quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Valorizar o que é seu

"Quando nossos olhos ficam embaçados, nada como os olhos dos outros para voltar a valorizar o que é nosso." A frase é de Martha Medeiros e, se não me engano, está em "Montanha Russa", um dos seus adoráveis livros de crônicas.

Você babava toda vez que passava em frente à revendedora de automóveis e via, à distância, aquele carro "irado". Um dia, a custo, conseguiu adquiri-lo e se sentiu a pessoa mais feliz do mundo. Com o passar do tempo, a novidade foi perdendo a graça e, se pudesse, trocaria pelo modelo do Roberto, muito mais bonito, mais econômico e com maior valor de revenda. Com a roupa nova, o sofá da sala, com o fogão, a geladeira, que foi um amor à primeira vista, cedo ou tarde vai ser assim. O brinco de ouro, o anel de esmeralda, a pulseira de prata... O que um dia foi seu sonho de consumo, depois de conquistado, vai aos poucos perdendo o encanto. E você passa a achar desinteressante aquilo fez brilhar seus olhos, que o deixava de boca aberta, morrendo de vontade...

Na paixão é assim. A primeira vez que você a viu ficou deslumbrado. No dia em que reparou bem, ele lhe pareceu o homem dos sonhos. Ela tinha um jeito irresistível de recompor o cabelo. Ele usava um perfume que a deixou maluca. Ela era culta, e, além de bela, tinha 'sex appeal'. Ele era elegante e bem-humorado, roubava a cena no happy hour. Ela era inteligente. Ele falava de um jeito desumanamente sedutor. E assim, sob a magia do enamoramento, um dia o destino fez com que ele ou ela cruzasse seu caminho. Namoraram, ficaram apaixonados, casaram-se.

E o tempo foi passando. Com a convivência, o que era deslumbrante foi se tornando apenas interessante. Ele, que lhe pareceu o homem dos sonhos, foi dando a ver seus defeitos. O charme com que ela recompunha o cabelo foi ficando uma mania irritante. A cultura e a beleza dela, transformaram-se em coisas comuns, não a fazendo tão diferente de tantas outras que você conhece. Ele, que roubava a cena no happy hour, foi se tornando um chato. Ela, cuja inteligência lhe causou tanta admiração, agora lhe aborrece com suas reflexões rebuscadas. A sedução dele fez desmoronar sua confiança, e o ciúme tornou a sua vida insuportável.

É que os olhos, com o tempo, vão deixando de ver que, além do detalhe que o deslumbrou, ela tinha outras qualidades. Vão deixando de ver que, além dos defeitos que só agora você percebeu, ele é um cara generoso, companheiro, sensível. Vão deixando de ver que, se a forma como ela recompõe o cabelo agora o incomoda, o sorriso é sincero, o carinho gostoso... Que, muito mais que a cultura e a beleza, ela possui uma virtude sem preço: é família, recebe amorosamente seus filhos, que não nasceram dela. Vão deixando de ver que, o que hoje lhe parece uma chatice, é espontaneidade, é a alegria de viver com simplicidade. Que ela, apesar da conversa séria, que lhe desagrada hoje, está sempre ao seu lado, haja o que houver, faça chuva ou sol. Vão deixando de ver que a sedução dele é uma característica natural, nunca uma arma de traição.

E você, sem que perceba, não a valoriza mais, não a admira como à época em que a conheceu. E, se é bonita, a namorada do Paulo lhe parece muito mais. Se ele é atraente, falta-lhe o 'approach' do marido da Carla. Se ela tem, com efeito, um certo charme, faltam-lhe as pernas da Ana. Se é culta, falta-lhe a sensualidade da mulher do João. Se ele é bem-humorado, não gosta de viajar como o marido da Juliana. Se ela se veste bem, não tem o corpo da Jô, o apelo sexual da Tatiana. Se ele tem o poder de seduzir que a fez chegar às nuvens de desejo, o Marcelo está sarado, tem barriguinha de ator de novela de TV e canta divinamente bem.

A grama do vizinho...

E, no entanto, se você soubesse o que comentam dela seus melhores amigos; se soubesse como as amigas a invejam pelo marido que tem. Se soubesse como admiram o bom humor com que ele vai tocando a vida; se soubesse... se soubesse...

