quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Tem a frescura, falta a classe

Do cantor e radialista Beu Paulino, por telefone, vem a informação: - "Foi boa a repercussão da sua crônica sobre Paula Fernandes. O texto expressa o sentimento que ficou entre nós sobre ela." Daqui, de Fortaleza, e de outras cidades, recebo e-mails que se reportam ao mau comportamento da jovem cantora a cada show que faz Brasil afora. De Piracicaba, por exemplo, leitora faz ecoar a afirmação de que se trata de uma pessoa arrogante e mal-educada: - "Aqui [em Piracicaba] foi extremamente antipática com o público."

Fico pensando o que faz uma pessoa famosa agir assim. Entre os nomes de peso, João Gilberto é um dos casos mais conhecidos: não raro exige palcos especiais para suas apresentações. E não estou falando de palcos com as condições ideais para um artista da sua importância se apresentar. Refiro-me aos palcos de acrílico que exige vez e outra. É comum parar o show para que se desligue um aparelho de ar condicionado ou seja retirado do auditório um espectador menos contido -- que o aplauda com mais entusiasmo, por exemplo. Mas aí são excentricidades de um gênio que o show business parece ter assimilado.

Engraçado mesmo eram as loucuras de Tim Maia. O livro de Nelson Mota traz o que se conhece de mais curioso sobre o cantor, leitura que recomendo para o fim de semana dos que apreciam coisas do gênero. De minha parte, não conheço nada mais inacreditável do que vi certa vez no Teatro José de Alencar. Era uma peça com o ator Dolabella, Eduardo Dolabella (o pai), que sentindo-se incomodado com o som de uma pregação religiosa nas imediações do teatro, desceu do palco, atravessou correndo o auditório e, em meio à multidão que ouvia o evangélico, atirou para o alto a caixa de som do coitado e lhe bateu na cabeça seguidas vezes com o microfone. Um horror.

Entre os políticos, mesmo os tupiniquins, há os boçais tipo Tasso Jereissati, que costuma levar em sua comitiva o cozinheiro que lhe prepara os pratos. Há os que conduzem na bagagem o uísque, temendo falsificações. Sem falar nos lencinhos desinfectantes com que "limpam" as mãos depois de cumprimentar os eleitores pobres, acreditem. Fala-se que um renomado político paulista, em viagens eleitoreiras pelo interior do Nordeste, foi visto bebendo Waiwera, uma água mineral da Nova Zelândia, de que trouxera algumas garrafas no avião. Folclore político, quero crer.

Acho, contudo, que o mal está menos na 'frescura' em si que na forma de praticá-la. Quem não sabe, que, neste sentido, Roberto Carlos é supostamente o mais excêntrico dos artistas brasileiros? Na última vez que esteve em Fortaleza, a ambientação do quarto do hotel foi toda refeita a fim de que o azul fosse a cor dominante. Mesmo da parte externa, como hall de entrada e corredores, tiveram que retirar o menor dos adereços em que se destacasse o marrom. Como um rei que se preza, no entanto, o faz com a discrição e a elegância que o preservam de qualquer exposição. Ao final do show, atira flores. Como abençoada do Rei, é possível que Paula Fernandes tenha buscado nele a inspiração. Quer dizer: tem a frescura, mas lhe falta a classe.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O homem que engarrafava nuvens

A atriz Denise Dummont me telefona de Nova York, através da prima Marlene Teixeira. Estava dando os primeiros passos para a realização de um projeto que tinha por objetivo resgatar a memória artística do pai, Humberto Teixeira. Dois ou três dias depois, encontramo-nos na sede do então Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará. De cara, surpreende-me o número de participantes do evento, muito maior do que pensava pudesse ser. Foi uma noite de reencontro com conterrâneos, parentes e admiradores do autor de Asa Branca. Lembro que fui convidado a falar em nome da família e da colônia iguatuense ali presentes. Na ocasião, Denise e eu trocamos um farto material sobre Humberto, que, na mesma madrugada (já era tarde, quando nos despedimos), seria furtado do meu carro, para minha tristeza e espanto.

