quinta-feira, 18 de abril de 2024

Ainda sobre a saudade

Ao mergulhar na xícara de chá o tradicional bolinho madeleine, antes de levá-lo à boca, recuperando o cheiro gostoso da iguaria em sua infância, na cidade de Combray, o protagonista de Em busca do tempo perdido inicia a experiência milagrosa de recuperar o passado longínquo, resgatando a sua história feita de amores, ciúmes, alegrias, sofrimentos e do prazeroso encontro com a arte, compondo, assim, a identidade do narrador adulto desse livro-monumento de Marcel Proust.

Acho que todo homem, cedo ou tarde, vive uma experiência semelhante, quase sempre quando a memória de sua vida vai se esgarçando com o passar do tempo, e suas lembranças perdendo-se entre a névoa do envelhecimento que se anuncia. É quando percebe que a vida de todos nós é feita de passado, que o que chamamos de futuro é algo improvável, que sequer sabemos se um dia vai acontecer, tornando-se uma realidade.

"Quem vive de passado é museu!" Quem nunca terá escutado o tolo chavão? E, no entanto, nem se percebe que, concluída a afirmação, isso já é passado, única possibilidade de ordem factual. Está na Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel: – "O agora já deixou de sê-lo quando é nomeado, já é passado."

Desde cedo, por curioso, seduziram-me as obras que tratam da vida pretérita, biografias, autobiografias, memórias. Fascina-me o desabrochar das lembranças, o trazer à mente aquilo que se viveu, os amores, os lugares em que se esteve, os perfumes e as sonoridades, as emoções que um dia tomaram conta de nós.

Tenho o hábito de ler esses escritos. Lembro-me como foi uma experiência impactante ler o livro de Proust, ora referido. Ou Minha formação, de Joaquim Nabuco; Navegação de cabotagem, de Jorge Amado; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; Tempo morto e outros tempos, de Gilberto Freyre; Meu último suspiro, de Luis Buñuel; A soma dos dias, de Isabel Allende; Minha vida na arte, de Constantin Stanislávski; A menina do sobrado, de Cyro dos Anjos; Confesso que vivi, de Pablo Neruda; Minha vida, de Hermann Hesse e, um livro diferente no gênero, Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Gustav Jung, para falar dos que me ocorrem enquanto escrevo estas linhas.

Sem pruridos, porque inteirado do que isso é, sou um saudosista assumido. Toca-me a etimologia do verbo recordar, do latim recordari, re = novamente + cord = coração, ou seja, trazer de volta ao coração.

Sou um proustiano convicto. Provocam-me sensações incomunicáveis o cheiro inesperado de um perfume, a audição de uma música antiga, o sabor de uma comida há muito tempo experimentada.

Sobre a saudade escreveram-se os mais belos versos, foram ditas as palavras mais tocantes, viveram-se as emoções mais sinceras, as mais doces ou mais doídas. Intraduzível, porque tão nossa, tão própria da língua que falamos, na intensidade de sua íntima potência, a palavra 'saudade' desprende-se da referencialidade do dicionário, e da prosa, a fim de comunicar esse sentimento nunca transferido em sua real grandeza. De Chico Buarque, talvez nenhum outro poema tenha podido dizer com mais força e mais sentido, mais beleza e profundidade emotiva que Pedaço de mim: "A saudade é o revés de um parto./A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

A chuva, que vejo agora cair do céu, pelo vidro da janela; o céu plúmbeo de um entardecer; o cheiro doce da terra molhada; os traços de um rosto; um simples gesto de alguém que passa; um movimento de mãos; o inconfundível aroma de um perfume; a música que enternece, e eis o passado de volta, fazendo-se presente, este "isto impossível" de que nos falou Jacques Derrida.



3 comentários:

  1. Amigo escritor de prosa eminentemente poética, você resgata os mais ternos, doces e perturbadores sentimentos do vocábulo saudade que nos remete também ao insondável mistério dos relacionamentos humanos. Como é gostoso acompanhá-lo nesse mergulho em busca do que ainda não foi dito sobre a lembrança/presença do que amamos e se foi mas teima em agarrar-se a nossos tecidos. Obrigada pelo belo texto. Biscoito, música, perfume, ilusão estética, um roçar de verdade ou imaginário, a saudade nos compõe. Como lembra Ataulfo (?) "É você que me faz adormecer pra que eu viva em paz", como na canção Nunca, imortalizada pelo sax de Paulo Moura.

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  2. Assumo que também sou um saudosista que, paradoxalmente, não me deixo levar por saudades, cuja definição não cabe em minhas experiências. Também não me apagarei a convicções ralas de que é uma palavra existente apenas em nosso vernáculo. Contudo, Chico Buarque consegue me fazer restaurar meus conceitos porque, talvez, não os tenha sentido.

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  3. O passado? Uma faca de dois gumes.Afiadíssima.Não o busco nem o cultivo, até mesmo porque ele se faz presente, inflexivelmente, inarredavelmente.Prefiro esforçar- me para criar, incessantemente,novas vivências Que um serão também, passado Esta percepção de acurada sensibilidade poética é, todavia, envolvente e tocante A magia, de quem realmente sabe sentir e escrever.

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