quinta-feira, 25 de abril de 2024

Security status not satisfied.

I was planning to say hello, but now I think greetings are unnecessary.

Firstly, I already know you and all your loved ones very well.
Secondly, the occasion for which I'm writing to you is not the happiest one for a friendly greeting.

You've heard that the Internet is a dangerous place, infested with malicious links and hackers like me?
Of course, you've heard, but what's the point in it if you are so dismissive of your internet security and don't care what websites you visit?
Times have changed. You read about AI, judging by your browser history, and still didn't understand anything?

Technologies have stepped far forward, and now hackers like me use artificial intelligence.
Thanks to it, I can get not only access to your webcam and record your fun with highly controversial video
(I recorded it also, but now that's not the point), but also to all your devices and not only yours.
And I saved a special sauce for this dish. I went further and sent malicious links to all your contacts from your account.

Yes, someone was smarter and realized that this was a trap and you were hacked, but believe me,
about 70% of your contact list (and these are your friends, colleagues, and family) bought into my scam.
They have as many skeletons in their closet as you do. Some turn out to be hidden homosexuals...

I have accumulated and analyzed a huge amount of compromising data on you and those with whom you communicate.
Very soon I'll start a crossfire - everyone will receive the full history of correspondence
(and there are enough of "sensitive moments") and recordings from the other contact's webcam.
I can go further and put all these files, as well as the recorded fun of you and your hacked contacts with "hardcore videos" into the public domain.

You can imagine, it will be a real sensation!
And everyone will understand where it came from - from you.
For all your contacts and, you will be enemy number one. Even your relatives will take a long time to forgive you and forget such a family shame...

It will be the real end of the world. The only difference is that there will be not four horsemen of the apocalypse, but only one - (=
But there is no such thing as a completely black stripe without any white dots.
Luckily for you, in my case the "Three M Rule" comes into play - Money, Money and Money again.

I'm not interested in your worthless life, I'm interested in people from whom I can profit.
And today you are one of them.

That's why: Transfer $1390 in Bitcoin to: 1PPJpvSPbbMwbESJZXGS8VtKiFQkmm7DvK ...within 48 hours!

You don't know how to use cryptocurrencies? Use Google, everything is simple.

Once payment is received, I will delete all information associated with you and you will never hear from me again.
Remember one thing: my crypto address is anonymous, and I generated this letter in your mailbox and sent it to you.
You can call the cops, do whatever you want - they won't find me, my demands won't change, but you'll just waste precious time.

The clock is ticking. Tick tock, a minute out of 48 hours has passed right now. An hour will soon pass, and in two days your old life will pass forever.
Either goodbye forever (if I get my payment), or hello to a brave new world in which there will be no place for you.

Hasta La Vista, Baby!
P.S. Almost forgot. Finally learn what incognito tabs, two-factor authentication, and the TOR browser are, for God's sake!

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Uma revolução poética

Chico Buarque de Hollanda, do alto de sua genialidade, escreveu sobre a Revolução dos Cravos uma de suas mais belas canções, cujo título, "Tanto Mar", constitui uma referência metafórica à distância que separa o Brasil de Portugal, quer em termos objetivamente referenciais (denotativos), pois há um oceano entre um país e outro, quer em termos poéticos, uma vez que, à altura em que compôs a obra (1975), diferentemente dos irmãos lusitanos, os brasileiros ainda padeciam dos horrores do golpe militar de 1964. É pouco divulgado, no entanto, mesmo entre os historiadores da MPB, o fato de Chico Buarque ter escrito duas versões para "Tanto Mar". A primeira, pouco conhecida, mas não menos bela, é esta: "Sei que está em festa, pá/Fico contente/E enquanto estou ausente/Guarda um cravo para mim/Eu queria estar na festa, pá/Com a tua gente/E colher pessoalmente/Uma flor no teu jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também que é preciso, pá/Navegar, navegar/Lá faz primavera, pá/Cá estou doente/Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim". Na segunda versão, mais trabalhada poeticamente, em obediência aos preceitos dos tratados de versificação, o poeta atinge uma dimensão artística de maior alcance e um andamento estilístico mais preciso, rítmico e melódico. Aqui está: "Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/Ainda guardo renitente/Um velho cravo para mim/Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/N'algum canto de jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também como é preciso, pá/Navegar, navegar/Canta primavera, pá/Cá estou carente/Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim".
Nesta quinta-feira, 25 de abril de 2024, comemoram-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, cuja ocorrência, em abril de 1974, portanto, deu início a uma série de acontecimentos libertários dos países colonizados por Portugal, razão por que os festejos reunirão, nesta quinta-feira 25, diversos outros chefes de Estado, a exemplo de Angola e Moçambique.
Transitando entre a ficção e a realidade, como é próprio da Arte, em "Quase Romance" (Sarau das Letras, 2021), minha estreia na narrativa longa, prestei uma singela homenagem aos portugueses no capítulo do livro dedicado a esse memorável acontecimento histórico, momento em que, no plano do conteúdo, a personagem Ana já deixara o país para retornar ao Brasil:
"Ironicamente, Ana deixara Portugal às vésperas da derrubada do governo salazarista de Marcello Caetano, ocorrida em 25 de abril de 1974. Por curioso, mais que os revolucionários que punham por terra o regime de inspiração fascista conhecido como Estado Novo, vigente desde 1933, uma mulher simples, uma humilde empregada de um restaurante da rua Braacamp, que tantas vezes frequentara ao lado de Linda, entraria para a história: Celeste Martins Caeiro, era o seu nome. O bar chamava-se "Franjinha" e fora inaugurado havia exatos doze meses. Para comemorar a data, a gerência decidira comprar uma grande quantidade de cravos vermelhos e brancos para distribuir com as senhoras. Aos homens, de cortesia, seria servido um "Porto".
Em face da grande mobilização popular que tomava conta das imediações do "Franjinha", a gerência do restaurante resolvera manter suas portas fechadas.O que fazer, todavia, com tantos cravos? "Leve-os para suas casas", disse, na véspera, Isabel Falcão, a gerente, dirigindo-se aos empregados do restaurante.
Abraçada a um molho de cravos vermelhos, Celeste tomou o metrô a caminho do Rossio, deparando, ao descer nas proximidades do cubículo em que morava com a mãe e uma filha, no Chiado, com os tanques revolucionários. Aproximando-se de um deles, pergunta a um soldado o que se passa ali, ao que ele responde: "Vamos para o Carmo derrubar Marcello Caetano. Isto é uma revolução!"
O soldado pede a Celeste um cigarro. Como não fumasse, ela oferece-lhe um cravo. Não tendo outra forma como reagir ao gesto da doce mulher, o soldado, displecentemente, coloca o cravo no cano do fuzil. Celeste os ofereceu, em seguida, a outros soldados, que também os colocaram na ponta de suas armas. Os outros empregados do "Franjinha", que ali se encontravam, passaram a distribuir os seus cravos também. Em poucos minutos, eram centenas de fuzis ornamentados com as flores com que se pretendia comemorar o primeiro aniversário de um pequeno restaurante.
Era a Revolução dos Cravos.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Ainda sobre a saudade

Ao mergulhar na xícara de chá o tradicional bolinho madeleine, antes de levá-lo à boca, recuperando o cheiro gostoso da iguaria em sua infância, na cidade de Combray, o protagonista de Em busca do tempo perdido inicia a experiência milagrosa de recuperar o passado longínquo, resgatando a sua história feita de amores, ciúmes, alegrias, sofrimentos e do prazeroso encontro com a arte, compondo, assim, a identidade do narrador adulto desse livro-monumento de Marcel Proust.

Acho que todo homem, cedo ou tarde, vive uma experiência semelhante, quase sempre quando a memória de sua vida vai se esgarçando com o passar do tempo, e suas lembranças perdendo-se entre a névoa do envelhecimento que se anuncia. É quando percebe que a vida de todos nós é feita de passado, que o que chamamos de futuro é algo improvável, que sequer sabemos se um dia vai acontecer, tornando-se uma realidade.

"Quem vive de passado é museu!" Quem nunca terá escutado o tolo chavão? E, no entanto, nem se percebe que, concluída a afirmação, isso já é passado, única possibilidade de ordem factual. Está na Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel: – "O agora já deixou de sê-lo quando é nomeado, já é passado."

Desde cedo, por curioso, seduziram-me as obras que tratam da vida pretérita, biografias, autobiografias, memórias. Fascina-me o desabrochar das lembranças, o trazer à mente aquilo que se viveu, os amores, os lugares em que se esteve, os perfumes e as sonoridades, as emoções que um dia tomaram conta de nós.

Tenho o hábito de ler esses escritos. Lembro-me como foi uma experiência impactante ler o livro de Proust, ora referido. Ou Minha formação, de Joaquim Nabuco; Navegação de cabotagem, de Jorge Amado; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; Tempo morto e outros tempos, de Gilberto Freyre; Meu último suspiro, de Luis Buñuel; A soma dos dias, de Isabel Allende; Minha vida na arte, de Constantin Stanislávski; A menina do sobrado, de Cyro dos Anjos; Confesso que vivi, de Pablo Neruda; Minha vida, de Hermann Hesse e, um livro diferente no gênero, Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Gustav Jung, para falar dos que me ocorrem enquanto escrevo estas linhas.

Sem pruridos, porque inteirado do que isso é, sou um saudosista assumido. Toca-me a etimologia do verbo recordar, do latim recordari, re = novamente + cord = coração, ou seja, trazer de volta ao coração.

Sou um proustiano convicto. Provocam-me sensações incomunicáveis o cheiro inesperado de um perfume, a audição de uma música antiga, o sabor de uma comida há muito tempo experimentada.

Sobre a saudade escreveram-se os mais belos versos, foram ditas as palavras mais tocantes, viveram-se as emoções mais sinceras, as mais doces ou mais doídas. Intraduzível, porque tão nossa, tão própria da língua que falamos, na intensidade de sua íntima potência, a palavra 'saudade' desprende-se da referencialidade do dicionário, e da prosa, a fim de comunicar esse sentimento nunca transferido em sua real grandeza. De Chico Buarque, talvez nenhum outro poema tenha podido dizer com mais força e mais sentido, mais beleza e profundidade emotiva que Pedaço de mim: "A saudade é o revés de um parto./A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

A chuva, que vejo agora cair do céu, pelo vidro da janela; o céu plúmbeo de um entardecer; o cheiro doce da terra molhada; os traços de um rosto; um simples gesto de alguém que passa; um movimento de mãos; o inconfundível aroma de um perfume; a música que enternece, e eis o passado de volta, fazendo-se presente, este "isto impossível" de que nos falou Jacques Derrida.



sexta-feira, 12 de abril de 2024

Fwd: Senador Girão, por que não te calas?

