quinta-feira, 17 de junho de 2021

Há 200 anos nasceu Dostoiévski

Há duzentos anos nascia na Rússia Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, autor de obras-monumento, na perspectiva do que definiu como livros incontornáveis o estudioso francês Michel Riffaterre.

De sua autoria, alguns dirão preferir O Idiota, outros Os Demônios. Há aqueles que fizeram de Os Irmãos Karamazóv livro de cabeceira, os que leem e releem Humilhados e Ofendidos, mesmo quem se encante com O Homem do Subsolo, O Duplo ou O Sonho do Homem Ridículo. Não importa. O fato é que a obra desse russo nascido numa aldeia nas proximidades de Moscou, em 1821, é hoje, mais que à sua época, uma quase unanimidade, não houvesse um certo Vladimir Nabokov a querer, da altura do seu imenso prestígio como ficcionista e crítico, tirar-lhe os méritos de escritor extraordinário.

Polêmica à parte, o certo é que, da lavra do escritor russo de quem se festejam os duzentos anos do seu nascimento, encontram-se livros sem cuja existência a literatura universal não seria o que é. Dentre esses, como a tornar popular um ficcionista de primeiríssima qualidade, está o romance Crime e Castigo, um dos meus preferidos (O Idiota, é o de que mais gosto), quem sabe por ter sido, quando ainda adolescente, a minha estreia na obra desse autor que, num exercício de subjetivação, considero o maior de todos os tempos.

Li-o, a primeira vez, em tradução do francês, na clássica edição das obras completas de Dostoiévski da editora Aguilar. Hoje, felizmente, existem no mercado as irrepreensíveis traduções, direto do russo, da Editora 34, assinadas por profundos conhecedores do idioma, a exemplo de Paulo Bezerra, Tatiana Belinky, Fátima Bianchi, Irineu Franco Perpétuo e, sobretudo, Boris Schnaiderman.

Mas, voltemos a Crime e Castigo.

A história, supostamente inspirada em fatos reais, é simples, leve-se em conta a profundidade filosófica, religiosa e existencial que Dostoiévski soube dar ao romance: um jovem estudante, chamado Raskolnikov, assassina a golpes de machado uma velha usurária e a sua irmã, rouba-lhe algum dinheiro e joias e passa a viver um dos maiores dramas de consciência de que se tem notícia na literatura de todas as línguas. De consciência? Faça-se aqui um acréscimo: o conflito do assassino não tem, como se poderia supor, um caráter religioso puro, no sentido do dilema vivido por seu autor acerca da existência ou inexistência de Deus. Vai além, pois que a obra discute problemas de uma outra dimensão, como a repensar o próprio conceito de crime, as circunstâncias que o explicam, a isenção de um homem movido a sentimentos contraditórios, que mata por "motivos nobres" (a expressão remonta a respeitados exegetas do romance): almeja poder ajudar a mãe, a quem falta o mesmo dinheiro que sobra à velha usurária, e para tirar da miséria a irmã que se prostitui para não morrer de fome e para salvá-la da exploração de Svidrigailov, exemplo perfeito de um capitalista perverso e frio.

Como se vê, não se trata de um escritor qualquer. Dostoiévski, a partir de temas por certo recorrentes entre outros grandes autores, redimensiona o sentido de suas histórias, não pelo mero tratamento estético, pela forma como estrutura suas narrativas, pelos expedientes de linguagem, mas pela forma como adentra a alma humana e desvenda os mistérios mais íntimos e mais dilacerantes da existência.

Criador de tipos psiquiátricos complexos, explora com verticalidade a solidão do homem nas grandes cidades, movendo-os numa narrativa perpassada de uma atmosfera febril raras vezes alcançada em termos artísticos.

O nome da personagem, nesse sentido, como afirmou um de seus maiores intérpretes, Otto Maria Carpeaux, remonta aos Raskolniks, rebeldes que resistiram durante séculos a toda espécie de perseguição sectária, desde que romperam com a Igreja Ortodoxa por suas contradições, dela, a Igreja, nunca capaz de descer à raiz dos problemas de um mundo em que se inverteram os significados do ter e do ser.