Meses depois, Marlene e eu estreitamos contato com Denise. Ela viria a Fortaleza e Iguatu para rodar algumas sequências de O homem que engarrafava nuvens, como intitulara o filme a partir de uma frase do pai em entrevista ao historiador Nirez. Denise queria um depoimento meu para o filme. Na época, infelizmente, não pude recebê-la, encontrado-me em viagem para fora do estado. Marlene e Euriquinho Teixeira o fizeram e ambos, tratados com especial carinho por Denise, estão no filme de Lírio Ferreira, o resultado final do projeto levado a efeito com brilhantismo pela atriz, e a que -- inexplicável! -- só ontem pude assistir em casa de Deusdedith Teixeira Neto, que reuniu familiares para uma sessão do filme regada a bom uísque. Fiquei encantado.

Trata-se do premiadíssimo documentário que chega em nova tiragem às principais lojas do ramo. Um clássico do gênero, que, em pouco mais de duas horas, reverencia a obra do ilustre filho de Iguatu e resgata a memória de um gênio esquecido. O filme conta com a participação, depoimentos e interpretações marcantes, de grandes nomes da música popular brasileira, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Lenine, Gal Costa, Maria Bethânia, Raul Seixas, Luiz Gonzaga, Bebel Gilberto e David Byrne, que canta Asa Branca em inglês e dá sobre a música de Humberto Teixeira um dos mais relevantes depoimentos sobre o letrista e compositor iguatuense. Imperdível.

Embora tenha acompanhado com interesse o belíssimo projeto de Denise Dummont, do nascedouro à conclusão, confesso: só agora pude de fato dimensionar com exatidão quem foi e o que realmente representou a figura de Humberto Teixeira para a cultura musical brasileira. Tomando por base as declarações de Gilberto Gil, Caetano Veloso e, mesmo, David Byrne, não é muito dizer que Humberto Teixeira é para a MPB como um outro João Gilberto. É comprar o DVD e conferir se exagero, minimamente que seja.

Como nada é, todavia, perfeito, faço uma restrição: a sequência do filme em que Margarida Jatobá expõe questões de foro íntimo de sua vida ao lado de Humberto, é de uma deselegância inaceitável e poderia ter sido evitada sem qualquer prejuízo para o produto final de O homem que engarrafava nuvens. Antes pelo contrário, reportar-se à traição ao marido da forma como o faz, cedendo à curiosidade 'encenada' de Denise Dummont, afirmando que ao lado da genialidade do artista havia o ciúme e o conservadorismo do interiorano, é detalhe que nada acrescenta ao extraordinário trabalho de Lírio Ferreira. O filme como um todo, no entanto, é excepcional e justifica os prêmios nacionais e internacionais que arrebatou. Vale conferir.

A carta de Pablo

O 11 de setembro, que assinala este ano o décimo aniversário do atentado às torres gêmeas, tem para mim, por uma razão diferente e íntima, um significado particularmente importante: é a data de aniversário do meu filho Saulo, uma das duas pessoas que mais amo. Mas é, também, a data de um outro aniversário de que nunca esqueço, pela força do seu significado do ponto de vista das ideias que envolve e dos sentimentos que me causa: nesse dia, numa manhã de terça-feira de 1973, sob a chancela dos Estados Unidos, a capital chilena era massacrada por ações militares que culminariam com o bombardeio do palácio do governo e com a morte do presidente Salvador Allende. Nas ruas, nas praças, nos quarteis, da forma mais cruel que é possível um homem imaginar, civis, entre os quais indistintamente contavam-se idosos e mulheres, muitas vezes em presença de filhos e cônjuges, eram submetidos à práticas de tortura bárbaras, quando não sumariamente executados a tiros de fuzil ou atirados de helicópteros, vivos e conscientes do que lhes faziam, naquele instante, oficiais do exército chileno treinados pelos norte-americanos. Era 11 de setembro também. Nas proximidades da data, há pouco menos de nove anos, um chileno escreveu esta carta que um amigo me enviou por e-mail e que fiz questão de reproduzir abaixo. Não se trata de fechar os olhos para o que existe de monstruoso naquilo que ocorreu aos americanos há exatos dez anos, mas de tentar abri-los um pouco mais para outras realidades.