Hilário, não fosse ridículo, o discurso do senador cearense Eduardo Girão na tribuna da mais elevada instância legislativa do país.

Num inglês de quinta, com que, pasmem, traduziu até mesmo seu sobrenome para o inglês norte-americano, expondo à galhofa seu esnobismo chulo, Girão (ou Giron, como ele prefere), entra para o "seleto" grupo dos oradores mais canalhas que já passaram pelo Senado.

Se mal construída e trôpega na articulação sonora, rasteira na escolha lexical, sintaticamente desastrosa, no plano da expressão, portanto, no plano do conteúdo a fala do senador repercute sobremodo pelo que trouxe de desnecessário, vazio de sentido e humilhante do ponto de vista moral.

Uma vergonha para os brasileiros, os cearenses em especial, que expõe o pensamento, servil e trouxa, de uma parcela numericamente significativa das bancadas que compõem aquela Casa.

Uma tragédia, conclua-se, digna de figurar nos programas humorísticos mais escrachados.

O pronunciamento de Eduardo Girão, tal como se pôde ver e ouvir, falando em inglês para colegas brasileiros, veio na esteira do que, na Câmara dos Deputados, constitui a mais deslavada e cínica, porque hipócrita, mobilização dos parlamentares de extrema direita contra a regulamentação das plataformas digitais. Hipócrita quando fala em defesa da liberdade de expressão referindo-se ao que é propagação de mentiras, ataques virulentos aos fundamentos da democracia e do Estado de Direito. Deslavada e cínica, porque ancorada em ideias como as de Eduardo Girão, um indisfarçado entusiasta do jogo de interesses forjados no complexo de vira-lata de que nos falou Nelson Rodrigues.

Com tantos argumentos de que poderia o senador Girão lançar mão para defender suas ideias, numa correlação de forças própria de todo e qualquer regime verdadeiramente democrático, ocupa ele a tribuna do Senado Federal para exaltar servilmente a figura de um magnata estrangeiro que faz pouco caso do Brasil, achincalha as leis do país e arvora-se no direito de dizer o que é melhor para o nosso povo.

 Tivesse o senador cearense um mínimo de dignidade pessoal, em respeito ao cargo que ocupa, quando menos, e não faria um discurso tão vil e tão desavergonhado como o fez, dirigindo-se, noutra língua, em pleno Senado brasileiro, a uma personagem desprovida de qualquer escrúpulo como Elon Musk, que, além da riqueza gigantesca, tão-somente assume-se como o mais importante prócer do reacionarismo contemporâneo.

Para Elon Musk, para a extrema direita internacional, para os amantes do golpismo no país (leia-se bolsonarismo), para os endinheirados da Faria Lima e demais oportunistas da economia ultraliberal, é evidente: jamais interessará que se proceda a qualquer regulamentação das plataformas digitais. São elas o canal com que alimentam seus negócios, muitas vezes espúrios, e promovem o ideário neofascista que toma de assalto o Brasil.

Não se trata de coibir a liberdade, mas de preservá-la. A liberdade consiste em poder fazer o que não prejudica a outrem, diz a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Que assim seja.   


 

 

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A odisseia hipertextual de Tornatore em "Cinema Paradiso"

Por volta de 1967, quando vieram à tona as importantes contribuições de Julia Kristeva para a teoria de Mikhail Bakhtin, desenvolvidas nos livros Problemas da poética de Dostoiévski e A obra de François Rabelais, nos quais o semioticista russo explora as diferentes possibilidades de relações entre linguagens, o Cinema passou a dispor de uma nova e preciosa perspectiva de análise oriunda da semiótica: a intertextualidade.

Desde então, uma variedade de topoi passou a fazer parte do já muito expressivo repertório de termos com que se definem as conexões entre saberes: intertextualidade, transdisciplinaridade, transversalidade, rizoma etc., ou, para dar espaço ao renomado estudioso da sétima arte, Robert Stam, tradução, leitura, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração e significação, guardadas, evidentemente, particularidades estabelecidas para um mesmo processo de apropriação entre diferentes linguagens artísticas. Assim, tentando elucidar eventuais dúvidas surgidas acerca do presente artigo, começamos por destacar que utilizaremos o termo "intertextualidade" para definir o fenômeno observado por nós em "Cinema Paradiso", o aclamado filme com que o cineasta italiano Giuseppe Tornatore (1956) faz sua tocante e premiadíssima declaração de amor ao Cinema.

Para tanto, é oportuno registrar que tomamos o filme do ponto de vista da "semiótica discursiva", segundo a qual "texto" é toda unidade de análise organizada como "linguagem", a exemplo de um poema, um romance, uma tela, uma escultura, um espetáculo de dança etc. Um filme, portanto, é um "texto" (e não me refiro aqui ao script) e, como todo texto, constitui-se de duas dimensões indissociáveis: Forma e Conteúdo, ou Plano de Expressão e Plano de Conteúdo, ou, ainda, Significante e Significado, termos com que o linguista suíço Ferdinand de Saussure postulou as duas dimensões do texto verbal, dando espaço para que outras importantes contribuições surgissem, com destaque para as formulações de Hjelmslev no livro Ensaios Escolhidos.

Feitas essas considerações, lançamos mão do termo "intertextualidade" como aparece no respeitado Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Mainguineau, ou seja, a "propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos". Em palavras mais claras: a construção de um texto por meio de outros textos de uma mesma ou diferentes linguagens, sob formas mais ou menos reconhecíveis. Filmes geram filmes, por exemplo.

O caso mais comum de intertextualidade, em termos cinematográficos, se dá com o que se convencionou chamar de "metacinema", isto é, o filme que trata de filme, por exemplo, caso em que é mais adequado falar de "metalinguagem", o código reportando-se ao código, a linguagem à própria linguagem, estratégia narrativa recorrentemente utilizada pelo Cinema para se autorretratar, o que, naturalmente, pressupõe a evocação do repertório fílmico do espectador.

Mas o fenômeno da intertextualidade (ou dialogismo, segundo a teoria de Bakhtin) não raro ocorre entre textos produzidos com códigos diferentes. É o caso, por exemplo, das adaptações de um livro para o Cinema, resultando em obras de tal modo importantes que parecem ganhar o status de obras independentes: "Anna Karênina", de Tolstói, por Julian Duvivier; "Orlando", de Virgínia Woolf, por Sally Potter; "Os Assassinos", de Ernest Heminguay, por Don Siegel ou "Ricardo III", de Shakespeare, por Laurence Olivier, entre dezenas e dezenas de outros tantos filmes que se poderia citar aqui.

No entanto, há casos em que essas interlocuções ocorrem com maior nível de complexidade, não se limitando o fenômeno da intertextualidade às citações de filmes dentro de filmes, na linha do que é possível ver em "Splendor", de Ettore Scola, e no próprio "Cinema Paradiso". Neste, como pretendemos ver, se é visível a ocorrência da intertextualidade pela "citação" de filmes consagrados dentro de sua narrativa (as sequências de sessões de cinema são recorrentes), num tipo de rememoração que tem por objetivo homenagear os grandes mitos da sétima arte, reconhecíveis na sua totalidade aos olhos do cinéfilo mais atento e possuidor de um inventário cinematográfico mais amplo, dá-se a ver, no caso de "Cinema Paradiso", o diálogo do filme com uma obra-monumento da história da literatura ocidental, a Odisseia, de Homero. Antes de adentrarmos o corpus de análise aqui estabelecido, todavia, façamos uma sinopse do filme.

Numa pequena cidade da Sicília, Giancaldo, nos anos que se seguem à Segunda Guerra Mundial, vive o garoto Totó (Salvatore Cascio), aficionado pelo cinema, que se torna amigo de Alfredo (Philippe Noiret), projecionista do cinema que dá nome ao filme, a quem atazana a fim de que lhe ensine a operar o equipamento de projeção. Certo dia ocorre um incêndio no "Cinema Paradiso", de cujas chamas o garoto Totó resgata o velho amigo, que fica cego em consequência do acidente. Tendo aprendido a operar o equipamento, quando o cinema é reconstruído, agora com o nome de "Novo Cinema Paradiso", Totó é contratado para substituir Alfredo. Já adolescente, Totó (Marco Leonardi) conhece Elena (Agnese Nano), por quem vem a nutrir a sua primeira paixão. Mas os jovens amantes se desencontram, uma vez que Elena vai morar com os pais numa outra cidade. Totó parte para Roma, onde se tornará um cineasta de sucesso. Trinta anos depois, comunicado da morte de Alfredo, agora um cineasta de prestígio, ele volta a Giancaldo para participar da cerimônia de sepultamento do velho amigo. Recebe da viúva uma lembrança que lhe deixara Alfredo: um rolo de película composta de pedaços dos muitos filmes censurados à época pelo padre Adelfio (Leopoldo Trieste), responsável pelo Cinema Paradiso.

Isto feito, tentemos explorar a matéria que nos interessa, isto é, uma breve análise do filme de Giuseppe Tornatore a partir das possíveis relações de natureza intersemiótica com a obra de Homero. Antes, porém, consideramos indispensável observar que, no caso em tela, não estamos diante de qualquer tipo de adaptação do texto literário para o Cinema, como citado há pouco a propósito de algumas obras. Longe disso: no máximo é aceitável dizer que se trata de uma narrativa sutilmente plasmada na história de Ulisses, a qual ocupa o lugar de hipotexto, ou seja, o texto (Odisseia) de que se origina o hipertexto (o filme "Cinema Paradiso") que lhe serve de inspiração, animando o processo criativo do cineasta italiano.

Por oportuno, devemos considerar que existe, aqui, uma relação intersemiótica que se dá por "transmutação", definida por Robert Stam como o tipo de tradução que "consiste na interpretação dos signos verbais por um sistema de signos não verbais" ou "de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a Música, a Dança, o Cinema ou a Pintura, ou vice-versa".

