberto Fernández venceu no primeiro turno eleições consideradas decisivas para a revitalização das forças de esquerda no continente.

Coroando essa sequência de avanços, em meio à onda ultradireitista que alcançara sua maior altura em 2016, com a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA, a vitória do democrata Joe Biden indica uma inequívoca tendência de refluxo do que vinha colocando em risco as liberdades em diferentes países neste século.

No Brasil, ainda que seja preocupante o quadro de incertezas, pesquisas apontam que nas eleições de domingo 15, nas principais capitais, os candidatos vitoriosos devem estar à esquerda e ao centro do espectro político. A indicar, também entre nós, o que pode ser o fim da retomada facistoide que atingira o seu ponto culminante em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, seus candidatos tendem a sofrer uma derrota acachapante em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e, em proporções mais leves, em Fortaleza.

Tudo a indicar, como se vê, que os ventos estão soprando em outra direção, e os reacionários brasileiros, saídos dos esconderijos como ratos famintos há pouco menos de dois anos, devem "Jair se acostumando".      

P.S. Esta coluna rende homenagem ao cineasta argentino Fernando Solanas, morto em Paris, sábado 7, depois de contrair coronavírus, aos 84 anos. Solanas foi um artista engajado contra a ditadura no seu país e no mundo. Deixa-nos, sobre o tema, clássicos como "Memorias del Saqueo" (2004), "La Dignidad de los Nadies" (2005), "Argentina Latente" (2007) e o belíssimo "Tangos – O Exílio de Gardel" (1985).

 

 

 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A nau perdida

"É a nau perdida/Trem que chega/A nova dança/Mata verde, esperança/Em suas tranças vou voar", diz a bela poesia de Geraldo Azevedo.

Num país em que se  faz júri para julgar a vítima em vez do criminoso, cria-se o "estupro culposo" para isentar a figura do estuprador e mulheres (infelizmente muitas!) saem em defesa do machismo, falta muito pouco para se eleger Tim Maia como nosso maior filósofo. É só recordar a afirmação a ele atribuída: --- "O Brasil é o único país onde prostituta tem orgasmo, cafetão tem ciúme, traficante é viciado e pobre é de direita". Incorreção política à parte, é algo hilário o que se vê hoje sobre o país.

A propósito, por curiosidade, vasculho mensagens na internet que "analisam" as eleições americanas e deparo com coisas impagáveis de um e outro lado, isto é, de "torcedores" de Donald Trump ou Joe Biden, reflexo em grande parte da polarização que tomou conta do país nos últimos anos. E a mesma a "sensatez", claro: "Ganhamos", é como começa sua mensagem um entusiasta brasileiro do partido republicano, quase como a dizer que obteve informações de dentro da Casa Branca. Nada que se compare, no entanto, ao que afirma um deputado federal cearense sobre o atual presidente americano candidato à reeleição: "Trump é um defensor das liberdades e dos pobres e negros, o melhor presidente americano desde Ronald Reagan".

Um outro, desfiando reflexões dignas de um especialista, chama a atenção para o fato de que uma vitória de Joe Biden "é um risco para o Brasil, porque fortalece o PT". E por aí vai a enxurrada de loucuras sobre a eleição para presidente dos Estados Unidos e em que dimensão isso nos diz respeito. Tom Jobim estava com a razão: "O Brasil não é para amadores".

E assim, sem rumo certo, vamos nós, nesta nau dos insensatos, tristes diabos à procura da sobrevivência política em meio a um mar revolto.

Haveremos de deparar, por milagre ou sem ele, com o coqueiro da ilha sob cuja sombra aguardaremos a chegada do salvador.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Carinho para com o ex

Para um ex-professor, quero crer que para todos aqueles que, como eu, dependuraram as chuteiras, pelo menos em termos do que convencionalmente se compreende por atividade docente, nada é mais prazeroso que ouvir daqueles a quem dedicou o seu trabalho em sala de aula, declarações que o façam concluir não ter sido vã a sua tarefa.

Esta semana, não sei por que razão efetiva, tenho recebido de ex-alunos e ex-alunas um sem-número de manifestações de público carinho e gratidão pelo que lhes teria feito ao longo dos mais de 35 anos lecionando no ensino médio e na universidade. Lecionando Arte, faço questão de frisar: literatura e disciplinas afins, artes cênicas, artes visuais e estética do cinema.

Digo isso pelo fato de que, também na universidade, houve um tempo em que ministrei cadeiras curriculares do curso de educação, filosofia da arte e sociologia da educação, por exemplo.

Dessas, mesmo tendo guardado lembranças do que de alguma forma terá contribuído para a minha evolução como professor, resta muito pouco. É do professor de arte que se recordam em sua grande maioria os que, agora, para além do merecimento, elogiam o profissional que fui, e a quem dedicam esse apreço que tomo a iniciativa de revelar na coluna de hoje. Não o faço por vaidade, acreditem, mas por querer tornar público que o reconhecimento ao trabalho de um professor é o que de mais significativo pode existir, não fechando os olhos para a necessidade de que esse reconhecimento se traduza, também, em melhores condições de trabalho e em salários dignos.

A propósito, uma ex-aluna escreveu-me sobre o impacto que lhe teria causado (e influência, diz ela) os momentos em que levei para a interpretação da obra elementos originários de outras ciências, a exemplo da filosofia, do estruturalismo e, sobretudo, diz ela, da psicanálise: "A sua leitura de Lygia Clark a partir de Freud, professor, fez-me penetrar a natureza de sua criação artística. Obrigada por isso, A.!"

Li o que me escreveu a ex-aluna e, agradecido, ocorreu-me lembrar que deixara passar em brancas nuvens, neste espaço, o aniversário de 100 anos da artista mineira, cuja importância para a arte conceitual do Brasil e do mundo é imensa, respondendo, na mesma medida de um Hélio Oiticica (ou mais!), pela descoberta da 'não representação' e da desmistificação da arte, o que significa dizer: da inserção do espectador no que se convencionou chamar de experiência estética.

Por limitações de espaço, no entanto, voltarei a Lygia Clark na semana que vem.   

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

O aniversário de um Rei

Por grande que um rei seja, é como nós humano:/Como outro   homem também, passível é de engano. (Corneille, 1606-1684)

Há coisa de alguns anos, estava eu em Estocolmo, e ocorreu-me lembrar que um dos cartões postais da cidade é o estádio Rasunda, que figura nos folders turísticos da capital sueca com um dos seus principais atrativos. A razão, claro, eu conhecia: ali, um brasileiro de 17 anos deu o primeiro passo para a eternidade, marcando contra os donos da casa um dos mais belos gols de sua carreira  --- sem deixar a bola tocar o chão, depois de dar um lençol no zagueiro adversário.

Como o tempo se encarregara de alterar a ordem de minhas grandes paixões, sacrifiquei a visita ao Rasunda em favor de Ingmar Bergman, e percorri a trajetória do cineasta por teatros e outros lugares em que fez valer o seu gênio como artista.

Hoje, se não pela razão por que decido escrever sobre o mais famoso aniversariante do dia, aquele quase menino que fez tremer um estádio sueco em que o Brasil sagrar-se-ia campeão mundial pela primeira vez, vieram à mente algumas práticas no mínimo curiosas com relação a sua vida e a sua obra. Entre essas, para citar um só exemplo, botafoguense de quatro costados e à época movido por um amor cego pelo time de General Severiano (para mim  será sempre este o endereço do Glorioso), apostava com amigos quem mais tocava a esfera de couro no clássico Botafogo x Santos, se Gérson, se Pelé. Por incrível que possa parecer, o "canhotinha de ouro" terminava o jogo quase sempre com alguma vantagem. Os lances geniais, contudo e sem levantar qualquer dúvida, eram os do camisa 10 do Santos, que de fato ia se tornando uma das unanimidades nacionais. Aprendi a amá-lo, como se a sua genialidade fosse capaz de inibir o fanatismo do jovem botafoguense, provocando nele, quem sabe pela primeira vez na vida, o senso de justiça com cujo metro passou a medir as coisas do mundo  --- por cuja demonstração de vaidade peço desculpas aos leitores. Era o maior jogador de futebol de todos os tempos.

