sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O meu irmão alemão

Virei há pouco sua última página. Esplêndido, O meu irmão alemão, romance recém-lançado de Chico Buarque de Hollanda, coloca o multiartista, em definitivo, entre os maiores (senão o maior) escritores brasileiros contemporâneos. O livro é absolutamente sedutor desde o início, quando o narrador tece as primeiras armadilhas de um enredo que oscila a cada página entre a realidade e a ficção, a memória biográfica e a fantasia. A partir daí, o inevitável  --  deixamo-nos arrastar pela curiosa história de Sérgio Ernst, o meio-irmão de Chico Buarque, nascido de um affair do pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, com uma alemã durante o tempo passado em Berlim de 1029 a 1930/31. O ponto de vista, no entanto, é do próprio Chico, que soubera da existência do irmão quando já contava 22 anos, supostamente pela boca de Manuel Bandeira.
 
Bem na linha do que propõe a arte "moderna", cuja marca mais relevante foi romper o processo ilusionista em favor da materialidade da obra, o romance se sustenta nas belíssimas intervenções do autor em meio ao desenrolar da fábula em que sobressai a figura de Enst, o irmão que Chico Buarque, efetivamente, nunca encontrou. Como numa tela de Velásquez (lembro-me, aqui, de As meninas) ou num filme de Godard, o livro ostenta o seu suporte estético a cada página, a cada parágrafo, denunciando-se como matéria vinda da imaginação de um homem para quem a barreira que separa o real do fictício é coisa muitíssimo delicada. Mesmo para o leitor mais atento, assim, é difícil definir o que se torna mais admirável, a estória ou a história, o plausível ou o ilusório. Tudo é absolutamente fascinante na forma como Chico Buarque se propôs (e soube com maestria) construir o romance.
 
À página 178, quando a voz narrativa se volta para Sérgio Buarque, havia pouco falecido, é uma frase de Victor Hugo que parece ressaltar do livro aquilo que lhe é essencial: "A vida não passa de uma longa perda de tudo que amamos!" E esse sentimento de perda pontua todo o desenvolvimento da história, esboçando uma saudade que se expressa, ao mesmo e um só tempo, com a dureza da realidade e a leveza do sonho. Percebe-se, desse modo, um cruzamento de muitas pequenas narrativas que se somam na totalidade do romance, mas que, algumas vezes, saltam aos olhos do leitor mais atento como algo que se pode ler separadamente. Exemplo disso está entre o início da página 24, terceiro capítulo, e o final do primeiro parágrafo da página 31, quando o autor narra um encontro hilário entre ele e dois amigos numa cervejaria frequentada por alemães. Nesse trecho, e noutros ao longo da narrativa, depara-se com um conto dentro do romance, com começo, meio e fim.
 
Mas, em meio a tantas e tantas qualidades de técnica e de estilo, uma sobressai na prosa de ficção de Chico Buarque de Hollanda (observada desde Estorvo, sobremodo), o que aos pouco vai constituindo uma característica de um romancista antes de tudo extremamente original. Refiro-me à força expressiva de suas descrições, capazes de transmitir ao leitor a visualização do que ocorre à personagem em suas mínimas ações, gestos, movimentos etc., bem como do ambiente que serve de cenário a cada cena do livro: "Começou a me incomodar que nem quadro torto na parede, começou a me dar nos nervos uma lacuna acintosa na penúltima prateleira. Olha ali, falei para Maria Helena, que olhou para trás e não viu nada de mais. E afinal não era mesmo nada grave, apenas um livro que fora retirado havia pouco, dentre dois volumes que agora se tocavam no topo e não na base, como dois amigos que se beijam sem se abraçar".
 
Numa busca obsessiva do irmão, Chico de Hollander (é como se chama no livro), ou Ciccio, transita entre ângulos possíveis de uma irrealidade que enche de poesia e sortilégio este belo exemplo de romance moderno com que nos brinda o gênio Francisco Buarque de Hollanda. E que pode vir a se tornar o livro de sua vida, como homem e como escritor.
 
 
 
 
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Reavaliar certezas e convicções

De um amigo vem o elogio incontido à revista Veja pelo fato de liderar número de vendas no país. A mensagem, que envia pelo facebook, não se tratasse de um entusiasmo subjetivo, direito sagrado de cada um, não apenas em termos de escolhas de leitura, e que dá a ver o que se considera nos meios acadêmicos uma visão ingênua, bem na perspectiva do que examina Umberto Eco, o semioticista italiano, constitui, todavia, um tipo salutar de provocação, o que justifica o conteúdo da coluna de hoje. Vamos lá.
 
O fato de liderar demanda de leitores, querido amigo, não diz da qualidade de revistas e jornais. Antes pelo contrário, serve acima de tudo para evidenciar o perigo que algumas dessas publicações representam para o interesses mais legítimos das pessoas, pelo menos em ângulos possíveis de percepção do que é realmente importante para a maioria delas. Refiro-me ao conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e necessidades semelhantes, história e tradições comuns, que, na falta de novidades linguísticas, ainda chamamos de povo.
 