São esses pontos de contato entre as duas obras que tentaremos colocar em evidência a partir de agora. Simplifiquemos, no entanto, as linhas de força de que se originam essas relações possíveis: mais importante livro depois da Bíblia, Odisseia, de Homero, é a narrativa que canta as desventuras de Ulisses, herói mítico da Guerra de Troia, em seu caminho de volta para Ítaca, a terra em que nasceu. Como observa Frederico Lourenço em prefácio à tradução da epopeia, a qual tomamos como esteio para o presente trabalho, "é na superação desesperada dos perigos, nas ameaças que surgem na luta pela sobrevivência, que nos identificamos com ele – e de uma maneira primária, inexplicável, que determina por que se tenha sempre projetado em Ulisses a essência do Homem Mediterrâneo, logo, pela cultura, do Homem Ocidental".

Esta, a razão por que são numerosos os diferentes tipos de narrativa, na Literatura, no Teatro, no Cinema etc., que dialogam com o clássico de Homero. O mito vai estar presente, em níveis e proporções variados, nas mais diversas produções, de "Indiana Jones" a livros de ficção científica; de obras clássicas, como Os Lusíadas, de Camões, a filmes emblematicamente modernos, a exemplo de "O Desprezo", de Jean-Luc Godard, ou "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, para não falar de romances transgressores, verdadeiros divisores de água na literatura ocidental, como é o caso de "Ulisses", de James Joyce.

No que diz respeito a "Cinema Paradiso", assim, é possível afirmar que, entre os muitos temas que lhe servem de leitmotiv, um nos parece inquestionável: o filme trata da viagem de volta, da lealdade ao objeto amado. Os relatos, como é comum na transmutação por tradução, como está em Robert Stam, diferem enormemente um do outro, mas se encontram naquilo que parece nos querer dizer os muitos signos, símbolos e sugestões presentes no filme de Tornatore. Insistimos: não se trata de tradução de um código para outro de um mesmo material "significante", o que implicaria numa obra nova, como ressalta Mário Alves Coutinho, em Escrever com a Câmera, reportando-se ao filme de Jean-Luc Godard, há pouco referido, "dialeticamente escrever um texto exatamente igual ao original, com as mesmíssimas nuances e detalhes, é praticamente (e teoricamente) impossível". Importante lembrar, neste sentido, o famoso conto de Jorge Luís Borges, "Pierre Menard, autor do Quixote", a partir do clássico de Cervantes.

No caso da obra de Tornatore, única e tão somente pode-se falar da presença de elementos comuns, sugestões consideráveis, claramente manipuladas, artisticamente "falsificadas", deslocadas do sentido que possuem no texto-fonte, entendendo-se por isso o que se define como hipotexto, isto é, a matéria original de que o cineasta italiano vai extrair "perfumes" que, ainda mais, emprestam ao seu processo criativo inventividade artística e força poética. Vejamos.

Como no livro de Homero, o que interessa ao cineasta Salvatore (Jacques Perrin), o Totó já adulto, com que se inicia "Cinema Paradiso", assim como a Ulisses na epopeia, não é a viagem de ida, mas o retorno, o reencontro com suas raízes: familiares, artísticas, passionais etc. Assim como ao herói homérico, o futuro de Salvatore é o seu passado, razão por que toda a narrativa da película se constrói a partir das recordações do protagonista. É a memória ameaçada, como a propósito de Ulisses se pode ver nos cantos IX a XII, a princípio com o convite dos lotófagos, e, depois, com o sugestivo episódio do canto das sereias, para não falar dos elixires de Circe, o que atormenta Salvatore quando informado da morte de Alfredo, o projecionista que ocupara na infância dele o lugar do pai ausente, que partira para a Rússia numa viagem sem volta. As diferenças, aceitáveis, como dissemos, em qualquer das muitas possibilidades de intertextualidade, são visíveis, o que não invalida a constatação dos muitos pontos de convergência que se fazem perceber entre a narrativa de Homero e o roteiro do filme de Giuseppe Tornatore.

Nessa perspectiva, pois, Salvatore assume por aproximação o papel de Ulisses, assim como, no plano da recordação, Totó assumira o papel de Telêmaco, o filho de Ulisses. Pai e filho se misturam, dando lugar a um tipo de licença poética própria do hipertexto, na mesma proporção em que Maria (Antonella Atilli, jovem/Pupella Maggio, idosa), mãe de Totó, se confunde na história de "Cinema Paradiso" com a figura de Penélope na narrativa de Homero. Não à toa, nessa perspectiva, é que a primeira vai padecer a ausência do marido, combatente na Rússia, como a segunda a ausência de Ulisses, na Guerra de Troia. Nesse sentido, portanto, é que se pode destacar uma das citações mais simbólicas do filme, quando Salvatore chega em casa, vindo de Roma para Giancaldo, a fim de participar do funeral de Alfredo, e sua mãe encontra-se tricotando, numa alusão ao manto com que Penélope adia o momento de desposar um de seus muitos pretendentes, desfazendo à noite o que tecera durante o dia. Ao se levantar para reencontrar o filho à porta de casa, a mãe de Salvatore não percebe que a agulha se agarrara ao vestido. A câmera fecha num dos mais sugestivos planos de todo o filme e vemos o trabalho se desfazer celeremente. A cena redimensiona-se, e a metáfora do esquecimento, que na Odisseia faz-se perceber no início da travessia de Ulisses, quando ele prova do fruto do lótus, em "Cinema Paradiso" vai aparecer próximo do final. Atente-se para a sequência em que, realizado o sepultamento de Alfredo, curvado sob o peso da reconstrução da memória, Salvatore diz à mãe: – "Eu pensava ser forte e ter esquecido tudo. Mas, agora, vejo que nada se apagou. Está tudo à minha frente...".

Como observa Italo Calvino, em conhecido estudo sobre o mito homérico, Ulisses/Salvatore mostra-se atento ao passado que não deve ser esquecido: "Esquecer o quê? A Guerra de Troia? O assédio? O cavalo? Não, a casa, a rota da navegação, o objetivo da viagem. A expressão que Homero usa no caso é 'esquecer o retorno'". Trinta anos depois, espaço de tempo intencionalmente maior que o de Ulisses até Ítaca (vinte anos), Salvatore retorna a Giancaldo, mas depara, como o herói do clássico grego, na provinciana cidade que abandonara, com as marcas do tempo e as mudanças que dele decorrem. O seu conflito, pode-se ver, está associado à perda de Elena, que saberá casada com Bóccia, o amigo de infância. É importante atentar para o fato de que Helena (com H) é o nome da personagem mítica que ocasiona a Guerra de Troia, a quem se devem, em flashbacks, as primeiras evocações de Ulisses. Na versão do diretor, com trinta minutos a mais que a versão levada ao cinema, Salvatore reencontra Elena, a paixão nunca superada, mas é impossível reconquistá-la, ainda que os dois se envolvam numa relação física isolada, às margens do mar, onde, insistentemente, a câmera enquadra âncoras abandonadas, cobertas de ferrugem, símbolos das raízes inexpugnáveis que prendem o homem realizado de agora ao menino sonhador e apaixonado do passado longínquo. Na fala de Salvatore a sua mãe, citada há pouco, deparamos com a referência ao Ulisses de Homero, para quem o futuro sonhado é, mesmo, o seu passado. Ou melhor: a sua restauração. Referindo-se a Ulisses, diz Calvino: "Compreende-se que um dia, por despeito, o grande Ulisses tenha se tornado aquele da Última (sic) viagem: para o qual o futuro não é de modo nenhum o passado, mas a Realização de uma Profecia – isto é, de uma verdadeira Utopia". Na quase totalidade dos mitos, sabe-se, o desejo da conquista só é possível pela recordação de um passado, como o considera Claude Lévi-Strauss acerca do mito. Sob este aspecto, aliás, é necessário frisar que muitos outros elementos dispersos ao longo da narrativa de "Cinema Paradiso" ganham relevância numa perspectiva de leitura intersemiótica: no seu retorno à Ítaca, Ulisses é reconhecido por Euricléia pela cicatriz que tem na coxa, fruto de uma caçada na infância. Mas, antes, no canto XVII, pelo cão Argos, único ser de quem é objeto de acolhida imediata e espontânea. Numa sequência do filme, quando Totó, concluído o serviço militar obrigatório em Roma, chega a Giancaldo, num plano geral em que se evidenciam a sua solidão e a indiferença por sua chegada, apenas um cão de rua se aproxima dele, e, como o Argos, na Odisseia, balança a calda, a quem Totó toma nos braços num gesto de carinho que é, ao mesmo tempo, de gratidão. Num contre-plongée (câmera com angulação de baixo) estilizado e carregado de sentidos, o olhar do próprio Totó (câmera subjetiva) volta-se para o novo projecionista, indiferente à sua presença. Embora jovem, no que se pode ver uma referência ao Ulisses, Totó traz no corpo as marcas dos maus-tratos no quartel: a barba por fazer, a magreza do corpo em alguma medida submetido às peripécias do tempo, parecem aludir ao Ulisses maltrapilho da narrativa de Homero. Ocorre aqui o que é comum nas relações intertextuais, "o conhecimento de um texto, ou leitura de uma manifestação de 'linguagem' possibilita o acesso a outras, dadas as analogias passíveis de ser, entre elas, estabelecidas", conforme assinala Sandra Ramalho de Oliveira, no livro Ensaios em Torno da Arte. Nessa linha, pois, é que apoiamos a presente leitura em bases da Semiótica, segundo a qual se entende por linguagem o conjunto ou sistema de signos dispostos segundo regras e capaz de comunicar significados. Uma das propriedades fundamentais de toda linguagem, segundo A. J. Greimas e J. Courtés, é a capacidade de falar de si mesma. Na Odisseia, assim como no "Cinema Paradiso", deparamos com uma narrativa dentro de outra narrativa. Naquela, entre os muitos narradores de histórias, Helena e Menelau, por exemplo, tem papel relevante a figura do cego Tirésias, assim como, igualmente cego depois do incêndio do cinema, vamos encontrar o projecionista Alfredo, detentor de conhecimento das aventuras dos heróis do cinema (John Ford, Visconti, De Sica, Chaplin, Rossellini, Vadim etc.), narrando suas histórias. Ao contar essas aventuras, Alfredo confunde o jovem Totó, e já não sabemos se o que lhe diz é a "fala" de Tyrone Power, John Wayne etc. ou a sua própria fala. Nesse intrincado relato, verdadeiro jogo de faz de conta (o ilusionismo cinematográfico é um pacto a ser firmado com o espectador), Totó ouve a uma dada altura Alfredo lhe contar a história de um soldado apaixonado e não correspondido que se submete a uma espera sem fim até que a amada, no espaço de cem intermináveis dias, sinalize com a sonhada acolhida. Na história, o soldado espera noventa e nove dias, mas abandona seu posto no centésimo dia sem obter a resposta: – "E não me pergunte por quê!", diz-lhe Alfredo. A situação, reverberando a ocorrência da narrativa dentro da narrativa, vai se repetir com o próprio Totó, a quem Elena, em princípio, não corresponde o amor. A sequência em que ele aguarda o sinal de Elena, de quem vê apenas a silhueta no alto da janela, é das mais bonitas do filme, seduzindo o espectador como aos seguidores de Ulisses o canto das sereias.