Certa vez, de férias em São Paulo, cacei jeito de me abalar até o litoral santista com um só propósito, embora soubesse que estaria percorrendo algumas das mais famosas praias do país, na linha de Ilhabela, Bertioga, Praia Grande e São Vicente. Eu queria mesmo era conhecer o pequeno estádio da Vila Belmiro e deparar, por certo estarrecido, como de fato fiquei, diante do acervo incomensurável de troféus conquistados pelo SFC.

Com o tempo, não posso negar, se o jogador cada vez mais encantava, o homem maculava a minha admiração. Não reconhecer a paternidade de uma filha, mesmo depois do resultado do exame de DNA confirmar, levando-a em parte por isso a contrair um câncer e morrer em plena juventude, na contramão do que fizera um outro Rei brasileiro, é o pior exemplo. Falemos de futebol, apenas.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, faz nesta sexta-feira 23, 80 anos. A data repercutirá, é certeza incontrastável, pelos quatro cantos do mundo, curvados à imagem inconfundível de um Gênio (assim, com maiúscula), maior que o Brasil, que o Continente, que o Mundo. Muito maior que a própria decepção, como substantivo e como sentimento.

Parabéns, amado Rei!

 

 

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Isto ou aquilo

Poucas horas depois da bazófia de Jair Bolsonaro, segundo a qual não existe corrupção no seu governo, vem à tona mais uma prova em contrário: o colega do baixo clero com quem revelou ter "uma quase união estável" e a quem confiou a vice-liderança do executivo no Senado, foi pego em operação da Polícia Federal com expressiva quantia em dinheiro "entre as nádegas", conforme relatório divulgado ontem pela polícia. O montante do dinheiro roubado dos recursos destinados ao combate à pandemia da Covid-19, no entanto, supera os 20 milhões de reais.

O fato, todavia, para além de simplesmente desmoralizar o presidente canastrão, mais uma vez, indiretamente pode beneficiá-lo. Explico-me: como são tantos os casos de corrupção ocorridos em torno de sua figura, o escândalo da vez tende a encobrir por uns dias aqueles que ocorrem na intimidade de sua casa, a exemplo das "rachadinhas" já por demais comprovadas envolvendo o primogênito Flávio e o depósito até hoje não esclarecido de R$ 89 mil na conta da primeira-dama por Fabrício Queiroz.

De mal a pior, no entanto, a popularidade do presidente permanece estável, como a dar o esdrúxulo atestado de  que o Brasil tem mesmo o governo que merece, que me perdoem aqueles que nunca cederam aos apelos do mito e que não se enquadram nas categorias emblematicamente arroladas por Ruy Castro, em coluna desta sexta-feira 16, na Folha: Pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, grileiros e incendiários infiltrados na Amazônia, no Pantanal, na mata atlântica, nos manguezais, restingas, dunas, terras indígenas e quaisquer santuários que possam ser destruídos e enriquecer amigos. Profissionais da bancada do boi, da bala e da Bíblia. Assessores de gabinete dispostos a ceder 80% de seus salários pagos com dinheiro público, lavá-los e depositá-los nas contas de seus familiares. Formadores de quadrilha, praticantes de peculato e operadores de esquemas, investigados, denunciados ou réus em ações judiciais. Juízes complacentes e advogados corruptos. Lobistas diversos, íntimos dos 01, 02 e 03. Militares ideológicos, fãs confessos de torturadores, ou apenas oportunistas, a fim de cargos no governo. PMs expulsos, delegados venais, chefes de milícias e matadores de aluguel, presos ou foragidos. Fabricantes de armas e 'colecionadores' das ditas. Pastores evangélicos, animadores de televisão, cantores sertanejos e promotores de rodeio, todos felizes beneficiários das novas mamatas. Negacionistas, homofóbicos, terraplanistas, camelôs de cloroquina, disparadores de fake news, linchadores virtuais, incineradores de livros, fascistas assumidos e odiadores por atacado etc., etc., etc.

Se você não está nessa relação, e, mesmo assim, continua festejando o presidente falastrão que está desconstruindo a democracia e o país... Então, com todas as letras, você é apenas um sujeito sem pudor.

    

 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O Neto do Meu Avô

De Asolo, cidade do Vêneto da Itália, telefona-me o artista plástico Bruno Pedrosa. Com a humildade de sempre, uma das marcas de caráter da pessoa humana extraordinária que é, Bruno pede-me para ler os originais do livro "O Neto do Meu Avô", com que o artista cearense, objeto de admiração e reconhecimento mundo afora, faz sua estreia como memorialista.

Diz-me, com um misto de pura simplicidade e inconfundível elegância, traços indissociáveis de sua personalidade marcante, tratar-se de reminiscências sem grande pretensão, apenas registros do que o passar do tempo e a distância não foram capazes de apagar de sua mente e do seu coração: suas origens, sua gente, a natureza que lhe serviu de inspiração para muito do que faria como pintor e, claro, sua trajetória como homem e como artista, verdadeiro senhor do mundo, por diferentes países, na maioria dos quais se encontram espalhadas obras de sua lavra.

Como é próprio do seu espírito brincalhão, pude concluir depois de ler os primeiros capítulos do livro, Bruno pregava-me uma peça. O Neto do Meu Avô é muito mais que mais um livro de memórias, constituindo exemplo de que, tanto quanto o artista de prestígio internacional, é escritor de grande talento, que soube, sem artificialismos e vícios recorrentes em produções do gênero, trabalhar a matéria com que refaz o caminho proustiano que o traz de volta ao tempo perdido.

Impressiona no Bruno Pedrosa memorialista, para além da sinceridade artística que permeia o livro de cabo a rabo, fazendo-o já por isso notável, a veia poética com que descreve o sertão do Cariri, a capacidade para inventar imagens, metáforas desconcertantes, estabelecer comparações originais e tirar de suas recordações profundas, poesia  --- e poesia da melhor qualidade, cuja beleza reverbera na alma do leitor mesmo quando, por instantes, reúne disposição para largar o livro.

Para não falar do estilo, pontuado por uma voz autoral que ecoa a voz do seu povo, de sua terra, principalmente. Ocorre-me lembrar, a esta altura de minha sucinta apreciação do belo livro de Bruno Pedrosa, e tomando de empréstimo o que disse sobre José Lins do Rego, mestre na arte de cantar em prosa o sertão nordestino, Josué Montello: "... Tem-se a impressão, por vezes, de que não é ele que escreve, mas a terra que escreve por ele, com a sua língua, os seus tipos, as suas paisagens, o canto de seus pássaros".

Difícil destacar do livro um excerto com que se deva exemplificar a beleza do texto de Bruno Pedrosa. A pretexto de escrever sobre memórias profundas, fez ele um tipo de narrativa de ficção, se ao leitor for dado o direito de esquecer o eu autoral em favor do eu lírico que transita pelas páginas do livro como uma personagem de Marcel Proust, para me reportar uma vez mais ao inigualável "Em Busca do Tempo Perdido". É que, como está na sua apresentação do livro, para Bruno Pedrosa "as lembranças são estrelas. A memória é uma noite bonita".

Para finalizar, de Bruno Pedrosa se pode dizer, sem lhe fazer favor de qualquer espécie, que, sendo um dos artistas plásticos mais apreciados de sua geração, no Brasil e na Europa, é também escritor desmedido. Cuidando-se de evidenciar, por oportuno, que, no memorialista, pode-se perceber a mão do pintor, que Bruno Pedrosa, largando o pincel, sabe pintar exemplarmente bem com a palavra.

Aguardem o livro, e verão que só há verdade no que digo sobre O Neto do Meu Avô.

 

 

 

 

 

domingo, 27 de setembro de 2020

Gal, 75 Anos

Não vou falar de flores, perdoem-me.

É mais que óbvio não se poder esperar de uma live o rigor estético de um show de palco propriamente dito, leve-se em consideração que é típico do formato uma certa vocação para o improviso e um perfume de informalidade que tornam a apresentação do artista tanto quanto possível mais espontânea e descontraída.

Em se tratando de uma cantora do nível de Gal Costa, que comemorou seus 75 anos e 55 de carreira, ontem, rendendo-se ao formato em voga, como o fizeram estrelas da melhor constelação da MPB, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil e, para surpresa de muitos, o próprio Roberto Carlos, há que se observar, quando menos, um mínimo de atenção para a carpintaria cenográfica, iluminação, uso de adereços e, principalmente, a observação de uma marcação que resultem elegantes e convincentes. Por marcação, diga-se em tempo, define-se, previamente, a movimentação do artista no espaço cênico. Não foi o que se pôde constatar na live da cantora baiana, sem qualquer dúvida uma unanimidade entre os brasileiros.