"Queridas mães, pais e entes daqueles que morreram em 11 de setembro em Nova York. Eu sou chileno, moro em Londres. E gostaria de dizer que temos algo em comum: seus entes queridos foram assassinados como os meus. E nós temos uma data em comum, o 11 de setembro. Em 1970, houve uma eleição. Eu tinha 18 anos e votei pela primeira vez. Tínhamos um lindo sonho de construir uma sociedade na qual o povo repartisse o fruto do seu trabalho, a riqueza do País. Em setembro de 1970 fomos votar e vencemos. No ar, bandeiras brancas, vermelhas e azuis. Quando uma história começa, em cada rua, em cada esquina, vozes se erguem como ondas num oceano interminável. Punhos se agitando no ar. Da montanha até o mar. Havia leite e educação para as crianças, terras improdutivas foram dadas a camponeses sem terra. O carvão, as minas de cobre e as indústrias de base, se tornaram propriedade de todos nós. Pela primeira vez na vida as pessoas tinham dignidade. Mas não sabíamos como aquilo era perigoso ("Não sei porque devemos deixar um País se tornar comunista pela irresponsabilidade de um povo", disse Henry Kinssinger). Nossas decisões democráticas, nossos votos, não eram relevantes. O mercado, o lucro, o capital eram mais importantes que a democracia. [...] O presidente de vocês, Nixon, disse que faria nossa economia gritar. Ele mandou que a CIA se envolvesse diretamente na organização de um levante militar, um golpe de Estado. Dez milhões de dólares, mais, se necessário, estavam à disposição para aniquilar o governo de Salvador Allende. [...] Seus dólares sustentaram um grupo neofascista que gerou violência e bombardeou fábricas e centrais elétricas. Em 11 de setembro os inimgos da liberdade cometeram um ato de guerra contra o nosso País. Assim que clareou tropas e tanques atacaram o palácio presidencial. Allende, seus ministros e assessores estavam lá dentro. Allende não fugiu quando o Palácio La Moneda foi bombardeado. Ele foi assassinado. Terça-feira, também foi numa terça-feira de 11 de setembro de 1973. Um dia que destruiu nossa vida para sempre. Levei um tiro no joelho e depois eles bateram com a minha cabeça no chão. Eles me bateram tanto, que às vezes eu desmaiava. [...] Ligavam fios elétricos nas genitálias, enfiavam ratos na vagina das mulheres. Treinavam cães para estuprar mulheres. E ficamos sabendo da caravana da morte: o general que ia de cidade em cidade fazendo execuções a esmo. Trinta mil foram assassinados. Trinta mil! [...] Eles me consideraram comunista. Me condenaram à prisão perpétua, sem julgamento e sem direito à defesa. Fui libertado cinco anos depois, mas tive de sair do meu País. Não posso voltar ao Chile, agora, embora só pense nisso. O Chile é meu lar, mas o que aconteceria aos meus filhos? Eles nasceram em Londres. Não posso condená-los a um exílio como o meu. [...] Mães, pais e entes queridos dos que morreram em Nova York. Logo chegará o vigésimo nono aniversário do nosso 11 de setembro e o primeiro de vocês. Vou me lembrar de vocês. Espero que vocês se lembrem de nós. PABLO."

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

De Paula Fernandes a Wong Kar Wai

Leio na coluna de Hildernando Bezerra sobre o show de baixaria da cantora Paula Fernandes em Iguatu. Com o estilo elegante de sempre, Hildernando levanta uma bela reflexão sobre a vaidade humana, tomando por base a arrogância da cantora desde as suas primeiras horas na cidade -- e o barraco que aprontou durante a sua apresentação à noite. Acho que o colunista foi mais que generoso com a artista, chegando mesmo a cometer o que me parece um equívoco em termos de estética musical: - "Esta jovem cantora tem tudo para ser a nova Ângela Maria dos tempos modernos." Longe disso, meu caro.