Mas, se são tantas e tão sugestivas as analogias estabelecidas por Tornatore, uma, sobremaneira, explicita a origem de sua inspiração: pela metade do filme, agora substituindo Alfredo como projecionista do "Novo Cinema Paradiso", Totó, rapaz feito, projeta para os pescadores, sugestivamente acomodados em barcos ancorados na praia, Ulisses, na bela adaptação da Odisseia realizada para o cinema por Mario Camerini, de 1954, com Kirk Douglas e Silvana Magnano nos papeis principais. A cena que também o espectador de "Cinema Paradiso" passa a assistir, em tela cheia, é das mais conhecidas do livro de Homero: aquela em que Ulisses enfrenta o ciclope Polifemo e é quase eliminado por ele. Aqui vai uma digressão: Também no clássico de Stanley Kubrick, "2001: Uma odisseia no espaço", conforme afirma Michel Ciment, em Conversas com Kubrick (Cosac & Naify, 2013): "A nave Discovery (descoberta) o leva, portanto, a uma revelação do seu destino, e se o filme de Kubrick se aproxima dos mitos homéricos que o título sugere (combate do navegador Bowman, literalmente arqueiro, como Ulisses, com o computador ciclope que ele vence trapaceando), ele representa, a exemplo da época grega, uma exploração interior". No nosso caso, já nos reportamos à cena em que Salvatore, dirigindo-se à mãe, fala de sua descoberta ao voltar à Giancaldo e deparar com seu passado. Na linha do que afirma Ciment, a propósito do filme de Kubrick, "toda verdadeira odisseia é uma viagem no mundo interior que se torna uma descoberta de si mesmo". Com Salvatore vai se dar o mesmo, e a metáfora do ciclope serve, no filme de Tornatore, para simbolizar as dificuldades pelas quais o herói teve de passar. Como numa ocorrência de mise en abyme, expressão criada por André Gide para definir a narrativa em abismo, isto é, a narrativa que traz dentro de si outra(as) narrativa(as), vê-se, agora de forma não apenas sugerida, a dialógica presença da narrativa de Homero no filme de Tornatore. Há, portanto, como em incontáveis outros casos conhecidos, uma tradução em mesma linguagem, o filme dentro do filme, textos construídos a partir de um mesmo código, ao mesmo tempo em que, também eles, partem de uma outra linguagem (a linguagem literária) e se convertem em linguagem específica, a linguagem do Cinema.

Do ponto de vista estrutural, a exemplo do que ocorre na epopeia de Homero, no hipertexto cinematográfico de Giuseppe Tornatore, atam-se as duas temporalidades, passado/futuro, as quais, no filme, presentificam-se num dos mais belos raccords (união temporária ou espacial entre planos) já realizados no cinema, quando a cena da partida do jovem Totó, na estação de trem, transita poeticamente para aquela em que se vê o avião que o traz de volta, cineasta consagrado, a sua "Ítaca", trinta anos depois.

No final, uma ironia que mais ainda acrescenta ao filme em termos intersemióticos: à maneira de Hitchcock, Tornatore "assina" sua obra ao aparecer numa tomada rápida, manuseando na diegese fílmica, a ficção propriamente dita, o projetor através do qual Salvatore assistirá à montagem dos pedaços de filmes que Alfredo lhe deixara de herança – as cenas de beijos ou levemente sensuais que o padre censurara. A autoria da Odisseia é atribuída a um poeta cego que não se pode afirmar ter existido. Também cego, Alfredo transmite pela "voz alheia" uma pequena história do cinema.

Por último, é relevante lembrar que a obra de Homero, como dissemos, tem inspirado, através dos tempos, poetas, dramaturgos, cineastas, artistas, músicos etc., empenhados em manter viva a força dessa narrativa incontornável, a exemplo do que fizeram, para citar alguns autores e obras, James Joyce (Ulisses), Christina Stead (For love alone), os irmãos Coen ("E aí, meu irmão, cadê você?"), Stanley Kubrick ("2001: uma odisseia no espaço") ou mesmo a banda de rock australiana Powderfinger (Odyssey number five).

Essas obras, em diversos códigos e diferentes linguagens, em sua totalidade evocam uma jornada grandiosa. Tornatore soma-se a esses todos com a realização da mais bonita declaração de amor ao Cinema.

 

*Alder Teixeira é Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Artes pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É autor, entre outros, de "Ingmar Bergman: estratégias narrativas".

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Pastora das Nuvens

Se o ano de 2024, como escrevi neste espaço, deve ser exaustivamente lembrado como o ano dos sessenta anos de nascimento do mais abominável acontecimento político verificado neste país, refiro-me ao golpe de Estado de 1964, por outro lado é marco da morte de uma das mais belas brasileiras, Cecília Meireles, ocorrida também há exatos sessenta anos.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Estreou na literatura em 1919, com o livro Espectros, a tal ponto distante de seu futuro estilo, que a própria Cecília eliminou de sua bibliografia, descartando-o como obra de somenos importância. A ele se seguiriam Nunca mais e Poema dos poemas (1923), finalmente libertos das influências parnasianas visíveis no livro de estreia.

Nos anos seguintes, viriam Criança, meu amor (1924) e Baladas para El Rei (1925), agora presos não ao parnasianismo de primeira hora, mas assumidamente inspirados na estética simbolista.

Em 19 de novembro de 1935, casada com o artista plástico Fernando Correia Dias, Cecília viveria momento trágico em sua vida pessoal: Maria Fernanda (conhecida atriz falecida há dois anos), filha caçula, chamaria a mãe para mostrar-lhe o corpo do pai, enforcado na sala de casa. Começaria uma fase extremamente difícil na vida da escritora, a quem caberia, a partir de então, arcar com a criação das filhas do casal.

A primeira grande obra de Cecília Meireles, Viagem, viria a público quatro anos após a morte do marido, inaugurando uma trajetória artística que ocuparia a mais alta posição entre as poetas brasileiras: "Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/Sou poeta", canta ela em "Motivo", um de seus poemas mais celebrados.

Além deste, dois outros poemas do livro entrariam para o rol das grandes realizações do cancioneiro popular: "Em que espelho ficou perdida/a minha face?", indaga, em "Retrato", e, no desconcertante "Guitarra", faz uma das mais belas afirmações poéticas de que se tem notícia entre os escritores brasileiros: "A maior pena que eu tenho,/punhal de prata,/não é de me ver morrendo,/mas de saber quem me mata".

Como toda mulher, num país historicamente misógino, nem mesmo a genialidade artística de Cecília Meireles seria bastante para dar à escritora o reconhecimento merecido. Um dos papas do Modernismo, em 1952, Oswald de Andrade não mediria palavras para desmerecê-la: "A senhora Cecília Meireles é uma espécie de Morro de Santo Antônio, que atravanca o livre tráfego da poesia". A literatura tem também seus momentos rasteiros.

Nada que impedisse Cecília, contudo, de continuar sua carreira irretocável, que atingiria seu ponto culminante, por sinal, dois anos depois do comentário ferino de Oswald de Andrade: Romanceiro da Inconfidência seria a consagração definitiva. Muitos outros livros viriam.

Deixando uma obra inquestionável por suas qualidades formais e de conteúdo, como cronista, ensaísta e poeta, sem falar na sua luta em defesa de uma educação para todos, inspirada nas contribuições de Fernando Azevedo, Cecília Benevides de Carvalho Meireles morreria de câncer no entardecer de 9 de novembro de 1964, comovendo, de ponta a ponta, o Brasil, àquela altura submetido aos horrores do golpe militar de 31 de março do mesmo ano.

Poeta pelos caminhos da terra, no dizer sensível de Antônio Carlos Secchin, e pelas asas do ar: não por acaso considerava-se "pastora das nuvens". E o foi, na grandeza de sua arte --- e beleza incomensurável da mulher.

 

  

 

 

quinta-feira, 28 de março de 2024

Nós não vamos esquecer

"Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho/Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar/Quem é essa mulher/Que canta sempre esse lamento/Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo arranjo/Só queria agasalhar meu anjo/E deixar seu corpo descansar/Quem é essa mulher/Que canta como dobra um sino/Queria cantar por meu menino/Que ele já não pode mais cantar". Chico Buarque e Miltinho.

Neste domingo 31, contam-se 60 anos do último golpe militar e implantação da mais perversa ditadura a que o país foi submetido. Eu tinha por volta dos sete anos e por razões óbvias aqueles acontecimentos me eram indiferentes. Mas cresci, estudei, dediquei-me aos livros e pude compreender, desde muito cedo, o que isso significou para o Brasil. Aos poucos fui me dando conta do que significa um regime autoritário, do que é uma ditadura, do que invariavelmente e sem exceção está por trás dela, de como se traçam seus rumos e de quais são suas consequências na vida de um povo.

Por esses dias, na contramão do que propõe um certo presidente, haverá muito o que ler na imprensa sobre esses fatos. Em textos lapidares, academicamente corretos, embasados do ponto de vista histórico, consistentes como exame teórico de um regime de exceção, os leitores serão colocados a par do que houve, e com isso, felizmente, a memória desses anos terríveis será de alguma forma nutrida.