Nesse aspecto, sobremaneira, é que a coisa não funcionou bem: Gal se deslocava às cegas por salões e corredores desnivelados do que pareceu ser um apartamento antigo, mal conseguindo, aqui e acolá, manter-se de pé.

Não bastasse a insegurança com que transitava ao final de cada música, algo de resto compreensível para uma pessoa de 75 anos, em lugar de spots como solução mais adequada para a iluminação de lugares fechados, um canhão de luz ofuscava a cantora e mesmo os telespectadores, confusão visual agravada pelo uso desnecessário e extremamente infeliz do "esfumaçado" do gelo seco, que nada acrescentou ao show, mesmo sabendo-se que a intenção era emprestar à live uma atmosfera intimista, por sinal nem sempre condizente com o repertório escolhido  ---  este, não se pode negar, muito bom, em que pese num e noutro caso inadequado para o momento, como o clássico Festa do Interior, durante cuja interpretação se fez ver um certo descompasso entre voz e instrumentos.

Essa a razão por que eram indisfarçáveis os falsetes excessivamente explorados, bem como a aflição dos músicos para acompanhar a voz um tanto desgastada de Gal, em que pese esses, os músicos, afinadíssimos do ponto de vista técnico: Pedro Sá (violão) e Chicão (teclado).

Para não falar do "nervosismo" mais que "cinemanovista" da câmera, recorrentemente perdida na perspectiva do movimento, da angulação e, em dimensão para além de amadora, do simples enquadramento. Um desastre o que se viu sob este aspecto.

Em sua concepção geral, é importante destacar, a live "Gal 75 anos", exibida ontem a partir das 22 horas pela TNT, tinha tudo para ser um momento sublime da MPB nesses dias em que estamos condenados ao retiro obrigatório.

O uso de depoimentos de artistas sobre a homenageada, por exemplo, projetados à Cinema Paradiso na fachada e empena de edifícios próximos, poderia ter resultado muito bom, não fossem aparentemente precários os projetores para o que se pretendeu fazer.

Visto assim, contudo, para os fãs da cantora Maria da Graça Pena Burgos, ou simplesmente Gal, entre os quais este colunista assume-se incondicionalmente, foi bom, foi mesmo emocionante, reencontrar no set, revivendo sucessos como Modinha para Gabriela, Sorte e outros hits do seu inatacável repertório, essa que é uma das maiores cantoras e intérpretes brasileiras de todos os tempos.

 

Gal, 75 Anos

Sábado, 26 de setembro de 2020

Show ao vivo e independente

Direção Geral: Marcus Preto

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Mentira, naturalidade e subserviência

Ainda repercute mundo afora o vexame que foi o discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU, no início da semana. Para críticos internacionais, o presidente brasileiro perdeu uma rara oportunidade de se retratar com um mínimo de dignidade pelo desastre que tem sido o seu governo em questões da pauta universal, a ambiental sobretudo.

Ao responsabilizar índios e caboclos pelo desmatamento e queimadas na Amazônia e no Mato Grosso, Bolsonaro fez pilhéria com um problema que afeta não apenas o Brasil, ressaltam os principais jornais de diferentes países, mas o mundo inteiro.

A patranha do presidente, no entanto, não se restringiu à questão ambiental. Num exercício de negacionismo por que tem pautado a dramática situação do país no campo da saúde, com o número de vítimas da Covid-19 aproximando-se dos 150 mil brasileiros e brasileiras mortos, foi além. De forma indisfarçavelmente leviana, Bolsonaro tripudiou da situação, e, mais uma vez, criticou protocolos da ONU e isentou-se de responsabilidade pelo que vem ocorrendo no Brasil desde o mês de março.

Como um marido farsante, que reafirma amar a mulher com quem casou exclusivamente por dinheiro, na feliz comparação do escritor Sérgio Rodrigues, discorrendo sobre a mentira, o presidente exaltou o seu amor ao país e se dirigiu a estadistas do mundo inteiro como se falasse aos seus asseclas, apaniguados ou fanáticos, que, por ingenuidade, oportunismo ou desfaçatez, continuam a seguir incondicionalmente seus passos rumo ao abismo. Abismo esse  --- desgraçado destino! --- a que somos todos de alguma forma empurrados.

A tornar ainda mais indigna a realidade do Brasil hoje, onde grassam o cinismo e a irresponsabilidade, é vergonhoso que jornais de prestígio como a Folha de S. Paulo e O Globo, em suas edições dessa quarta-feira 23, tenham estampado em suas páginas manchetes que se acumpliciaram com o cabotinismo do presidente Jari Bolsonaro, considerando o desconserto do seu pronunciamento apenas "polêmico". Como bem afirmou Rodrigues, citado acima, "inverdade não é polêmica" e "mentiras não deixam de ser mentiras quando alguém acredita nelas  --- tornam-se apenas mais perigosas."

De mal a pior, indiferente e omisso, o Brasil vai se habituando a conviver com a canalhice, o obscurantismo e a mais desavergonhada forma de se fazer política, aceitando-os com naturalidade e subserviência. Até quando?

 

 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O abismo escuro

"O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida para entrar na História".

Muitíssimo conhecida, a sentença desfecha a carta-testamento de Getúlio Dornelles Vargas, em 1954, pouco antes de desferir contra o peito o tiro que o levaria à morte. Bem escrito, o texto reedita, mutatis mutandis, a mesma concepção do suicídio por que se orientaram poetas importantes da segunda geração romântica, a geração do Mal do Século, em diferentes países. Entre esses, a fuga da realidade se dava por três caminhos: a idealização do mundo, a toxicomania (aqui incluído o alcoolismo) ou o suicídio, aceito como um ato de coragem e desapego.

Por iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina, como forma de estimular a prevenção ao suicídio, o Brasil dedica o mês inteiro a discutir o tema. Em outros países, sabe-se, o debate tem como referência a data em que escrevo esta coluna: 10 de setembro. O descompasso entre o que faz o Brasil e o que fazem outros países, diga-se em tempo, vem sendo objeto de discussão entre os especialistas: estender a duração do debate em torno do suicídio pode constituir um desserviço à causa, contribuindo para o disparo do gatilho que fará crescer o já expressivo número de casos verificados a cada ano no Brasil? A questão, como se vê, é complexa, e exige um aprofundamento do debate.

Em temporada de estudos na Suiça, há muitos anos, sob o peso doloroso de um caso na família, dediquei-me a ler sobre o suicídio, a procurar entender suas possíveis causas, acompanhando a forma como se lidava com o problema num país de primeiro mundo como aquele em que estava, rico e exemplarmente atento aos problemas de saúde da população. Curiosamente, era por volta da segunda metade dos anos noventa, a Suiça apresentava números alarmantes de casos, não sendo permitido à imprensa divulgar sua ocorrência na maior parte dos cantões, como são chamados, desde 1948, os membros federativos no país. Cria-se, à época, que sua simples divulgação poderia resultar num incentivo a novos casos. Com a palavra, os especialistas.

Na contramão do que faziam os suíços, há aqueles que defendem a sua divulgação e o objetivo enfrentamento do problema. Advertindo-nos de que é delicada a diferença entre informar e aterrorizar, Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, professa a necessidade de que se discuta o suicídio com cautela, sem jamais lhe negar espaço para o debate, a busca de alternativas de ação e, sobretudo, determinação para identificá-lo como um problema de saúde pública. Ela defende, ainda, a criação de uma central exclusiva para o suicídio, uma vez que o CVV, Centro de Valorização da Vida, abrange outras formas de sofrimento além da depressão, uma das causas mais recorrentes do suicídio.

De ato heroico, fruto do estoicismo que levaria o homem a agir com absoluta isenção, na linha do que afirma a carta de Getúlio Vargas e tantos outros casos registrados entre pessoas famosas (ocorre-me lembrar aqui o que fizeram o escritor Stefan Zweig e sua mulher, em 1942), ao escapismo por que se deixaram levar os poetas ultrarromânticos, incapazes de aceitar a realidade, o suicídio é, antes de qualquer outra coisa, um desafio inadiável para todos, autoridades de saúde, estudiosos e a família. Detectar sinais, que nem sempre existem para olhos menos atentos, é um caminho. O diagnóstico nem sempre é possível, dizem os especialistas, e difundir a falsa ideia de que a maioria dos casos poderia ser evitada, só aumenta o sofrimento das pessoas.