Desde que fez a sua primeira aparição em nível nacional, sob a chancela de Roberto Carlos, é comum se ouvir falar do talento da garota, por muitos considerada a grande revelação da MPB nos últimos doze, quinze anos. Um exagero, para não lembrar que somos de fato o público menos exigente do mundo artisticamente falando. Há quem cometa o desvario de comparar o tal "fenômeno" à Norah Jones. Santa ignorância. Com uma voz enjoada que mais lembra Roberta Miranda, de quem me parece ter herdado, além do estilo, o incomparável mau gosto, Paula Fernandes tem da cantora americana o mesmo que eu de Frank Sinatra, ou seja, nada.

Quanto a formar "comissão de notáveis para recepcioná-la, incluindo autoridades locais e estaduais" (sic), meu querido Bezerra, é, aos meus olhos, tanta babaquice quanto exigir trânsito exclusivo no hotel, como quis a cantora. Coisa mais provinciana! Não me leve a mal, que já falei da elegância do seu texto e da forma inconfundível e invariavelmente inteligente com que o amigo brinda seus leitores, entre os quais figuro toda semana, com reflexões agudas sobre a vida de todos nós, pobres mortais. Essa gente não tem mais o que fazer que festejar chegada de cantora?

Falei de Norah Jones, que admiro desde 2002 Come Away Wite Me, seu álbum de estreia, e me ocorre lembrar um belo filme que só há pouco vi: Um beijo roubado, de Wong Kar Wai, em que Norah atua como atriz ao lado de Jude Law, Rachel Weisz e a impagável Natalie Portman. E atua bem, diga-se de passagem, na pele de Elizabeth, a jovem de coração partido que divide com as personagens de Jude Law e Natalie Portman o brilhantismo do filme.

Na linha de Anjos caídos (1995) e Amor à flor da pele (2000), com que explodiu como um dos maiores cineastas da atualidade, Kar Wai realizou com Um beijo roubado (2007) um dos seus filmes mais sedutores. A luz, com que dá ao colorido da imagem um tom intraduzível com palavras, e a trilha sonora estonteante de tão bela, por si só são capazes de conquistar o espectador. É aí que Jones, Law e Portman vão viver, como quase sempre na filmografia do diretor chinês, suas condenações aos diferentes estágios do amor.


Que o leitor me dê um desconto por ter guinado de Paula Fernandes a Norah Jones e Wong Kar Wai. Está dito.



quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O que sei de Lula

Acho uma prova de correção intelectual não emitir opinião sobre aquilo que se desconhece. Por isso, antes de escrever a coluna de hoje, li O que sei de Lula, de José Nêumanne Pinto, mesmo enojado já nas primeiras páginas. Não falo da qualidade estilística do texto, que traz a marca de um escritor de muito talento. Refiro-me às razões que por certo moveram Nêumanne na produção da obra, visivelmente carregada de ressentimento, de ódio pelo ex-presidente, com quem teve ligações pessoais íntimas, a concluir pelo seu próprio relato. E de quem, contrariados alguns interesses que omite da sua obra, é, agora, inimigo figadal.

É um levantamento exuberante de informações distorcidas, manipuladas ao sabor dos interesses (inconfessáveis!) do autor. Aproveitando-se da convivência estreita com Lula, nos tempos do ABC, Nêumanne faz revelações que põem à mostra, antes de tudo, a fragilidade do seu caráter e a ausência de qualquer princípio ético, elementar que seja, naquilo que faz. Pelo menos se tomarmos como referência o livro em questão.

Mas O que sei de Lula não deve ser condenado unicamente pela avaliação mal intencionada que faz de Luiz Inácio Lula da Silva, cuja história, reconhecida para muito além das fronteiras nacionais, por relação de contraste colocam o livro no seu devido lugar. Ele é criminoso por uma razão mais forte, que constitui, esta sim, uma falta prevista em lei: o racismo, o preconceito por que conduz a sua análise do perfil psicológico do seu biografado. Chega a afirmar, sem meias-palavras, que o ex-presidente "nasceu na hora, no lugar e na família certa", numa forma explícita de detratá-lo por ser, além de pobre, do Nordeste, onde, segundo sua visão facistóide (e com artifícios de linguagem que tentam disfarçar o que diz), é improvável que nasça alguém com as qualidades necessárias para presidir um País.