Há poucos anos, dando-me a percorrer as ruas de São Petersburgo, na ânsia de localizar a casa em que habitara o escritor russo, no cruzamento da Rua Stolovi com a rua Mali-Mestchenski, vivi uma das emoções mais fortes do leitor dostoievskiano em que me tornaria desde a primeira e longínqua leitura de Crime e Castigo. Ali, mais do que antes e de modo definitivo, pude entender que ler Fiódor Mikhailóvitch Dostoiévski é uma experiência que extrapola os limites de uma simples leitura do texto literário: nasce dessa experiência um tipo de cumplicidade que só mesmo o milagre da arte é capaz de produzir, aquele que rompe os limites geográficos e temporais, que faz de você um ser do universo em sua mais completa inteireza e mais profundo significado.

Talvez por isso, mesmo considerado um escritor reacionário por ideólogos de esquerda, em face do amor ao poder do Czar, um nacionalismo ainda mal explicado, Dostoiévski tenha sido e continue a ser lido por homens de espírito revolucionário, por ter sido capaz de entender que somos todos filhos de uma mesma realidade, todos irmãos, como preceitua, por viés aparentemente contraditório (em que pese o perfume cristão) o pensamento marxista. Mas esta é uma outra questão.  

 

 

 

 

 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Elogio e traição

Há poucos dias escrevi neste espaço um texto que, de imediato, causou espécie entre amigos e leitores de sólida formação intelectual. Sem meias-palavras, eu dizia do entusiasmo com que via chegar ao comando do Exército o iguatuense Paulo Sérgio Nogueira, a quem dirigi uma adjetivação que me parecera, ao escrever o texto, condizente com suas origens familiares e o seu perfil ético, ressaltando, ainda, suas qualidades intelectuais. As origens são inatacáveis, o elogio precipitado.

Hoje, volto ao assunto para reiterar essas referências, que conheço de perto, mas, acima de tudo, para retirar o entusiasmo ingênuo com que dizia nutrir esperanças de que o país, sob este aspecto, pelo menos, pudesse tomar outro rumo.

O comandante do Exército, mal lhe foi dada a oportunidade de honrar seu currículo, mancha-o de forma subserviente e frágil. Uma tristeza.

A passos largos, o país vai sendo covardemente conduzido para um golpe. O terreno está sendo preparado de forma explícita, aos olhos de uma esquerda que se deixa misturar com farsantes como Ciro Ferreira Gomes, que mais uma vez tergiversa e mente, cria artifícios para alimentar a sua vaidade doentia e nutrir, com a sanha cega por que orientou sempre o seu discurso tortuoso sobre o país, o sonho irrealizável de chegar a presidente do Brasil.

Como pode-se ler na coluna de hoje do jornalista Ruy Castro, também ele responsável pelo que, agora, critica como um militante de esquerda que nunca foi, "estamos diante de um óbvio que talvez não queiramos enxergar: o de que Bolsonaro, que já chegou ao Planalto com o aplauso das milícias, dedicou-se imediatamente a armar a população [...]" com o objetivo de facilitar sua permanência como presidente de um regime de exceção a que já estamos, de certo modo, submetidos.

Enquanto isso, num ritmo alucinante, que revela a proximidade da tragédia anunciada, assiste-se impotente ao desmonte das garantias constitucionais, repressão de toda ordem aos movimentos sociais e à defesa da democracia, perseguição aos povos indígenas, aos negros e às chamadas minorias.

Da altura montanhesca dos 480 mil mortos pela Covid-19, o Brasil padece de uma outra doença, não menos impiedosa sob muitos aspectos: a da falta de escrúpulos. É nessa doença a que se sustentam uma elite perversa, uma classe média obnubilada, motoqueiros idiotas, profissionais liberais covardes e uma legião amorfa de homens e mulheres medíocres, oportunistas e bandalhos que chegam a inconfessáveis orgasmos por ver o país outra vez sob o domínio assassino dos militares.

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora, está em Fado Tropical, de Chico Buarque de Holanda.

O movimento pusilânime do General traz-me de volta os versos da canção.