Num momento particularmente difícil por que passa o Brasil, com desemprego crescente, assustador empobrecimento da maior parte da população, desajustes morais que resultam em atos de racismo, homofobia e outros tipos de intolerância, são recorrentes os conflitos e distúrbios psiquiátricos que apontam para o abismo escuro como a única saída. É hora de lançar luz sobre o problema.

 

 

 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Já vai tarde

Arquiteto de práticas inconfessáveis na Lava Jato, que vão do famigerado uso de PowerPoint no intento de desconstruir a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante investigações mais tarde desmentidas em diferentes instâncias, a exemplo do que se viu ontem no TRF-1, em Brasília, a benefícios ilegais junto a empresas não identificadas para as quais proferiu palestras que lhe renderam valores incompatíveis com a natureza do serviço prestado, o procurador Deltan Dallagnol anunciou, nessa terça-feira, estar deixando o grupo de investigadores da operação.

Em 2019, para se ter uma ideia dos malfeitos do senhor Dallagnol, o procurador chegou a anunciar a criação de uma fundação privada, a ser gerenciada por ele e demais procuradores da Lava Jato, cujos recursos, oriundos de acordo firmado junto à Petrobrás, iam para além dos R$ 2,5 bilhões. Tudo, é bom lembrar, pensado às escuras, sem qualquer discussão que envolvesse quem quer que fosse se não os próprios idealizadores da tal fundação. O acordo, como se sabe, foi anulado pelo STF, tão imorais eram as motivações com que Dallagnol e sua equipe procuraram justificá-lo.

O pior em torno da atuação de Deltan Dallagnol nas investigações da Lava Jato, contudo, foi revelado em junho de 2019. Como se poderia ver com a publicação de reportagens do site The Intercept Brasil, o então chefe dos procuradores da força-tarefa, à revelia do que estabelece a lei, vinha mantendo, durante as investigações, conversas com o juiz Sergio Moro, numa prática vergonhosa de ajustes, subtrações e acréscimos de elementos que tinham por objetivo destruir o Partido dos Trabalhadores e sua maior estrela, o ex-presidente Lula, afastando-o, pelos meios ilícitos, das eleições de 2018. O resultado disso, como se sabe, seria decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro, que pouco depois indicaria Sergio Moro para o Ministério da Justiça.

As publicações do The Intercept Brasil ainda trariam a público outras práticas inconfessáveis do então procurador: em 2016, após o ministro Dias Toffoli, do STF, ser visto pelos procuradores como entrave para os objetivos perseguidos pela Lava Jato, Dallagnol ainda determinou que o investigassem sigilosamente. O caso acabaria vazando e os procuradores expostos à execração pelos ministros do Supremo.

Sua saída da força-tarefa sediada em Curitiba, somada aos desgastes do ex-juiz Sergio Moro, cujas artimanhas como ministro da Justiça tinham por objetivo viabilizar sua indicação para o STF, mas acabariam fracassando, marca com indesejado simbolismo o fim do que se considerou por muito tempo uma panaceia contra a tragédia moral que toma conta do país. Considerando-se, todavia, o que quase sempre esteve por trás de sua prestigiada chefia da Lava Jato, o senhor Daltan Dallagnol vai tarde, muito tarde.

P.S. A decisão do TRF-1 em favor do ex-presidente Lula, nessa terça-feira, na sequência de outros desmentidos de acusações contra ele assacadas, contribui para evidenciar que a força-tarefa de Curitiba o tinha como a cereja do bolo. Esse, diga-se em tempo, é o quinto processo contra Lula arquivado fora da chefia de Deltan Dallagnol.  

 

 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A atualidade de Graciliano Ramos

Na edição de quinta-feira 27, a Folha de S. Paulo publicou um belo texto do escritor Sérgio Rodrigues intitulado o ressentimento será sua ruína. Nele, o autor de O Drible e Viva a Língua Portuguesa, traz a lume uma oportuna reflexão sobre a atualidade do romance São Bernardo, do alagoano Graciliano Ramos, tomando por base o Brasil contemporâneo, em que pontuam o que algo em torno de trinta por cento dos brasileiros não enxergam ou fingem não enxergar, por inocência, conveniência ou falta de vergonha: o país está sendo governado pelo que existe de pior em termos morais, não bastasse o que há de chucro por trás das práticas gerenciais que levam o país, e aí vem o que o próprio título do texto deixa explícito, à mais absoluta ruína.

Como é vocação deste escriba enveredar, sempre que possível, pelo campo estético (Da arte e outras questões é como se define este espaço no jornal), concluí a leitura do texto de Rodrigues fazendo, ainda na cama, onde leio os jornais a cada manhã, ponderações sobre o livro antológico do autor de Vidas Secas --- e da força que possui a literatura enquanto obra de arte como um todo.

Lançado em 1934 e adaptado de forma extremamente bem sucedida para o cinema por Leon Hirszman em 1971, São Bernardo é obra polifônica, marcada pelo ritmo psicológico, em que pese ser estruturado a partir do que se convencionou chamar de tempo cronológico, isto é, aquele tempo que obedece à lógica do relógio, o que se pode observar nas recorrentes referências ao passar dos dias e das horas. Este aspecto, pois, dá ao romance uma certa dubiedade: é romance, a um só tempo, de extração temporal e psicológica, registrando os vícios de um Brasil agrário e atrasado, em que os interesses é que ditam as regras do jogo, bem na linha do que ainda se vê, apesar da maquiagem que dá ao país uma aparência de modernidade: Paulo Honório, personagem central do livro, é o típico brasileiro que enriquece por força de seu oportunismo e práticas de violência que lembram à perfeição os milicianos que governam o país. Mas, como sugeri antes, a obra de Graciliano dá um salto do regional e datado para o universal, do social para o psicológico, explorando os conflitos mais profundos do homem diante do dilema hamletiano do ser ou não ser. Paulo Honório escreve a sua própria história, real e ficcional, livro dentro do livro, através de cujo artifício se pode perceber o confronto do bem contra o mal que é mesmo a espinha dorsal do romance. Casado com Madalena, mulher sensível e cultivada, Paulo Honório se vê diante de uma realidade pontuada pela contradição, a do capitalista sem pudor que é, que não mede os meios para conseguir a ascensão social num país em que o ter espezinha o ser, e a da esposa, inconformada com os mecanismos de exploração por que o marido orienta o seu dia a dia na fazenda São Bernardo, adquirida com o dinheiro espúrio da agiotagem.

Mas o romance de Graciliano Ramos é muito mais que isso. A relação de Paulo Honório com Madalena apodrece, ainda, por outras razões: seres assim tão diferentes, marido e mulher vivem em dois mundos, mesmo fincados fisicamente diante de uma só realidade. Não tarda, pois, a surgir o ciúme doentio que leva Paulo Honório a ver na mulher uma ameaça. Inicialmente a acusa de "comunista", para depois escorregar pelo despenhadeiro da desconfiança mórbida rotulando-a de adúltera. De livro emblemático da literatura regionalista dos anos 1930, São Bernardo redimensiona-se, ganha em profundidade psiquiátrica, revelando a face dostoievskiana de Graciliano Ramos, bem na perspectiva do que fará, de forma mais assumida, em outro de seus grandes romances: Angústia (1936).

A grandiosidade de São Bernardo, diga-se em tempo, ainda permite outra leitura: nele, está a metáfora do choque entre dois modelos de sociedade: a do capitalismo contra o socialismo.

Deixemos isso de lado, todavia, antes que me tachem de comunista. Por enquanto, apenas recomendemos a leitura deste grande livro.

P.S. Preso como comunista, em 1936, embora sua filiação ao Partido tenha se dado anos depois, Graciliano Ramos morreu em 1953, pobre e ainda pouco reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.  