Nesta coluna, irei por outro caminho, trazendo à tona um dos fatos corriqueiros ocorridos no Brasil durante a ditadura militar. Que isso possa reacender a esperança de que nunca mais venhamos a viver essa triste realidade. Vamos ao fato.

Stuart Angel Jones, em que pese o nome, era um jovem brasileiro, filho de Zuzu Angel, uma figurinista e estilista de fama internacional. Ele era militante de uma organização de esquerda, o MR-8, cujos objetivos mais claros eram enfrentar os militares e devolver ao país a democracia espezinhada pelas botas dos generais, almirantes, brigadeiros e seus homens "terrivelmente armados". Era preciso proteger o país do comunismo, diziam, como sempre dizem os golpistas.

Stuart Angel foi preso pelos agentes militares. Simplesmente desapareceu, supostamente atirado de um helicóptero em alto mar, depois de perversamente torturado nas dependências do quartel do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica.

Em uma das sessões de tortura, Stuart Angel foi arrastado em círculos por um jipe verde-oliva, a boca cuidadosamente presa ao cano de descarga do veículo, até morrer por asfixia, aos 25 anos, sob o olhar exultante de militares. Era junho de 1971.

Informada do que ocorrera ao filho por uma carta do militante político Alex Polari, também ele torturado nas dependências do mesmo quartel, Zuzu decidiu enfrentar os militares, denunciando o fato ao senador americano Edward Kennedy, que levaria a denúncia ao Congresso dos Estados Unidos.

Zuzu Angel era amiga de Chico Buarque de Holanda, a quem confiou a carta da qual extraio o trecho que segue: "Há dias recebi documento descrevendo pormenores das torturas e o assassinato de que foi vítima meu filho Stuart Jones, pelo governo militar brasileiro. Este documento está fora do país em mãos de um dos parentes americanos do meu filho mártir. Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho".

Exatos doze meses depois de entregar a carta a Chico Buarque de Holanda, a 14 de maio de 1976, na saída do túnel Dois Irmãos, no bairro carioca de São Conrado, o Karmann Ghia vermelho em que Zuzu Angel se deslocava a caminho de casa foi intencionalmente interceptado por um outro veículo em que se encontravam dois homens. Morreria no local, sem jamais poder dar um enterro digno ao filho. Um crime político idealizado e executado pelos golpistas de 1964.

Centenas, talvez milhares de brasileiros foram barbaramente torturados entre 1964 e 1985. Em números oficiais, há algo em torno de 460 mortos ou desaparecidos. Incontáveis eram os "órfãos de pais vivos, filhos do talvez ou do quem sabe", na impagável metáfora de Alencar Furtado.

Teatros foram fechados a golpes de baionetas e tiros de fuzil, artistas espancados, professores retirados de sala de aula com rostos ensanguentados, estudantes arrastados como trastes pelas ruas, mulheres violentadas em presença dos maridos e dos filhos, em nome de um nacionalismo fascista, sob a hipócrita defesa da "família, Deus, pátria e liberdade".

Presidente Lula, desta vez o senhor errou feio. Nós não vamos esquecer!

 

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Em agosto nos vemos

Lançado simultaneamente em mais de cinquenta países, "Em agosto nos vemos", romance póstumo de Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de Literatura de 1982, traz para os amantes de Gabo o raro prazer de rever em grande estilo o ficcionista morto em 2014.

Longe de pensar, no entanto, que o livro reedite o melhor do escritor colombiano. Antes pelo contrário, nada que faça lembrar a monumentalidade, por exemplo, do inigualável "Cem anos de solidão" (1967), nem mesmo o que se pensava ser o seu último livro, "Memórias de minhas putas tristes" (2004), cuja construção narrativa sustenta-se no que existe de mais marcante na prosa de ficção de Gabriel García Márquez: uma certa tendência para dispensar à linguagem um tratamento fundamentalmente poético, eivado de metáforas que emprestam ao texto a leveza e a opacidade incomuns para o convencional da prosa de ficção latino-americana. Sem falar, com maior clareza, do que é recorrente em livros de sua primeira fase, o realismo mágico ou fantástico, de que o clássico "Cem anos de solidão" é o maior exemplo, pelo uso de símbolos e metáforas ainda mais desconcertantes.

Não, "Em agosto nos vemos" é um romance menos pretensioso sob este aspecto, muito embora quase irretocável do ponto de vista formal --- uma narrativa leve, solta, sedutora, a que se soma um enredo original, mesmo em se tratando de uma história simples, plasmada na realidade factual, como o próprio García Márquez sempre fez questão de evidenciar sobre o conjunto de sua vasta obra: todo mês de agosto, Ana Magdalena Bach, a protagonista do livro, casada, com filhos, de meia-idade, viaja para uma ilha do Caribe em que a mãe está sepultada.

Mais que visitar o túmulo de sua genitora, porém, a viagem é a alternativa encontrada pela personagem para dar vazão à sua plena feminilidade, ao desejo sexual supostamente irrealizado, em casa, em toda a sua intensidade. O que poderia resultar bizarro, na linha de romances menos exigentes do ponto de vista literário, no livro de Gabriel García Márquez, publicado há poucas semanas, o leitor depara com um texto elegante, vazado numa linguagem nunca apelativa e extremamente bem cuidado na perspectiva de sua tessitura dramática.

Não é sem razão, portanto, que se pode dizer que Gabo escreveu um de seus livros mais humanos, sem jamais incorrer em divagações de cunho reflexivo que levem o leitor a criar expectativas punitivas para Magdalena Bach, emitindo juízos sobre o que o senso comum historicamente tende a condenar, sobretudo em se tratando da mulher.

Nesse sentido, insisto, é isenta a forma como o narrador expõe essas experiências "transgressoras" da personagem, atendo-se a contar com suavidade o que, a juízo vulgar, poderia soar grotesco, impuro, gratuitamente erótico.

Nada disso: as estratégias narrativas sobressaem no estilo inconfundível de García Márquez: há poesia, delicadeza, senso de medida na descrição das experiências objetivamente sexuais, recorrentes no desenrolar da história.

Não há defeitos, então? Há, e isso é visível já no primeiro capítulo do livro. A rapidez com que Ana Magdalena Bach se entrega ao primeiro caso extraconjugal, com um homem desconhecido, é quase inverossímil, implicando numa incorreção de natureza rítmica que a princípio causa ao leitor um estranhamento, e pode levá-lo (como a mim ocorreu) a antecipar incorretamente um juízo estético do livro. Isso, felizmente, se desfaz muito antes da metade da leitura (o romance tem 111 páginas) e a narrativa passa a se desenvolver num ritmo condizente com o desenrolar da tessitura dramática.

Sem cometer spoiler, espero, concluo reportando-me ao desfecho do romance, dos mais belos de toda a obra de García Márquez. Com economia de meios, e uma absoluta sensibilidade estética, constitui um momento sublime deste surpreendente "Em agosto nos vemos".

O parágrafo final é deslumbrante. Se o romance começa claudicante do ponto de vista narrativo, o final é obra de um mestre e toca fundo o coração do leitor. Recomendo.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sobre paixões e segredos

"Os corpos se entendem/mas as almas não/Se queres sentir a felicidade de amar,/esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor./Só em Deus ela pode encontrar satisfação./Não noutra alma./Só em Deus – ou fora do mundo./As almas são incomunicáveis./Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,/porque os corpos se entendem, mas as almas não." (Manuel Bandeira)                                                                                    

Leitora cruza comigo na rua e dispara: "Adorei a crônica sobre a paixão. Quero ler mais... (risos)". Poupando-me da obrigação, recomendo-lhe o livro "Paixões" (2005), da escritora espanhola Rosa Montero, autora do belíssimo "A louca da casa". Curiosa, a amiga não se contenta: "Fala do livro, vai!"

Estávamos na entrada de um banco, tendo pela frente uma fila bem brasileira... e o entusiasmo da amiga, além de tornar pública sua suposta paixão, fez-me lembrar a torcedora de famosa crônica de Nelson Rodrigues. Mas, sobre isso, escrevei dia desses. Voltemos a Montero.

Não é muito dizer que se trata da Martha Medeiros da Espanha, com a vantagem de ser autora de fôlego em livros mais pretensiosos literariamente falando. Entre esses, o celebrado "A boa sorte" (2020), sobre o qual escrevi aqui mesmo algum tempo atrás. São mais de sessenta livros, que vão do ensaio literário, a exemplo de "A louca da casa" ou o aclamado "O perigo de estar lúcida" (2023), para não falar do comovente "A ridícula ideia de nunca mais te ver" (2013), vertiginosa reflexão a respeito da morte a partir dos diários da física e química polonesa, naturalizada francesa, Marie Curie.

Rosa Montero começou a escrever como colunista de importantes jornais de Madri, e hoje assina, com exclusividade para o El País, crônicas que estão no cardápio de leitores do matutino espanhol como a famosa paella na mesa de casa. Seu romance de estreia, "Crônica do desamor" (1979), ensejou o comentário de ninguém menos que Mário Vargas llosa, para quem "sua prosa tensa e direta evita a grosseria e o fingimento". Desde então, Rosa Montero figura entre os nomes de peso da literatura espanhola.

Mas, o que me levou mesmo a falar dessa belíssima mulher? Ah, lembrei: "Paixões", o livro que recomendo à distinta leitora, supostamente apaixonada, é um apanhado de histórias envolvendo casais famosos, de Leon e Sônia Tolstói, Elizabeth da Áustria e o imperador Francisco José, passando pelo excêntrico John Lennon e Toko Ono, ao dramático Amadeo Modigliani e Jeanne Hébuterne. O mais curioso, o mais relevante, no entanto, é que o livro de Rosa Montero põe por terra o mito do amor perfeito. Por se tratar de casais célebres, a reflexão em torno do tema eterno ganha uma dimensão nova, e serve como fio condutor de novos debates. Como diria Caetano, "de perto, ninguém é normal". Uma beleza.