Ah leitor, leitora. Se seus olhos estão começando a embaçar, que tal ver um pouco com os olhos dos outros para valorizar mais o que é seu?

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A foto polêmica de Gabriela Biló

Quando critiquei a foto da capa da Folha de S. Paulo, há alguns dias, na qual o presidente Lula aparece por detrás de um vidro sugestivamente atingido por um projétil, e o gesto real de ajeitar sua gravata, em segundo plano, dá a entender uma contorção causada pela dor, numa técnica conhecida como "múltipla exposição", recebi por e-mail um comentário que tomo a liberdade de publicar aqui, muito embora preservando sua autoria: "Leio com grande interesse seus textos, sobretudo quando escreve sobre cinema. Gosto do seu estilo e repasso todos eles para amigos, mas acho uma contradição criticar a montagem da jornalista com Lula. Afinal, o que é arte em fotografia?" (sic).

Teci ao remetente, logo que li a mensagem, algumas considerações que pretendi esclarecedoras, mas as retomo aqui como forma de alimentar o debate, o que, mesmo em tais circunstâncias, parece-me enriquecedor.

Começo por evidenciar que a técnica utilizada consiste em expor o mesmo fotograma (ou fotogramas diferentes) duas ou mais vezes, obtendo-se, com isso, uma fotografia carregada de sentidos estranhos a cada fotograma original visto isoladamente. Numa palavra: a múltipla exposição é uma montagem, o que pressupõe acréscimos ou subtrações de cunho estético e condeudístico.

Desde a publicação de "Pequena história da fotografia", de Walter Benjamin, em 1931, e, principalmente, a partir do incontornável  "Uma arte mediana: ensaios sobre os usos sociais da fotografia" (tenho em mãos o texto original, pois não traduzido ainda para o português), nos anos 1960, do filósofo Pierre Bourdieu, a discussão em torno da linguagem fotográfica ganhou novos relevos, e, por volta da década de 1970, aproximadamente, chegou-se à conclusão de que a fotografia 'pode ser' arte, isto é, dependendo do uso que se faz dos recursos de linguagem, das intenções por que se orienta seu autor, a fotografia pode gozar do status artístico.

É aqui, no entanto, que se abre o debate que nos interessa: Qual o papel do fotógrafo e da fotografia, por exemplo, nos campos da estética, da medicina legal e, como é o caso, do jornalismo? Recorro a exemplos.

Como arte, ocorre-me a sequência famosa do clássico "A Doce Vida", de Federico Fellini, na Fontana de Trevi, quando a angulação de câmera sugere o memorável beijo entre Marcello Mastroianni e Anita Eckberg. Os dois, em realidade, não se beijaram, mas a insinuação de que o fizeram resulta artisticamente perfeita, condizendo com o componente ambíguo e contraditório da própria relação entre as duas personagens. Ponto para o diretor de fotografia Otello Martelli.

O registro fotográfico num laudo de medicina legal, pela seriedade da matéria que absorve, não comporta ambiguidades e deve, tanto quanto possível, "dizer" com exatidão como se deu o golpe desferido. A fotografia, aqui, é referencial, nunca um exercício de abstração ou algo que o valha.

No jornalismo, o objetivo a que se destina a fotografia é o de informar. Daí o chavão (discutível) de que "uma foto diz mais que mil palavras!". O debate não é tão simples o quanto parece. Vejamos.

É aceitável do ponto de vista ético que se manipulem os recursos de linguagem a fim de passar para o receptor certos valores morais, ideológicos etc.? Uma angulação de câmera, um enquadramento, a luz, equivalem a uma fotomontagem, na linha do que fez a fotógrafa Gabriela Biló, na Folha de S. Paulo?

A discussão, pode-se ver, entra no campo acadêmico e envolve aspectos próprios da ética jornalística. Levantá-la, no espaço exíguo de uma coluna como esta, deve ser compreendido como uma provocação, nunca como um exame mais consistente do ponto de vista teórico.

Considero que, mesmo no jornalismo, existem diferenças importantes entre os procedimentos técnicos convencionais, como uma perspectiva, o aproveitamento do espaço físico e mesmo temporal do registro, a fim de que se obtenha um efeito de conteúdo desejado, e a manipulação propriamente dita de fotogramas com a intenção de se criar uma mensagem estranha ao fato registrado originariamente por eles.