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

80 anos do assassinato de Leon Trotski

Há exatos 80 anos, era assassinado no México Lev Davidovitch Bronstein, ou simplesmente Leon Trotski, um dos nomes de maior destaque da Revolução Russa. Líder e teórico político de reconhecida competência, Trotski é autor de importantes textos, que vão do memorialismo, a exemplo de sua excelente autobiografia, Minha Vida (1930), à História da Revolução Russa, produzida entre 1930 e 1932.

Natural da Ucrânia, mais precisamente da cidade de Yvanovka, Leon Trotski nasceu a 7 de novembro de 1879. Já muito jovem ingressa na atividade política, funda a União dos Operários do Sul da Rússia, organização de esquerda em que se notabiliza por seu discurso desconcertante e uma refinada compreensão das ações coletivas por que orientaria mais tarde a primeira tentativa de revolução socialista, em 1905, e, posteriormente, as revoluções de fevereiro e outubro de 1917, ladeado por Vladimir Ulianov, o Lênin (1870-1924), e  J. Stálin (1878-1953).

Ideólogo e responsável pela elaboração da Teoria da Revolução Permanente, em que professa a necessidade de se transformar a revolução liberal-burguesa numa ação globalizante, embora nascida no contexto de uma sociedade agrária e atrasada como a Rússia de início do século 20, numa leitura teórica que se afasta sob alguns aspectos do pensamento de Marx e Engels, para quem a revolução só seria possível na perspectiva de uma sociedade industrial, como a da Alemanha, da Inglaterra e dos Estados Unidos, Trotski passa a ser considerado um traidor do marxismo, perseguido por Stalin e alvo de recorrentes atentados que culminariam com o seu assassinato em 21 de agosto de 1940.

É dessa fase pós-revolucionária, notadamente a partir de 1930, que Trotski escreve muitos dos seus textos definitivos. Em Minha vida, por exemplo, sua notável autobiografia, deparamos com um texto de qualidade literária que vai muito além do simples memorialismo, constituindo um documento profundo e extremamente bem escrito. Na mesma linha, preservados os critérios historiográficos, lega-nos uma das mais belas páginas acerca da Revolução Russa. Versátil na construção do pensamento crítico, escreveria, ainda, sobre cultura e arte, com destaque para o inigualável Literatura e Revolução, este no início dos anos 20.

Decorridos 80 anos de seu assassinato, revisitar a história de Leon Trotski, bem como dedicar-se a ler algumas de suas obras, com destaque para os livros aqui mencionados, é mais que oportuno, num mundo em que se fazem perceber, no Brasil e no mundo, como cancros de uma sociedade gravemente "adoecida", as monstruosas contradições do modelo capitalista. Desses, são mais que recomendadas as edições da Editora Sundermann, de 2017, quando das comemorações do primeiro centenário da Revolução Russa.

 

Inês é morta

Sabe aquela delação do Palocci liberada para divulgação, por Sérgio Mouro, a seis dias da eleição, com a finalidade de ajudar Bolsonaro a ganhar a eleição, tornar-se ministro da Justiça e ser indicado para o STF... Que a Folha de S. Paulo estampou com destaque na primeira página do jornal... Que a revista Veja publicou como matéria de capa... Que a Globo explorou por um quarto de hora no JN... Que os grã-finos do Meireles foram à Praça Portugal festejar... Que centenas de milhares de babacas da classe média alardearam como a prova definitiva de que o ex-presidente Lula era ladrão? Pois é... Era tudo coisa retirada da internet, fake, agora desmentida pelas investigações e arquivada como acusações sem fundamento feitas ao sabor de conchavos inconfessáveis. Brasilllllllll!  

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Rosa do Povo, o eu e o outro

Um flor nasceu na rua! (...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Uma das questões mais caras à teoria da literatura é a complicada relação entre o sujeito e o objeto. Nesse sentido, se na prosa ficção é mais fácil compreender que existe um abismo a separar o escritor de suas personagens, na poesia essa distinção torna-se mais desafiadora. Exemplifico: quando lemos Dom Casmurro, é-nos fácil separar Machado de Assis de Bento Santiago, muito embora tenham sido numerosas as análises que se dispuseram, criminosamente, a confundi-los, como se o ciúme que conduz o protagonista do romance à ruína familiar trouxesse para o campo da literatura as contradições e os conflitos pessoais do autor. Na poesia, por outra, a distinção entre o eu-lírico (a personalidade criada) e o eu-autoral (a personalidade criadora) é sempre mais complicada, havendo recorrente tendência, mesmo entre os especialistas, de procurar explorar a índole do ser criado a partir do que se sabe sobre o ser criador.

Aristóteles (385-323) já nos advertia, na Poética, de que a "poesia é mais filosófica e mais verdadeira do que a História, pois a poesia exprime o universal, e a História o particular". Isso quer dizer que a História se prende aos fatos ocorridos, enquanto a poesia se estende ao campo do possível. Vou além: estendendo-se ao campo do possível, a poesia amplia o universo do empírico e faz com que todos os fatos cheguem até nós através do sentimento lírico.

Faço essa sucinta introdução a fim de tecer considerações sobre o livro A Rosa do Povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, cujo aniversário de 75 anos comemora-se em 2020. Mais robusto dos livros do poeta de Itabira-MG, do ponto de vista volumétrico (55 poemas ao todo), este é também o mais robusto volume do ponto de vista estético, formando um conjunto poético de qualidades formais e conteudísticas poucas vezes alcançadas na literatura brasileira.

É nesse sentido, pois, que gostaria de ressaltar o que sobressai no livro como linha de força de maior importância artística: a passagem do particular para o universal, ampliando o real na extensão do verossímil. Contraditoriamente, por curioso, a voz ampliada do poeta, do eu-lírico, para ser mais preciso, através da qual se expressam todos os homens, parte da realidade mais individual, a solidão do poeta no ato de produzir poesia.

Mas quem é esse sujeito no qual o objeto faz explodir o sentimento poético? O poeta, no caso Carlos Drummond de Andrade? O ser criado, esse "sujeito" ficcionalizado pelo qual o autor expressa sua emoção? Ou o leitor, que na experiência da leitura ouve essa voz como a sua voz?

A resposta possível está na aceitação de que sujeito e objeto nunca são coisas estanques, e de que o encontro dos dois se dá pela linguagem.

O poema que exprime a realidade do objeto, os acontecimentos dramáticos da Segunda Guerra Mundial, em Visão 1944, por exemplo, um dos mais importantes do livro, expressa 1. a angústia do poeta mineiro (cuja biografia constitui testemunho em favor do homem solidário e humanista que foi), 2. a do eu artisticamente inventado, cuja percepção da realidade se amplia pela força da poesia enquanto objeto artístico, que se desprende do fato real dando-lhe maior dimensão, 3. e o leitor, que na experiência da recepção acrescenta, suprime ou modifica o fato real, a um só tempo individualizando-o e tornando-o universal, isto é, comum a outros homens.

Pode-se dizer, assim, que o poema atravessa o mundo e é, ao mesmo tempo, atravessado por ele. O estudioso alemão Emil Steiger dá para essa fusão um nome certeiro: "Um-no-outro", como a nos dizer que é equivocada a tentativa de separar o que não pode (ou deve?) ser separado, o individual do coletivo, o particular do universal. Na linguística, por exemplo, identifica-se na poesia a existência de uma função a que se deu o nome de "outrativa", a capacidade de colocar-se no lugar do outro.

Carlos Drummond de Andrade, com A Rosa do Povo, dá-nos o mais perfeito exemplo dessa passagem do eu subjetivo para o eu universal, como a fazer um chamamento em favor de um mundo em que o sentimento de amor ao próximo se consolide pela prática da ação social, do enfrentamento de todas as formas de dominação e de todos os mecanismos que impeçam o homem de ser sujeito de sua história.

Como se pode ver, na perspectiva do Brasil hoje --- e do mundo! ---, publicado há 75 anos, A Rosa do Povo é leitura mais que recomendável em face dos dramáticos inimigos que temos para enfrentar. Que o diga, com todas as letras, o próprio poeta ao homenagear, no livro, Chalie Chaplin: "Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança."