Aliás, já na introdução a autora arrisca uma generalização inquietante: "É que todos somos tentados a acreditar que o próximo é capaz de viver a plenitude que sempre se esquiva de nós mesmos: o amor absoluto, a felicidade completa". Bingo. Acho que no mundo midiático em que vivemos, somos condenados a projetar nos outros algumas de nossas mais caras fantasias, enamoramentos, paixões. Ahhh, suspiramos, Diogo Nogueira e Paolla de Oliveira, que bonitinhos!" E esquecemo-nos de nós, incorrendo num bovarysmo pequeno-bruguês. Para o grande público, sonhadores da felicidade alheia, existem os reality shows da vida, o BBB, a subliteratura que apinha as gôndolas de livrarias.

Delicioso, o livro de Rosa Montero pode levar, contudo, a leituras equivocadas, uma vez que, é a proposta da escritora, os casais, na sua totalidade, viveram experiências desajustadas, muitos deles doentios, trágicos. É que discorrer sobre a paixão, diz ela, "é nomear o caos". É aí que o livro traz uma ponderação inquietante: "A essência do passional é a alienação que produz: o apaixonado sai de si mesmo, e se perde no outro, ou, melhor dizendo, naquilo que imagina ser o outro". Nessa perspectiva, dizia Catão que a alma de quem ama habita o corpo alheio.

Seja como for, "Paixões" é um livro maravilhoso. Se se volta para o que houve de mais doloroso na intimidade desses casais, o que, como disse, pode refletir um certo negativismo, um olhar muito pessimista sobre o amor, que é mesmo a razão de nossas vidas, é que Rosa Montero, ecoando o clássico "História do amor no Ocidente", de Denis de Rougemont, está atenta para o fato de que "em toda história do amor, mesmo nas mais realizadas e felizes, há sempre um ingrediente de tristeza, o sentimento inexorável da perda".

Mas, para não desapontar a leitora, se é verdade que esta sensação mágica pode acabar um dia, quem sabe nascerá disso uma outra dimensão do mesmo sentimento, algo próximo de uma bela amizade, de um tipo de companheirismo que nos faz bem, uma cumplicidade encantadora. Sem prescindir, necessariamente, do sexo gostoso e gratuito, ingrediente indispensável para manter acesa a última chama.

Parabéns, mulheres!

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Pra não dizer que não falei de flores

"Caminhando e cantando e seguindo a canção/Somos todos iguais/Braços dados ou não/Nas escolas, nas ruas, campos, construções/Caminhando e cantando e seguindo a canção".

Era 1968, auge dos tenebrosos acontecimentos advindos do Golpe Militar de 1964. Nos quartéis, os mesmos a que Geraldo Vandré faz referência mais adiante, na belíssima "Pra não dizer que não falei de flores", estudantes, intelectuais, artistas e trabalhadores eram perversamente torturados.

Muitos deles, depois de devastados a golpes de cacetete, sufocados dentro de sacos plásticos ou dependurados como frangos em assadeiras de bares ("pau de arara", na linguagem dos torturadores), sem esquecer os choques elétricos em partes íntimas ou a partir da cabeça e membros, a terrível "cadeira do dragão", ainda agonizantes ou mortos, eram atirados de helicópteros em alto-mar.

Os versos de abertura do poema, como se vê, amparando-se dominantemente em verbos no gerúndio, "caminhando e cantando", constituem um apelo à união de todos (estudantes, populares, trabalhadores do campo e da construção civil etc.) contra o regime de terror.

Do ponto de vista exegético, todavia, tanto quanto a função apelativa que se pode visualizar de forma mais explícita, o poeta refere-se sub-repticiamente à confiança na possibilidade de transformação da realidade brutal, quase inumana, imposta a baionetas e mecanismos impensáveis de tortura física e psicológica pelos militares golpistas: lutando ao som de hinos revolucionários, cantando portanto, subentende-se que a luta não será em vão, e que a sociedade livre e justa há de ser construída com a participação de todos. Tal "convocação" se intensifica no estribilho, repetido à exaustão na letra da música, pelo uso estilizado do imperativo "vem".

"Vem, vamos embora/Que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora/Não espera acontecer".

O poeta refere-se à consciência de que o país vivia dias de chumbo: congresso fechado, atos institucionais que cerceavam as liberdades políticas, mortos e desaparecidos jamais contados com exatidão, exílio imposto a centenas de brasileiros impedidos de pensar e expressar sua indignação em face da realidade do país --- tudo debaixo de ordens saídas dos quarteis ---, ordens que culminariam no AI5, promulgado no mesmo ano em que "Para não dizer que não falei de flores" era defendida por Vandré no Festival Internacional da Canção.

No título, o substantivo "flores", ironicamente usado, pois que ao final o eu lírico reporta-se à necessidade de colocá-las no chão, remete ao ideário hippie de paz e amor, o "flower power" popularizado no semiótico gesto de erguer o indicador e o dedo médio em V de vitória, a bela utopia de jovens do mundo inteiro, nomeadamente das cidades grandes.

Oportuno lembrar, por exemplo, que em maio de 1968 Paris seria o epicentro do mais famigerado movimento de contestação contra o autoritarismo dos poderes constituídos.

"Há soldados armados/Amados ou não/Quase sempre perdidos de armas na mão/Nos quarteis lhes ensinam uma antiga lição/De morrer pela pátria/E viver sem razão".

A alusão aos militares como promotores dos horrores que assolavam o país, a esta altura é incontrastável, muito embora, aos olhos do poeta, reste a atenuante de que os soldados, não os fardados de alta patente, mas instrumentos da prática autoritária do golpismo de 1964, muitas vezes agiam como seres descerebrados, "perdidos de armas na mão", a serviço do regime de exceção como vítimas indiretas, matadores de si mesmos. O gado dos dias de hoje.

O fecho poético, emblematicamente vazado numa linguagem de recorte referencial, como a deslizar da conotação para a denotação, num tipo de objetivação que ressalta o utópico como possibilidade de superação das forças inimigas, é obra-prima do cancioneiro popular, poesia capaz de ganhar o status de grande literatura, independentemente da música que lhe serve de suporte, ela mesma inferior ao poema como objeto estético, muito embora linda em sua simplicidade rigorosamente melódica: "A certeza na frente/A história na mão/Caminhando e cantando/E seguindo a canção/Aprendendo e ensinando uma nova lição".

Elevada à condição de hino da esquerda brasileira, e voz de resistência dos estudantes de diferentes níveis, "Caminhando" (como se tornaria conhecida a canção de Geraldo Vandré), é algo eticamente intransferível como manifesto artístico e político.

Em sua dimensão meramente estética, fazendo valer um pressuposto filosófico de toda e qualquer expressão artística, pode ser ouvida e cantada aos quatro cantos do Brasil. Nunca por aqueles que, por ignorância intelectual ou oportunismo inescrupuloso, a utilizam na contramão de sua razão de ser. É inversão de sentido, é apropriação indébita, é crime, ao lado de ser desfaçatez.

O poema, entre tantas metáforas carregadas de sugestões, é um tipo de homenagem respeitosa às vítimas do regime militar, um afago no coração em sangue de seus familiares.

Usá-lo em ato público que propõe um golpe de Estado, que exalta tortura e torturadores, que professa amor à ditadura, que se insinua contra o voto popular e espezinha com pés sujos a democracia, é como uma pilhéria de mau gosto, não fosse antes de tudo um crime contra os valores fundamentais da sociedade ordeira e da própria Arte.

O toque de um berrante lhes caberia melhor.

 

 

 

 

 

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domingo, 25 de fevereiro de 2024

Faroestes de minha adoração, a pedido

 Da Academia Cearense de Cinema:
                          
(O cinema não se mede. Não tem passado e nem futuro. VINICIUS DE MORAES)

  1. Era uma vez no Oeste (Sérgio Leone, 1968)
  2. Três homens em conflito (Sérgio Leone, 1966)
  3. Os imperdoáveis (Clint Eastwood, 1992)
  4. A face oculta (Marlon Brando, 1961)
  5. Os brutos também amam (George Stevens, 1953)
  6. Bravura indômita (Ethan e Joel Coen, 1969)
  7. Sete homens e um destino (John Sturges, 1960)
  8. Rio Vermelho (Haward Hawks, 1948)
  9. Paixão dos fortes (John Ford, 1946)
  10. El Dorado (Howard Hawks, 1966)

Meu prezado amigo Magno,
Que cruel é fixar 10 faroestes e escolhê-los como os melhores, dentre tantos que, ao longo do tempo, foram conquistando nossas preferências e despertando nosso fascínio por uma arte a um só tempo tão simples e tão complexa, pelo número de códigos estéticos de que lança mão para realizar beleza, e, sobretudo, pelo que possui de sedutor e envolvente em sentidos (visão, audição etc.). Assumo que, dentre os filmes que aponto em relação acima, alguns aí estão menos por suas reais qualidades cinematográficas e mais por empatia do menino que ressurge dentro de nós cada vez que nos sentamos diante da tevê para revê-los. Mesmo assim, devo dar realce ao fato de que sou, em termos estéticos, um "formalista", entendendo-se por isso a atenção que desde muito cedo dedico aos procedimentos processuais na construção do filme: montagem, composição da imagem, luz e som, movimentos e angulação de câmera (travelling, panorâmica, câmera subjetiva etc.) ritmo narrativo etc. Mise-en-scène. Em minha defesa, por certo, ocorre-me a afirmação não contrariada até hoje: Arte é forma, antes de qualquer outra coisa. É isso que me leva a considerar Sérgio Leone o maior esteta do gênero. A propósito, é o primeiro de minha relação, cuja sequência de abertura (algo em torno de sete minutos), incontáveis vezes utilizei em minhas aulas de Estética do Cinema, na Universidade. É lição sobre recursos da linguagem cinematográfica, concepção aguçada da força composicional do quadro, planos (ora abertos, ora fechados) a ditar a tensão dramática do enredo, maneirismo, enfim, na escolha das estratégias narrativas... Tudo ao lado de ser um filme despretensioso, um tipo de homenagem aos diretores que lhe exerceram (sobre ele, Leone) alguma influência. Não é muito dizer, a essa altura, que é um filme feito de "citações" de outros filmes, e, por isso mesmo, alusão aos monstros do western que o antecederam. Por último, sinto-me um tipo de cinéfilo injusto e traiçoeiro, afinal, como deixar de fora Raoul Walsh, Anthony Mann, Joseph Lewis (cuja sequência do duelo em "Reinado do Terror" ainda é capaz de me tirar o fôlego?). E Budd Boetticher, Jacques Tourneur ou mesmo Tarantino?  Desculpe ter "dito" duas palavras, quando você recomendava apenas a indicação dos "melhores" faroestes. Doses letais de subjetivação. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Viagem a Londres

Depois de duas ou três semanas em Paris, fomos à cidade portuária de Calais, onde apanhamos um ferryboat com destino à Inglaterra. Não havia, à época, o Eurotúnel, e a travessia do Canal da Mancha era feita necessariamente de navio.