Sob este aspecto, pois, por mais que sejam aceitáveis as intenções estéticas, o que é hoje recorrente mesmo numa reportagem para jornal ou revista, a fotografia ainda assim pertencerá, prioritariamente, ao campo da informação --- e sua razão de ser deve visar ao registro tanto quanto possível condizente com a verdade factual em foco. Lançar mão de recursos de montagem, bem na linha do que fez a fotógrafa Gabriela Biló, desinforma, distorce, constitui um tipo de fraude e é, em sua materialidade, fake News. Ao fazê-lo, a profissional incorreu num erro e se prestou a interferir maldosamente sobre acontecimentos infames que já entraram para a História como um crime de proporções inimagináveis.

Sua foto na capa do mais importante jornal do país, por si só, exemplifica uma conivência que depõe contra sua brilhante carreira.

  

 

 

 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Haveremos de Amanhecer

"Salvá-los das atrocidades que conduziram tantos povos indígenas ao extermínio... Salvá-los da apropriação de suas terras, da contaminação de suas águas e da dizimação da fauna e da flora que compunham o quadro da vida dentro da qual eles sabiam viver; mas cujo saqueio, desapropriação e corrupção convertem a eles também em mortos viventes. Salvá-los da amargura e do desengano, levados às suas aldeias, em nome da civilização, pelos missionários, pelos protetores oficiais, pelos cientistas e, sobretudo, pelos fazendeiros, que de mil modos lhes negam o mais elementar dos direitos: o de serem e permanecerem tal qual eles são".

Essas palavras não foram proferidas nesta semana, nem neste mês ou neste ano; sequer neste milênio. São palavras de Darcy Ribeiro, em discurso, ao receber o título de doutor honoris causa da Sorbonne, em 1978. Portanto, faz isso 45 anos.

Amenizado entre 2003 e 2016, durante os governos do PT, o problema só se agravou nos últimos anos, até ganhar a dimensão de verdadeiro genocídio entre 2019 e 2022. Hoje, é revoltante o que ocorre ao povo yanomami; mas não só a ele, em que pese o estado de absoluta miséria a que foi particularmente largado durante o governo de Jair Bolsonaro.

Se diferentes governos foram em parte culpados, quando menos impotentes diante desse quadro de absoluta atrocidade, num tipo de incompetência ou omissão criminosa, resta inegável que nos últimos quatro anos, no conjunto de projetos e ações desastradas do pior de todos os governos de nossa história, os indígenas brasileiros foram objeto de prática genocida como política de Estado: o aumento de invasões e exploração ilegal de garimpo foi de algo próximo dos 200%, com autorização ilicitamente negociada de exploração de ouro em terras dos yanomamis ou próximas a elas; desvio de verbas destinadas à compra de medicamentos; apropriação indébita de vacinas em favor dos garimpeiros; violação de crianças e adolescentes indígenas e assassinatos de lideranças de sua comunidade, foram atos consentidos pelo governo bolsonarista ou por ele estimulados de forma desumana. Sua perversidade não pedia segredo, são inumeráveis as falas em que tornou explícitas suas intenções de dizimar os povos indígenas.

Originária de "geno" (grego: raça, classe) mais "cidio" (latim: matar), a palavra genocídio designa, entre outros sentidos, a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Estamos, pois, diante de um crime que não pode ficar impune, sob pena, como afirmou o líder yanomami Davi Kopenawa, de "o céu cair sobre nossas cabeças".

No famoso salão das escadarias em que proferiu seu discurso, durante cerimônia em sua homenagem, na prestigiada universidade francesa, o etnólogo, antropólogo, romancista, educador, político e intérprete do Brasil, Darcy Ribeiro, agradecia o prêmio como forma de lhe compensarem por seus fracassos, entre eles, o de não ter podido salvar um povo em extinção. Confiante, visionário, guerreiro e amante do país, que dizia tratar-se da "mais bela província da Terra", morreria afirmando que "Haveremos de Amanhecer".

Mas continua a noite profunda, a noite sem fim, a noite criminosa! Até quando?