  

     

 

 

 

 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Livros da Ilha Deserta

Vira e mexe, leio nos jornais sobre quais livros, filmes e discos o autor do texto levaria para uma ilha. É provável que a ideia de escrever sobre o tema, e que quase sempre nasce de uma curiosidade formalizada a partir de pergunta dos leitores, terá alguma relação com a pandemia do Covid-19. Explico-me: a doença, condicionando-nos ao isolamento como a possibilidade mais racional para evitar a contaminação e os riscos concretos que a acompanham, desencadeou sobre as pessoas percepções desconfortáveis de que, muitas vezes, a solidão é algo inevitável e de que o melhor é buscar alternativas para o caso de virem a se tornar uma realidade em nossas vidas.

Pois bem. Isso me trouxe ao coração (é esta a etimologia do verbo "recordar") uma experiência da juventude que recebi com ternura e delicada saudade: em meu tempo de rapazinho, quando contava pelos 14 anos, as mocinhas costumavam pedir que "respondêssemos" aos seus "disparates", que outra coisa não eram que um tipo de caderno, organizado como um longo questionário, através dos quais éramos conduzidos a revelar nossa intimidade. As perguntas, claro, iam das mais bizarras tolices, a exemplo de expor as nossas preferências sobre a cor da pele e do cabelo das mulheres desejadas (rigorosamente isso, desejadas!) às mais profundas, como saber a nossa opinião acerca da existência ou não de Deus. Uma coisa, invariavelmente, um "disparate" que se prezasse nos impunha como questão incontornável: "Que livros você levaria para uma ilha deserta? Escusado dizer: naquela época, diferentemente de hoje, os jovens líamos muito.

Como uma coisa puxa outra, fiquei a pensar, não nos livros que levaria àquele tempo, em cuja relação, por certo, estaria Saint-Exupéry. Digo melhor: estaria "O pequeno príncipe", que todos éramos muito próximos da Raposa, do Astrônomo, do Vaidoso, do Guarda-Chaves e seus companheiros de história.

Mas o leitor deve estar curioso por saber: que livros levaria eu para a minha ilha da solidão? Vá lá, que nunca fui de tergiversar diante das grandes questões. Não sem antes, por óbvio, em se tratando de quem lida com a literatura com alguma intimidade, observar que sou um volúvel ledor de livros: mudo de opinião em face desses seres amados ao sabor de minhas subjetivações: hoje, triste e macambúzio; amanhã, alegre e livre como um pássaro na invernada. É natural, assim, que as minhas escolhas transitem do paraíso de Milton ao inferno de Dante.

E o leitor, já se impacientando, percebo, haverá de indagar: ô chatonildo, que livros você levará para a sua ilha deserta (de onde talvez prefira que você jamais possa voltar!)? Calma, meu queridíssimo leitor, que é para você que escrevi esta crônica.

Escolhi, e já os separo do conjunto da estante, os dez seguintes livros, começando pela literatura propriamente dita: 1. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; 2. A divina comédia, de Dante Alighieri; 3. Madame Bovary, de Gustave Flaubert; 4. O idiota, de Fiódor Dostoiévski; 5. Dom Casmurro, de Machado de Assis; 6. A montanha mágica, de Thomas Mann; 7. O texto da peça Hamlet, de William Shakespeare; 8. Guerra e paz, de Lev Tolstoi; 9. Os miseráveis, de Victor Hugo ; 10. A Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade.

Tenho dito, antes que mude de opinião!    

 

 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Que missão essa, a de embelezar o mundo

Desde o começo do problema da Covid-19, já se contam quatro meses de isolamento. No meu caso, coincidiu de estar no sítio, em Guaramiranga, para um fim de semana que pensei fosse apenas mais um fim de semana na serra. Ledo engano. Veio o anúncio da pandemia e a tempestade de matérias jornalísticas, entrevistas, mesas-redondas com infectologistas etc., a nos advertir de que ficássemos em casa. Em princípio, como presumo ter ocorrido a todo mundo, achei que fosse um período curto, duas semanas, três, e tudo haveria de voltar ao normal.

Com o passar dos dias, e a cada nova recomendação dos profissionais da saúde (o número de infectados e de mortos crescendo assustadoramente), fui caindo na real: --- O problema era muito mais grave do que imaginávamos. Eu, no entanto, tinha razões para agradecer a Deus, pois, embora sozinho, estava em condições privilegiadas, num lugar aprazível e em meio aos livros com que divido minha solidão e aos filmes que adoro, enquanto tanta gente sofria coisas impensáveis pelo país afora. Ademais, podia aproveitar o tempo para produzir os textos que escrevo como uma atividade de rotina e, quem sabe, ousar: amigo das narrativas curtas, contos e crônicas à frente, poderia, na esteira das provocações de amigos, escrever o meu primeiro romance.

Mãos à obra, foi o que pensei. E vieram as primeiras páginas, os primeiros capítulos, os primeiros desafios em relação à escrita de um texto que, como todas as outras formas do gênero narrativo, tem as suas regras, sua estrutura, o seu sistema próprio, a exigir cuidados para que, da sua produção, não venha a nascer um monstro.

Escrever prosa de ficção é uma experiência fascinante, como, de resto, para os poetas, é fascinante pôr "no papel", em forma de poema, a beleza que dorme no íntimo de cada palavra, fazer desabrochar de sua força latente o brilho e o encanto que ganham no convívio com as outras palavras do poema.

Eis o sortilégio que absorve o talento, a sensibilidade e a dedicação de homens e mulheres através dos tempos, escritores e escritoras, de cuja atividade diária resulta um todo imensurável de obras que constituem a história da literatura de um povo, e que torna imortal o seu legado para o sem-fim dos tempos.

Ao sentar para escrever a minha coluna semanal do jornal A Praça, no cumprimento de uma ação que se materializa a cada edição do semanário ao longo desses mais de quinze anos, tomei a decisão de fazer essa pequena reflexão sobre o milagre sem nome que se processa no mais profundo da alma de todo escritor, movendo-o a tirar do léxico em estado de dicionário, como quem tira leite de pedra, o que explode diante do leitor, seja uma crônica, um conto, um romance ou um poema, em forma definida, pois, aquilo que é a  mais nobre das modalidades artísticas: a literatura.

Tudo isso num país em que se tem tratado escritores, como aos tantos outros artistas, do teatro, da música, do cinema, da dança etc., como inimigos do povo, na contramão do que fazem todos os países, nos mais diferentes continentes, em reconhecimento e gratidão àqueles que dedicam suas vidas a embelezar o mundo.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Minha feliz homenagem a Morricone

A semana começou muito triste para os amantes do cinema. Na terça 7, morreu, num hospital de Roma em que estava internado depois de sofrer uma queda, aos 91 anos, o maestro e compositor italiano Ennio Morricone.

Autor de trilhas que deram suporte a sequências inesquecíveis de clássicos da sétima arte, a exemplo da trilogia do homem sem nome, de Sérgio Leone (1964-1966), Morricone deixa um legado incomparável em termos cinematográficos: algo em torno de 500 filmes, dos mais variados temas, tiveram suas trilhas assinadas pelo maestro.

Ocorre-me lembrar, com uma saudade ela mesma sem nome, as minhas primeiras experiências de cinéfilo: tinha eu por volta dos 10, 11 anos, pouco mais pouco menos, quando assisti, levado pelas mãos de meu irmão Emídio Neto, a Um punhado de Dólares (1964), o primeiro da trilogia de Leone. Ainda hoje, a uma distância de pelo menos 50 anos, posso recordar com detalhes o que tal experiência significou para mim. Em plano aberto, a câmera de Leone mostra um deserto em que cavalga, solitário, Joe, a personagem interpretada por Clint Estewood, enquanto letras amarelas enormes vão apresentado em perspectiva animada a ficha técnica do filme. A música é absolutamente sedutora, com um arranjo inusitado de assobios e acordes de violão pontuando a imagem do cavaleiro que aos poucos vai crescendo diante dos meus olhos deslumbrados de encanto.

Nascia, sob os efeitos subliminares da arte de Ennio Morricone o meu amor pelo Cinema.

Árida tal qual a paisagem da sequência, para o desconcerto da indústria de Hollywood, que se imaginava sem concorrentes no gênero, surgia o faroeste espaguete.

Assentado em roteiros de uma simplicidade notável, e uma forma de construir narrativas que impressionava pelo requinte estético, para o que seria decisiva a composição sonora quase inserindo-se nos elementos visuais do quadro.