 

Viajamos por toda a noite, chegando à Inglaterra numa manhã demasiadamente fria. Mas estávamos bem-dispostos, o navio era extremamente confortável e pudemos dormir bem durante todo o trajeto. São navios grandes, com boate, cassino, bares e restaurantes. As cabines oferecem conforto e proporcionam sensação de bem-estar.

De Dover, onde desembarco, vou de ônibus até Londres. Estou ansioso por conhecer esta cidade tão rica em cultura, seus museus, seus concertos gratuitos em praças e logradouros. À época, como estudasse a língua inglesa, comunicava-me com alguma desenvoltura, mas, foram bastantes os primeiros minutos em território britânico para me convencer de que era péssimo o meu inglês. São grandes as diferenças de pronúncia e léxico, mas, sobretudo, é diferente o ritmo da fala, bem mais rápido que o americano. Por sorte, C., que me acompanha nesse tour por países da Europa, fala fluentemente o inglês e assume o papel de porta-voz do casal.

 

Aqui, muito mais que noutras cidades do continente, que vimos visitando há dias, a nosso favor existe nos jornais e revistas farta informação sobre eventos, shows, espetáculos de teatro e dança, e, claro, com riqueza de detalhes, quase tudo sobre os principais pontos turísticos da cidade  --- com a vantagem, sobre os guias tradicionais, de serem atualizadas as informações.

Agora, estamos diante de uma escultura de Auguste Rodin, no Parlamento Inglês. É a obra Burgueses de Calais. Em Paris, havíamos conhecido algumas de suas principais realizações escultóricas, como O pensador e a particularmente bela O beijo. Deslumbra-nos o realismo que emana da escultura, impressionam-nos a força e a criatividade desse grande artista.

 

Um dos destaques da arte impressionista, Rodin transformou a concepção dominante entre os escultores de sua época. O inacabado intencional de suas obras nos envolve e seduz, é algo provocativo, sugestivo e instigante.

 

Atravessamos a pé a Ponte de Londres, uma das muitas que cruzam o Tâmisa. À frente, vê-se o imponente edifício do Parlamento, com seu estilo romântico ainda marcado por um aroma neoclássico. À nossa direita, a Tower Bridge, a ponte báscula construída em fins do século XIX e um dos mais famosos cartões postais do Reino Unido.

C. e eu apanhamos um barco para um passeio inesquecível pelo "River Thames", como diz, orgulhoso, com a voz um tanto encatarroada, o barqueiro que nos conduz nessa tarde londrina repleta de poesia e encanto.

 

Como custasse caro contratar um guia particular, o que é um jeitinho bem brasileiro de aproveitar as oportunidades, a exemplo do que vimos fazendo desde a França, de onde partimos, aguçamos os ouvidos a fim de escutar o que diz a um grupo de turistas o jovem cicerone, com seu inglês intencionalmente pausado e, tanto quanto possível, fácil de entender.

Comenta que a Tower Bridge, sob a qual passa o barco em que estamos, neste instante, tem inspiração escocesa, lembrando, por isso, os fortes medievais da Escócia. A ponte levadiça se separa em metades iguais por força de um mecanismo hidráulico movido a água pressurizada.

Inaugurada por volta de 1894, 95, a Tower Bridge, Ponte da Torre, em português, tem a rigor duas majestosas torres, as quais se alçam ao céu de Londres, arrogantes, dando a ver a sua augusta autoridade de símbolo desta cidade a um tempo imponente e encantadora.

 

 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Deus e o Diabo na Terra do Sol, 60 anos

 

A estética da fome faz da fraqueza a sua força, transforma em ato de linguagem o que é dado técnico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir da própria prática. Ismail Xavier, Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome.

 

No livro "Duas formações, uma história – das ideias fora de lugar ao perspectivismo ameríndio" (Editora Arquipélago, 2021), o crítico literário e professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, retoma com brilhantismo uma antiga discussão em torno do que se pode definir como 'formação da literatura brasileira', tema, como sugere o próprio título da obra, explorado em trabalhos clássicos de autores importantes, a exemplo de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Mas é preciso destacar que Fischer o faz em nova chave, empenhando-se, com sucesso, em colocar o assunto pesquisado numa perspectiva mais bem delimitada do ponto vista geográfico e espacial, o que acrescenta positivamente ao debate, e ressignifica aspectos fundamentais dos autores aqui citados.

Somando-se a tantas outras tentativas de mapeamento da prosa de ficção brasileira, para Fischer existem duas grandes regiões literárias no Brasil: a primeira, da "plantation", assentada em relações produtivas marcadas pela escravidão ou resquícios dela, e o indisfarçável compromisso com o exterior, calcada numa política de exportação, que teve o Rio de Janeiro como centro. A outra, do "sertão", voltada para o mercado interno. Fischer conclui que a literatura brasileira, assim, é veículo de expressão dessas duas regiões, sendo seus maiores representantes, respectivamente, Machado de Assis e Guimarães Rosa.

É preciso evidenciar, contudo, que tais tentativas de mapeamento incorrem em assumidas imprecisões, e constituem tentativas de contribuição para uma discussão complexa e ainda inconclusa, com possibilidades de exame que vão muito além do campo estritamente literário. Sob este aspecto, aliás, o próprio Luís Augusto Fischer ressalta, à página 23 da primeira edição, com a qual trabalho, que outros discursos comportam a mesma abordagem, como a admitir de cara limpa que sua tese se estende para outras linguagens, outras formas de expressão; o cinema, por exemplo, matéria que nos interessa diretamente no presente artigo, tomando por base o filme "Deus e o diabo na terra do sol", cujos sessenta anos desde o seu lançamento, em inícios de 1964, comemora-se neste começo de ano.

A princípio, todavia, é necessário que se coloque a obra-prima de Glauber Rocha no conjunto das produções cinematográficas do que se convencionou chamar de Cinema Novo, cujo domínio histórico, como ocorreu ao Neorrealismo italiano e à Nouvelle Vague francesa, seria relativamente curto: uma primeira fase de 1960 a 1964; uma segunda fase de 1964 a 1968, e uma terceira e última fase de 1968 a 1972, aproximadamente.

Mas, concisamente e em termos claros, o que propunha o Cinema Novo? Em que circunstâncias foi gerado? Que cineastas estiveram diretamente ligados ao movimento? O que teria motivado o seu surgimento?

A primeira manifestação desse sentimento estético, ainda de forma embrionária, e já dialética, deve-se associar ao I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro, em 1952, quando cineastas e candidatos a cineastas levaram a efeito uma discussão sobre a realidade do cinema brasileiro, suas dificuldades, falta de incentivo, inexistência de recursos e incômoda falta de originalidade, quase sempre limitado aos padrões formais do cinema norte-americano. À essa altura, é inegável que, ao propor uma revisão do incipiente cinema brasileiro, esses jovens realizadores teriam se voltado para o Neorrealismo italiano e, em escala maior, para as discussões de que nasceria pouco depois a Nouvelle Vague francesa. Fizeram-no, contudo, não para alimentar as influências sofridas, à essa altura, inegáveis, mas para tomá-las como referências de estéticas a serem superadas quase na mesma proporção da narrativa norte-americana.

Três anos depois, em 1955, portanto, Nelson Pereira dos Santos lançaria aquele que se pode considerar o primeiro filme do Cinema Novo, o inquietante "Rio 40 graus". Construído em bases estéticas simples, numa narrativa estranha para os padrões dominantes, com personagens extraídos da periferia da cidade grande, o filme expõe as contradições de uma sociedade desigual e profundamente injusta. Esse, pois, seria o pontapé inicial de uma sequência significativa de filmes identificados com o espírito cinemanovista, com destaque para "Vidas Secas" (1963), Nelson Pereira dos Santos, "Os Fuzis" (1963), Ruy Guerra, e "Deus e o diabo na terra do sol" (1964), Glauber Rocha.

Vê-se, com efeito, mesmo num recorte assim rápido e conciso, que o Cinema Novo transita entre duas regiões, na linha do que propõe Luís Augusto Fischer a partir do processo formador da literatura brasileira. Com a vantagem, ressalte-se, de ser o filme de Glauber aqui focalizado, uma consciente busca de unificação de polos profundamente desiguais, de que a sequência final de "Deus e o diabo" é a metáfora mais cristalina. Utopia ou licença poética? Talvez uma e outra. Mas tudo, é necessário frisar, a exemplo do que veremos adiante, realizado sem jamais perder de vista a problemática do subdesenvolvimento nacional (tema tão caro a Glauber Rocha), ressaltada na presença marcante de personagens tirados da zona rural ou da periferia dos grandes centros, invariavelmente submetidos às miseráveis regras do capitalismo mais primitivo, em diferentes níveis e dimensões.

O próprio Glauber, em seu primeiro longa-metragem, "Barravento" (1962), já ambientara o enredo no litoral baiano, focalizando, com uma estética original e autenticamente brasileira, a dura realidade dos pescadores e suas famílias no litoral baiano, a "plantation" de que nos fala Fischer no seu livro notável.