O texto jornalístico (as tais matérias que asseguram aos leitores as informações, como afirma), enquanto discurso construído, na linha do que professam os pós-estruturalistas a que faço, sob alguns aspectos, as minhas restrições (Foucault, Derrida, Deleuze etc.), tem por objetivo produzir determinados sentidos. Legitimar o ideário da ditadura, fortalecer os interesses da direita mais reacionária, manipular a divulgação dos fatos (e os fatos!), por exemplo, são sentidos e intencionalidades possíveis, bem na linha do que faz à perfeição a revista ora exaltada pelo amigo.
 
O texto jornalístico, insisto, desde a sua produção, ainda sob o burburinho de qualquer redação (refiro-me ao ambiente dedicado à escritura das matérias de jornais e revistas), seleciona maneiras de encaminhar o leitor, de conduzi-lo para interpretações condizentes com o que interessa a gregos ou troianos, formando opinião acerca da "realidade", com o intuito de obter dividendos de naturezas as mais diversas. Vou mais longe, de construir pelo uso inconfessável das potencialidades da linguagem a própria "realidade".  Para ficar mais claro, pergunto-lhe, amigo, o que é a realidade? Como a percebemos? De que modo a "informação" de uma revista como a Veja é capaz de revelar o real, objeto do seu entusiasmo com o fato de ser ela a revista mais vendida no país?
 
Ocorre-me lembrar de um filme maravilhoso a que assisti faz muito tempo, e que se chama O enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog (1974). Não vou contá-lo, atitude condenável para qualquer cinéfilo, mas recomendo-o ao amigo e leitores desta coluna, pela forma como o filme discute emblematicamente bem, à luz do que importa no campo das Ciências Humanas, as relações entre linguagem, percepção, conhecimento e realidade.
 
É possível que ao seus olhos, amigo, as matérias "informativas" da referida revista Veja não traduzam se não a mais pura realidade, este mundão estável e inalterável de sons, cores, formas, espaços e movimentos. É possível que jamais se lhe torne plausível compreender que, em verdade, tudo isso não passe de uma ilusão construída pelo discurso editorial de uma publicação que esteve, sempre, empenhado em fortalecer a lógica do capital e dos que dele se beneficiam muitas vezes de forma indecente.
 
A essa altura, meu caro, cabe perguntar: até que ponto essa "informações" condizem com a realidade extralinguística? Não é preciso ir ao encontro de teorias as mais diversas, no território da ciência da linguagem, da semiologia, da antropologia, da análise do discurso, da filosofia, para perceber o que pretende o jornalismo da revista Veja,  e de jornais e tevês que estão à frente em termos de vendagem e prestígio no Brasil de hoje. É bastante, quem sabe, ficar mais atento a fim de reavaliar certezas e convicções, abrindo os olhos para o que repousa, no silêncio das entrelinhas, como arma de construção de falsas "realidades".
 
Abraço forte!
 
 
 
 
           

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Doa a quem doer

Quando vejo a sanha do mercado financeiro se voltar contra o governo da presidente Dilma, ocorre-me lembrar de uma cena maravilhosa de Luzes da Cidade, o filme sublime de Charlie Chaplin. Está logo no início da película, na inauguração de um monumento em que a figura feminina representa a Paz e a Prosperidade. Concluídos os discursos, que Chaplin ridiculariza à perfeição, aos reproduzi-los como meros ruídos (bem no estilo dos blablabás da mais desavergonhada oposição de que se tem notícia na história recente do país), descerra-se a estátua e o que se vê é hilariante: um mendigo dorme a sono solto no colo da tal Prosperidade.
 
A cena, que entraria para a história do cinema, é uma das mais felizes críticas de Chaplin aos valores por que se norteia a lógica do capitalismo. O que vem na sequência da narrativa é ainda mais engraçado, não fosse trágica a realidade que metaforiza. Quando a banda executa o hino dos Estados Unidos, espírito máximo do capital, Carlitos vai se envolver com uma série de trapalhadas que visam, mesmo ao espectador mais desatento, expor ao ridículo as contradições de um modelo de desenvolvimento que submete uns à miséria em favor dos privilégios de outros. Ao tentar descer do monumento, sob a ameaça da força policial que se empenha em restabelecer a "ordem" em benefício do "progresso", a personagem tem o fundo das calças rasgado pela espada de uma outra figura da escultura. É esplêndido.
 
Entre as muitas camadas de sentido do filme, que se estendem do cômico ao mais belo romantismo, pois o filme tem como eixo central o amor de um vagabundo por uma moça cega, Luzes da Cidade vai tecendo, com a sensibilidade de Charlie Chaplin, as malhas de contrastes e equívocos, inversão de valores, hipocrisia e desfaçatez que escondem as contradições da sociedade, a luta de classes e a perversidade de um mundo em que o ter vale mais que o ser  --  e um dos mais preciosos bens do homem, a liberdade de escolher, é confundida com a ignorância.
 
É impagável o sarcasmo com que Chaplin demarca, em Luzes da Cidade, os espaços e lugares sociais ocupados por Carlitos e o milionário. Embriagado, este abraça o mendigo como a um amigo querido, mas sóbrio o ignora e o põe da porta para fora, humilhado e esquecido.
 
Como afirma sobre este filme inesquecível um renomado crítico, nele os sentidos se confundem. A moça cega e o milionário embriagado vivem trocando as bolas. As luzes da cidade, felizmente, apagam todas as distinções e deixam o Vagabundo (o povo, acrescento eu!) ser o que a sua imaginação desejar. À luz da democracia, escolher será sempre um direito sagrado. Doa a quem doer.