Nos anos seguintes, viriam Por uns Dólares a Mais (1965), Três Homens em Conflito (1966) e, momento áureo do western em todos os tempos, Era uma Vez no Oeste (1968). Deste último, agora como professor de estética do cinema, eu viria a examinar à exaustão, ano após ano, a sequência de abertura, uma verdadeira lição de como fazer cinema. Em tudo, claro, o talento de Ennio Morricone e  os arranjos inusitados e desconcertantemente belos de gaitas, harpas, oboés e ocarinas. Como poucas vezes antes, o encontro de imagem e som se fazia perceber de forma irrecusável, mesmo para os amantes do equivocadamente dito cinema mudo.

Se são igualmente inesquecíveis as trilhas assinadas, por exemplo, por Nino Rota para o melhor Federico Fellini ou de Bernard Hermann para o mais típico Alfred Hitchcock, ouso afirmar, com assumida dose de subjetivação, que nada é capaz de envolver o espectador quanto a paleta de Ennio Morricone. Sem falar que nenhum deles terá sabido tirar do silêncio a música John-cagiana que só os ouvidos refinados do maestro italiano puderam perceber. E nos fazer, com ele, percebê-la em toda a sua prodigalidade. Um gênio a operar milagres.

Afeito a rever os grandes filmes, por sorte trouxe comigo para o refúgio da quarentena, no alto da solidão na serra, algumas pérolas do cinema cujas trilhas sonoras foram compostas por Ennio Morricone: A Batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo; Cidade Violenta (1970); Era uma Vez na América (1984), de Sérgio Leone. Para não falar, os que me conhecem verão nisso a revelação de uma obviedade, Cinema Paradiso (1989), de Giuseppe Tornatore.

A minha forma feliz de homenagear a beleza da música de Ennio Morricone.

  

 

 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A educação é um ato político

Eis que chegamos ao quarto ministro da Educação em menos de um ano e meio do governo Bolsonaro. Na Cultura, já são cinco os nomes daqueles que passaram pela Pasta. Até hoje, no entanto, nenhuma projeto. Essa realidade evidencia o descaso do atual governo em tudo que diz respeito à produção cultural e ao dia a dia da Educação. Esta, ao lado da Saúde, cujo ministério ainda tem a sua frente um militar como substituto do terceiro titular, em meio a uma pandemia que já matou quase setenta mil brasileiros em pouco mais de três meses, é, em qualquer governo minimamente comprometido com os interesses mais elevados de um país, uma das duas mais importantes áreas para as quais se deve dedicar a maior atenção.

Em princípio, preconizava-se a necessidade de uma escola sem partido, ignorando-se o fato de que a educação é um ato de natureza eminentemente intelectual --- e, sendo um ato de natureza intelectual, fazer educação é portanto um ato de natureza política.

É falsa a concepção de que a educação seja um espaço estranho aos fenômenos da sociedade como um todo, alheio à forma como o trabalho está organizado nessa sociedade e à forma como se vive, nomeadamente no contexto de um modelo econômico marcado por desumanas contradições.

A educação institucional sempre foi política, e, o que pior, fez historicamente a pior política: aquela em que se reproduzem os interesses das classes dominantes e a ordem social vigente em detrimento dos menos favorecidos e das convencionalmente chamadas minorias.

A escola brasileira, por exemplo, teve os seus alarmantes índices de reprovação e desistência historicamente compostos de alunos provenientes dos extratos sociais mais carentes, e de negros, aqueles a quem se deve tanto em projetos que sob algum aspecto venham a diminuir a profundidade do fosso que separa ricos e pobres.

Diante de tudo isso, ressalte-se o fato de que, entre 2003 e o golpe de 2016, que derrubou por motivações inconfessáveis a presidente Dilma Rousseff, pôde-se ver no país, pela primeira vez em toda a sua histórica, um projeto educacional voltado para os filhos de famílias mais pobres, implementando-se no dia a dia da prática escolar o viés político de um espaço político por sua própria natureza.

Tudo isso, por óbvio, contrariou frontalmente a elite brasileira. Incomodava de modo indisfarçável aos ricos do país, que pobres ingressassem na universidade, ela mesma uma da mais prestigiadas instâncias de legitimação dos muros que separam os que mandam dos que de devem obedecer, numa relação de forças em que se hipervaloriza o trabalho intelectual em detrimento do trabalho operacional.

É por demais preocupante, assim, que se queira, de forma desavergonhada e cabotina, usar os espaços dedicados à educação institucional para defender os interesses da elite brasileira e fortalecer o projeto neoliberal que explora e oprime o grosso da população do país.

A escola foi, é e será sempre política. Resta saber a quem deve servir de forma justa e legítima.       

 

 

sexta-feira, 19 de junho de 2020

A dignidade roubada

Aos poucos, sem constituir surpresa nem mesmo para seus eleitores mais entusiastas, vai por terra a farsa de Jair Bolsonaro e sua gangue. A prisão do amigo íntimo e ex-assessor direto Fabrício Queiroz, nesta quinta 18, em Atibaia – SP, para além de significar um avanço no inquérito que visa a esclarecer o caso das rachadinhas no gabinete do então deputado estadual e atual senador pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, filho do presidente, pode descortinar crimes ainda mais graves.

No bojo de práticas ilícitas arroladas pelo inquérito, é bom não esquecer, pesam contra integrantes da primeira família, Jair Messias Bolsonaro à frente, envolvimento com pessoas associadas a práticas criminosas das milícias cariocas, entre essas, e nunca desvendado, o assassinato de Marielle Franco e seu motorista há mais de dois anos. Quem mandou matar Marielle Franco?

Espera-se, a partir da prisão de Queiroz, que outras investigações venham a ser destravadas, algumas delas mais diretamente ligadas ao próprio Jair Bolsonaro: o caso de Nathália Queiroz, filha de Fabrício, ancorando a contratação de um sem-número de funcionários fantasmas no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, na Câmara, e o nunca explicado caso da folclórica figura de Wal do Açaí, para mencionar dois deles, sequer saíram da fase inicial.

A sugerir que a situação tende a se agravar, no entanto, colocando o presidente cada  vez mais numa corda-bamba, na esteira dos elementos que apontam objetivamente para a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, no inquérito das fake-news, agora legitimado pelo STF, e para o impeachment, por muitos crimes de responsabilidade, era indisfarçável o abatimento físico e psicológico do presidente por ocasião do comunicado de afastamento do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, ontem, em Brasília.

Tudo isso, é importante frisar, ocorre em meio à trágica situação do país em decorrência da pandemia do coronavírus e de uma crise econômica sem precedentes em sua história recente.

Aos poucos, sem constituir surpresa nem mesmo para seus eleitores mais entusiastas, insisto, desmoronam como bolas de sorvete ao sol (recuso-me a lançar mão de uma metáfora pior), e sem o sabor desta, o egoísmo, a desfaçatez e o cinismo que estiveram por trás das motivações de uma parcela significativa dos 57 milhões de brasileiros que elegeram um farsante pelo simples fato de querer o Partido dos Trabalhadores fora do Poder --- e vislumbrar nisso, por óbvio, o caminho mais curto para ampliar o universo histórico de seus privilégios e de suas prerrogativas inconfessáveis.

O desfecho, tudo está a dizer, haverá de devolver aos demais brasileiros um pouco da dignidade que lhe foi roubada.

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 12 de junho de 2020

À luz de um novo tempo

Quando vereador, aprovei na Câmera Municipal dois projetos de lei procedendo a mudança de nomes de uma rua e uma praça, respectivamente. A primeira, de Estados Unidos para Márcio Fernandes Nogueira, numa homenagem a um filho da terra que, morrendo precocemente no auge de sua trajetória como empresário agroindustrial, tinha uma significativa lista de bons serviços prestados à região Centro-Sul do estado. A segunda, de John Kennedy para Alcântara Nogueira, dando entre os mais novos filhos da terra, sobretudo, visibilidade a um dos nossos maiores intelectuais, cuja obra, como professor e filósofo, dispensa para os mais velhos quaisquer comentários. Foi um dos mais respeitados intelectuais do país no que diz respeito à obra de Baruch Espinoza, para que se tenha uma ideia.