Cita, deformando o conteúdo das palavras, Euclides da Cunha e Antonio Conselheiro. De forma deselegante para quem escreve a biografia de um ex-presidente, diz que Lula nasceu de "um pai canalha e uma mãe santa". Numa metáfora sugestivamente malcheirosa, compara-o a uma cebola, de quem diz ter retirado "a casca ideológica e política para chegar ao homem". Tudo, para o leitor minimamente informado, sem conseguir esconder as motivações servis de um empregado da Folha de São Paulo, o mais reacionário e antipopular dos grandes jornais brasileiros. Não à toa, pois, exaltando o livro, O que sei de Lula traz como folha de rosto comentários de colunistas do matutino paulistano, entre os quais, infelizmente, o também nordestino e grande poeta Ferreira Gullar.

Com o seu livro, recém chegado às livrarias da cidade, nas entrelinhas ou nelas mesmas, José Nêumanne Pinto presta um definitivo desserviço à democracia -- e fere de morte a ética jornalística brasileira.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O clube do filme

Amiga da praia me falara cheia de entusiasmo: - "Você precisa ler O Clube do Filme, é maravilhoso!" Dias depois, deparo com o livro na Cultura e me surpreende o nome do autor: David Gilmou. Mas, espera aí... O guitarrista da Pink Floyd? Não era. Trata-se de um crítico de cinema de quem - confesso - nunca ouvira falar. Mora em Tolonto, no Canadá, trabalhou no Festival Internacional do Cinema de lá e atualmente apresenta programa de tevê sobre a sétima arte. Compro o livro e, sentado a uma poltrona da própria livraria, leio as primeiras páginas. Não consegui mais largar.

O livro narra uma história real vivida por David. Desempregado, separado da mulher, sem dinheiro e atravessando, por motivos óbvios, um verdadeiro inferno astral, David tem pela frente mais um grande problema para resolver: o filho Jesse, 15 anos, acumula reprovações escolares em todas as disciplinas. É aí que o pai tenta a saída inusitada: o filho pode abandonar os estudos, desde que, em contrapartida, passe a ver obrigatoriamente três filmes por semana. Detalhe: com o pai.

A história seduz você de cara, simples e maravilhosamente bem contada como havia tempos não via de um autor inédito, pelo menos para mim. Não bastasse o enredo extremamente curioso, O Clube do Filme tem um jeito levíssimo de falar de filmes, o que não requer, pois, que o leitor seja um expert no assunto. Começa com um dos filmes da minha adoração, Os Incompreendidos, de François Truffaut, com que o pai-cinéfilo inicia o filho no mundo de sonhos do cinema.

O método deixa na poeira muita teoria sobre a verdadeira razão de ser da escola. Enquanto se divertem, assim, pai e filho procuram tirar dos filmes a que assistem o que há de fundamental em cada um deles, na perspectiva da forma e do conteúdo. De Truffaut, por exemplo, vem o gancho para discutirem o futuro de um adolescente que larga os estudos para enfrentar a vida sozinho. Com isso, como num milagre de que só a grande arte é capaz de operar, estão abertas para o pai as portas do existe de mais profundo na alma de um filho. Está selada a verdadeira amizade entre pessoas de mundos diferentes, mas igualmente carentes de afeto e entrega espiritual. Bonito.

Não bastasse discutir com leveza e encanto o que há de mais representativo de alguns filmes memoráveis, de A Doce Vida a Instinto Selvagem, de Os Reis do Iê, Iê, Iê a O Poderoso Chefão, o livro, já nas primeiras páginas, traz uma lição imperdível para aqueles que querem se iniciar na enriquecedora e incomparavelmente agradável experiência da cinefilia: "a segunda vez que você vê uma coisa é na verdade a primeira vez. Você precisa saber como a coisa termina antes de apreciar sua beleza desde o início." De resto, acho que a lição extrapola os limites do cinema. Na vida, quase sempre, também é assim.