Em "Deus e o diabo na terra do sol", Glauber Rocha vai trabalhar sua câmera e produzir imagens estonteantes a partir da memória cultural nordestina, palmilhando o espaço árido e improdutivo de sua geografia a um só tempo bela e profundamente desumana. É nesse cenário tensamente dialetizado, numa luz de alto contraste, onde se cruzam a ingenuidade inata de um povo e a mais abjeta violência de um modelo social injusto, pelo qual transitam as personagens do filme, também ele, intencionalmente violento como forma de expressão artística. Importante lembrar que Glauber traçara as linhas gerais de sua estética a partir da fome e da violência como elementos centrais de sua cinematografia. Ali, a religiosidade utópica do Beato Sebastião, alusão a um certo Antonio Conselheiro, líder do arraial de Canudos; aqui, a força bruta do cangaço como forma de resistência à miséria do país durante o Estado Novo. Alternam-se na cinematografia nacional, a exemplo do que se observa na literatura, o processo de formação examinado por Luís Augusto Fischer: a "plantation" e o "sertão", antagonismo exemplarmente metaforizado no plano-sequência final de "Deus e o diabo", como a confirmar a prédica do Beato Sebastião. Num travelling desconcertante e carregado de simbolismo, a câmera de Glauber, tendo como fundo a música de Sergio Ricardo (a letra de Glauber tem como estribilho "o sertão vai virar mar e o mar virar sertão") acompanha a corrida insana de Manuel, da terra calcinada e infértil, para as águas do oceano Atlântico. A poesia cinematográfica de um gênio atingindo níveis poucas vezes verificado na história do cinema brasileiro, numa citação assumida de "Os incompreendidos" (Les quatre cents coups, 1959), primeiro longa-metragem de François Truffaut, e verdadeiro ícone da Nouvelle Vague francesa.

A essa altura, é oportuno que se diga ser o mar um elemento semiótico recorrente na filmografia de Glauber Rocha: na abertura de "Terra e transe" (1967), por exemplo, agora pelo viés pós-utópico, contrário ao caráter simbólico-revolucionário do filme anterior, a câmera registra demoradamente um mar exuberante, prateado, a um tempo belo e ameaçador, até apresentar em plano aproximado o nome "Eldorado" e os espaços prostituídos de uma festa burguesa regada a sexo e delírio. Sob o som extradiegético do jazz, que se confunde com vozes incompreensíveis, o líder populista Vieira (José Lewgoy) prepara o discurso de renúncia. Como numa continuidade de "Deus e o diabo", o plano-sequência de abertura do filme sugere a desconstrução da utopia glauberiana, como a revelar as ciclotomias do pensamento crítico do autor, figura central de um debate, ainda presente nos dias atuais, no contexto de um país dividido, em torno da coerência ideológica entre os grandes artistas brasileiros. Sob este aspecto, o próprio Glauber viria a declarar: "a obsessão fundamental do sertanejo é ver o mar [...] eu peguei o símbolo e usei isso dentro do filme". Na contramão da utopia da sequência final de "Deus e o diabo na terra do sol", o discurso fílmico pós-utópico de "Terra em transe" realiza um movimento ideológico que expõe as incertezas de Glauber Rocha sobre o futuro do país, suas contradições e a desiludida interpretação do nosso destino como nação.

A genealogia glauberiana do mar, cujas raízes remontam a Peixoto e Humberto Mauro, tornar-se-ia recorrente em filmes brasileiros a partir de então. Mas isso demanda um outro estudo e vai além dos objetivos perseguidos neste artigo, bem como da extensão que me foi proposta para o mesmo.

Como a confirmar a tese defendida por Luís Augusto Fischer, na perspectiva da literatura, é possível concluir que a mesma dicotomia – mar-sertão – pode ser identificada no cinema brasileiro dos anos 50 e 60, num momento histórico em que se manifestam as diretrizes estéticas fundadoras da nacionalidade cinematográfica no Brasil. Isso não significa dizer, no entanto, que se fechem olhos para o que houve de mais significativo antes disso: Mário Peixoto, Humberto Mauro e Alberto Cavalcanti, sob diferentes aspectos e em medidas diversas, não podem ser ignorados. A vocação poética do primeiro, por exemplo, terá exercido grande influência sobre a concepção narrativa de Glauber, o que, com maior atenção, se pode ver no incontornável "Deus e o diabo na terra do sol", obra de que trataremos sucintamente no comentário que se segue.

Deus e o diabo na terra do sol

Sessenta anos desde o seu lançamento, uma das obras-primas do Cinema Novo (re)insere-se no grande debate sobre o Brasil cindido, como a renascer das cinzas para lançar luz sobre as relações de dominação do homem pelo homem, o fundamentalismo religioso como fator de doutrinação social e política e o surgimento de "mitos salvadores", bem na linha do que se vê hoje no Brasil e alguns outros países do Hemisfério Sul.

Assentado em bases teóricas professadas em livro clássico sobre a cinematografia nacional, "Revisão crítica do cinema brasileiro", 1963, do próprio Glauber Rocha, "Deus e o diabo na terra do sol" logo se tornaria uma espécie de marca do chamado Cinema Novo, quer pela denúncia dos problemas sociais e políticos do país, uma de suas características mais relevantes do ponto de vista "semântico", quer pela estética fílmica propriamente dita: "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", como apregoavam seus realizadores mais representativos, tornar-se-ia um dos slogans da nova estética.

A arte suscitando o debate em torno de nossas mais dolorosas contradições, era este o objetivo a ser perseguido no que Glauber Rocha definiria como a "estética da fome". A teoria, todavia, há que ser vista em sua íntima dualidade: a fome e a miséria abordadas com os parcos recursos do cinema nacional. Numa palavra: uma cinematografia desprovida de qualquer sofisticação formal, sem prejuízo de sua beleza visual descarnada e cortante, que desse a ver as raízes das desigualdades e suas consequências no modo de vida de segmentos numerosos da sociedade.

Aqui faço um parêntese para recomendar a leitura (ou releitura) do incontornável livro de Ismail Xavier, "Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome", em que se examina amiúde e exemplarmente bem a política de um estilo, o caráter histórico dos elementos formais da cinematografia glauberiana e o sentido político de sua mise-en-scène.

Não sem razão, pois, é que esse jeito de fazer cinema a partir de recursos mínimos, resultaria num tipo de estética fílmica aparentemente desleixada: imagem trêmula, enquadramentos transgressores, iluminação precária (não raro com a luz estourada, como em "Vidas Secas" e no próprio "Deus e o diabo"), entre outros procedimentos estranhos às estratégias narrativas do cinema clássico, são escolhas conscientes dos cineastas do Cinema Novo, e a isso, contraditoriamente, se deve em grande medida a boa acolhida, lá fora, dos filmes por eles produzidos.

Sob este aspecto, por oportuno, é de Glauber Rocha, visando a explicar a vocação estética de sua cinematografia, o seguinte comentário: "Nós compreendemos essa fome que o europeu e o brasileiro em sua maioria não entende (sic). Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional [...] Sabemos nós – que fizemos esses filmes feios e tristes, esses filmes gritados e desesperados em que nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelo planejamento de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente; e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência".

Urge ressaltar, no entanto, que "Deus e o diabo na terra do sol", em que pese a sua reconhecida originalidade em termos estilísticos e formais, fincara suas balizas estéticas no regionalismo literário dos anos 1930, a chamada segunda fase do modernismo brasileiro, dentro de cujos limites figuravam nomes de peso, a exemplo de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, para ficar em dois de seus maiores representantes. O romance "Cangaceiros"(1956), do escritor paraibano, era exaltado por Glauber Rocha como obra de aguçada compreensão da realidade nordestina, bem como o livro-monumento de Euclides da Cunha, "Os Sertões" (1902), em que avulta a figura messiânica de Antonio Conselheiro -- no filme, o Beato Sebastião, e sua profética inversão da ordem natural do mundo: "O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão".

Bem arquitetado, no entanto, em sua intrincada tessitura dramática, "Deus e o diabo..." revela o doloroso processo de sociabilização do país, tendo como cenário o sertão nordestino, a terra calcinada e infértil por onde se espraia a quase indizível miséria e realidade de um povo. É desse ambiente de profunda desolação que Glauber Rocha extrai a matéria com que realiza esta verdadeira obra-prima, ombreando-se ao Lima Barreto do aclamado "O cangaceiro" (1953) dos tempos da Vera Cruz. Raras vezes, como destacou Laurent Dubois, "a folia antropomórfica dos elementos encolerizados contra o humano será representada na tela de maneira tão intensa e bela".

Não à toa, pois, é que seu nome ganharia dimensão internacional, e seu filme acolhido na Europa como exemplo de um novo cinema, isento da influência quase incontornável de um fazer cinematográfico sofisticado e banal, a exemplo de certa porção das produções hollywoodianas de que nem mesmo a Nouvelle Vague, de François Truffaut e Godard, fora capaz de libertar-se por completo. Isto, por si só, é suficiente para dar aos amantes da sétima arte -- e a uma crítica servil aos interesses do capitalismo --, uma ideia do que representa para o Brasil, em termos culturais e artísticos, "Deus e o diabo na terra do sol".

Narrativa épica ainda insuperada em qualidades estéticas, o agora sexagenário filme de Glauber Rocha pode ser revisto em plataformas do streaming (Globoplay, por exemplo), ofertando-se aos olhos do cinéfilo brasileiro como instrumento de reflexão sobre um país marcado por antagonismos aparentemente insuperáveis, e, coisa impensável para os tempos pós-modernos, ainda em grande parte doutrinado pelo ódio, pela violência, pelo fanatismo e inqualificável cegueira intelectual e política.

Ficha técnica

Ano de produção 1964. Duração: 125 minutos. Direção: Glauber Rocha. Produção: Luiz Augusto Mendes, Jarbas Barbosa, Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. Fotografia: Waldemar Lima. Montagem: Glauber Rocha, Rafael Justo Valverde. Trilha sonora: Sérgio Ricardo, Glauber Rocha. Direção de arte: Paulo Gil Soares. Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle, Lídio Silva.

 

Nota sobre os textos referidos

Duas formações, das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio. De Luís Augusto Fischer, Porto Alegre, Editora Arquipélago, 2021.

Mar Sertão: Glauber Rocha e a estética da fome. De Ismail Xavier, São Paulo, Duas Cidades Editora 34, 2019.

Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. De Antonio Candido, Belo Horizonte, Itatiaia, 1975.

As ideias fora do lugar. De Roberto Schwarz, em Roberto Schwarz Essencial, São Paulo, Editora Penguin-Companhia das Letras, 2023.

A odisseia do cinema brasileiro. De Laurent Dubois, São Paulo, Companhia das Letras, 2016.

Revolução do Cinema Novo. De Glauber Rocha, São Paulo, Cosac-Naify, 2004.

A utopia no cinema brasileiro. De Lúcia Nagib, São Paulo, Cosac-Naify, 2006.