É claro que, mesmo tendo sido aprovados por unanimidade pelos colegas vereadores, sensíveis a justeza da iniciativa e a uma consistente defesa dos mesmos (que deem os leitores um desconto ao que possa eventualmente lhes soar arrogante de minha parte), os referidos projetos, imediatamente transformados em Lei Municipal, suscitaram considerável polêmica na cidade. Menos, é certo, por falta de reconhecimento do valor pessoal de cada um dos homenageados, como disse, ao seu modo e no território de suas searas profissionais, filhos ilustres da terra. É que pesa sobre as nossas tradições, por força de uma cultura sem raízes e muitas vezes preconceituosa, o gosto pelo que, sendo coisa inserida no imaginário das pessoas, passa a fazer parte de sua história e de seus costumes. Mesmo quando, como exemplifica à perfeição os casos aqui tratados, tais homenagens sejam estranhas àquilo que realmente somos enquanto povo. O presidente americano John Kennedy e os Estados Unidos, insisto, que dizem sobre nossa realidade a ponto de justificar homenagens dessa natureza? Pouco ou nada, ainda hoje defendo abertamente esta opinião.

Citei esses exemplos, tantos anos depois e meio que sem propósitos que o justifique, para me reportar à onda de manifestações antirracistas que, antes tarde que nunca, constituem um dos acontecimentos mais relevantes na história recende dos Estados Unidos, cuja repercussão, como deveria de fato ocorrer, ecoa mundo afora desde o bárbaro e covarde assassinato de George Floyd por um monstro de pele branca, na cidade de Minneápolis.

Na esteira dessas manifestações, que se estendem por mais de duas semanas em diferentes países, 80 locais do Reino Unido veem surgir na agenda mais relevante do momento um curioso debate: mudar nomes de edifícios, ruas, avenidas e praças ou simplesmente pôr no chão, literalmente, estátuas de personagens envolvidos direta ou indiretamente com práticas racistas. O movimento vem crescendo enormemente desde que manifestantes derrubaram e jogaram num  rio a estátua de Edward Colston, antigo proprietário de escravos, na cidade de Bristol.

Na internet, nas universidades, nos meios intelectuais, vêm ocorrendo manifestações a favor ou contra tais iniciativas, para uns, uma revisão inadiável de homenagens que jamais poderiam ter sido levadas a efeito; para outros, justas e merecidas formas de perpetuar personalidades que contribuíram para o desenvolvimento de cidades e, não raro, países.

Dentre essas personagens, pelo menos duas são popularmente conhecidas: Winston Churchil e Cristovão Colombo. Deste último, uma estátua foi vilipendiada, derrubada, incendiada e atirada no fundo de um lago em Richmond, na Virgínia, na terça-feira 9. Outra, em Boston, teve a cabeça decepada na quarta 10.

Descobridor da América, em 1492, Colombo deu margem a que europeus praticassem no continente inomináveis atos de violência contra habitantes da localidade.

Quanto a Kennedy e aos Estados Unidos, na distância de tantos anos, os limites de espaço desta coluna condicionam-me a voltar ao tema  depois.

 

 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Ato de Contrição

Em inícios de fevereiro, este colunista dizia aqui neste espaço: "No Brasil, na contramão das evidências de que seremos frontalmente atingidos (o número mais que dobrou em 24 horas), a irresponsabilidade de um presidente louco tenta manter a população indiferente à necessidade urgente de medidas que possam atenuar as consequências previsíveis de um surto já desencadeado."

Depois de ecoar o pensamento de profissionais da área médica e pesquisadores de outras áreas, também eles preocupados com a tragédia anunciada a partir do que se via em países da Europa, evidenciando a difícil realidade de nossa estrutura hospitalar, reportei-me ao fato de que medidas de confinamento imediato poderiam evitar a disseminação incontrolável da pandemia, bem na linha do que faziam países pobres antevendo suas dificuldades futuras.

Concluímos o texto da aludida coluna com o seguinte comentário: "O que era ruim, num país devastado pela desfaçatez, incompetência e obscurantismo dos que o governam, como jamais se pôde ver em toda a história da República, caminha [o Brasil] a passos largos para o abismo mais profundo."

Não faltaram, à época, por e-mail e WhatsApp, comentários não raro duros ao teor da coluna, mesmo quando vindos daqueles que reconheciam a complexidade do problema.

Criticaram, alguns com incontido entusiasmo, o fato de que o meu texto feria o princípio da neutralidade (sic) por que se devem orientar os articulistas de jornal, dando a ver subjetividades e opiniões políticas indisfarçáveis.

Esqueciam que essa neutralidade é impossível em termos jornalísticos e de quaisquer outras produções intelectuais, mesmo as mais elementares, como é próprio de crônicas semanais de um blog como o meu.

Hoje, algo em torno dos cem dias desde o primeiro caso diagnosticado no país, contados em rigor na quinta-feira 4, o que viria a ser descrita pelo presidente Jair Bolsonaro como "gripezinha" passou a matar um cidadão ou cidadã brasileiros por minuto.

Não, você não leu incorretamente o que aqui vai escrito: enquanto você lê este parágrafo do meu texto, uma pessoa morreu no Brasil vítima do coronavírus.

O mais trágico, o derradeiro passo em direção ao abismo a que me referi na coluna de fevereiro, é que, segundo infectologistas e outros profissionais dedicados a analisar a pandemia entre nós, o pico do número de mortos, o pior, portanto, ainda está por vir.

O Brasil tem hoje mais de 35 mil mortos, abaixo apenas do Reino Unido e dos Estados Unidos.

Profundamente entristecido com a confirmação do que esta coluna afirmava em 25 de fevereiro de 2020, relembro, contrito, um certo Machado de Assis: "Que a terra lhes seja leve."  

 

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Contra o Ódio

À exceção dos 20% de fanáticos que seguem insanamente o presidente Jair Bolsonaro, a que se somam ortodoxos de extrema-direita e a gente endinheirada para quem nada é mais importante que sua riqueza, perfazendo os 30% que ainda dão sustentação a esse governo tresloucado e fascista, todos sabem: o país está à beira do caos.

Entregues à sorte das vontades inconfessáveis da primeira-família, os brasileiros assistimos, como que impotentes, ao ódio institucionalizar-se pelos quatro cantos do território nacional. Em meio ao pandemônio, que lembra o pior da ficção da literatura e do cinema, resta-nos ler bons livros, nomeadamente aqueles que nos ajudem a compreender o destino tenebroso a que fomos condenados.

A esse propósito, acabo de ler, em versão eBook, o oportuníssimo Contra o Ódio ( Editora Âyiné, 194 págs.), da filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, um consistente trabalho em que se misturam ensaio crítico e reportagem capaz de apontar caminhos para a interpretação de um tempo marcado pela aversão ao diferente e ao contraditório.

Nesse sentido, embora apoiado predominantemente em exemplos extraídos dos Estados Unidos e da Europa, o livro constitui um esteio analítico bem apropriado para se tentar penetrar o universo autoritário e intolerante por que o Brasil vem sendo conduzido no atual (des)governo.

Sobre a Alemanha, por exemplo, o ensaio examina como, à luz de uma política reacionária a exemplo da nossa, é que os alemães professam o fortalecimento de um sentimento nacionalista que se contraponha à globalização, à convivência pacífica com os imigrantes, com as minorias e os grupos historicamente excluídos, como forma de construir o que a autora define como, para esses, seria a verdadeira Alemanha.

Contra o Ódio, subdivide-se em três partes: 1. Visível – Invisível; 2. Homogêneo – Natural – Puro e 3. Elogio ao Impuro. Mas é na segunda delas que o livro concentra toda a sua força, com reflexões originais acerca de temas considerados eternos, o Amor, a Esperança, a Preocupação, o Ódio e o Desprezo.

Numa percepção a um tempo simples e esclarecedora, Carolin Emcke nos faz lembrar que "O outro é fabulado como um poder supostamente perigoso ou como algo supostamente inferior; e assim os maus-tratos e o desejo de erradicação subsequente do outro não são reivindicados apenas como medidas desculpáveis, mas necessárias. O outro é aquele a quem alguém pode denunciar ou desprezar, ferir ou matar impunemente".

Para quem, não pertencendo ao esquema perverso que impera hoje no Brasil sob diferentes máscaras, queira respaldar em chave teórica a sua interpretação do Brasil hoje, o livro de Carolin Emcke constitui uma leitura oportuna e por demais enriquecedora.

Recomendo.