sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Ainda sobre o ciúme

Leitora comenta a coluna de sábado, que leu no meu blog, e mostra-se curiosa em relação aos outros dois tipos de ciúme estudados por Freud. Quer saber mais. Vá lá, falemos um pouquinho mais sobre o tema. No estudo citado, de 1922, como disse, Freud estabelece a existência de três tipos de ciúme: o normal, o projetado e o delirante. Sobre o primeiro tecemos considerações rápidas no texto anterior. O segundo, projetado, é um caso clássico que a leitora diz conhecer de perto (risos): é uma projeção no outro cônjuge da própria infidelidade. A pessoa tem inclinações para trair, sente-se com freqüência tentada a fazê-lo e, numa atitude inconsciente de defesa ou mascaramento de suas vocações adúlteras, transfere para a outra essas ‘inquietações’. É mesmo um tipo comum e, segundo Freud, pode sobrepor-se ao ciúme dito normal ou deslizar para o terceiro tipo, o delirante. Aqui, creio, entram os excessos da psicanálise: para Freud, no ciúme delirante estão presentes os mesmos mecanismos do ciúme projetado, mas o objeto do desejo é, nesse caso, do mesmo sexo. Palavras do próprio: “O ciúme delirante corresponde a uma homossexualidade abafada”. Valendo-me da literatura, a título de exemplo e no viés da psicanálise, no Dom Casmurro é Bentinho quem sente forte atração por Escobar, a quem considera objeto passional da mulher, Capitu. Tudo no plano do inconsciente, claro. Coisas da psicanálise.

O fato é que não se pode desconsiderar essa possibilidade, ou seja, não se pode fechar olhos para as muitas pistas deixadas por Machado acerca da paixão homossexual de Bentinho. Textualmente: “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo [Escobar], que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou”. Isso para ficar numa citação, apenas, entre as muitas que se poderiam fazer. Obra aberta, no clássico sentido professado por Humberto Eco, em livro homônimo, a obra de Machado permite leituras diversas. Este olhar sobre a vertente homossexual de Bentinho, pois, prende-se à tentativa de exemplificar o que para Freud seria o ciúme delirante. Satisfeita a curiosidade da leitora, penso, voltemos ao tema da última coluna sobre a pesquisa “Ciúme excessivo induz à traição”, que tanta polêmica causou.

A literatura é pródiga em tematizar essa questão. Em Nelson Rodrigues, cuja genialidade vem a ser outra vez objeto de adoração no meio teatral, depois de um prolongado ostracismo, a coisa é recorrente. Já no texto de estréia, A mulher sem pecado, deparamos com um caso genial: Olegário, o protagonista, tomado de ciúmes da mulher, Lídia, entrega-se a uma cadeira de rodas com a intenção de confirmar a sua infidelidade. A peça gira em torno desse drama, desse ciúme patológico da personagem. Quando, por fim, convence-se de que não é traído, acontece-lhe o pior. Não suportando mais a situação, o inferno em que vive, Lídia foge com Umberto, o motorista da casa.

Mas é outra personagem de Nelson que representa, à saciedade, o tipo ciumento-mórbido: Gilberto, protagonista de Perdoa-me por me traíres, para quem tudo é motivo para desconfiar da mulher, mesmo os mais rotineiros hábitos de higiene: no seu delírio, vê rivais por toda parte, “escorrendo pelas paredes, como água infiltrada”. Decide internar-se para tratamento. Quando se sente recuperado, “outro homem”, retorna à casa, mas a mulher já tem um amante. E aqui vem uma fala maravilhosa da mãe de Gilberto, como se antevisse o adultério: “[...] higiene íntima três vezes por dia, se tem cabimento! Tanto asseio não havia de ser só para o marido, duvido!” Por sua vez, num nonsenso tipicamente rodrigueano, Gilberto, atirando-se aos pés da mulher: “Perdoa-me por me traíres”. É Nelson, no seu melhor estilo.

Crise, canalhice e Carnaval!

É Carnaval! Na linha do que professou o antropólogo Roberto DaMatta, o Brasil se nivela durante os quatro dias de folia. Até quarta-feira, estamos de bem com a vida e nossas dificuldades deixam de existir. A alegria anda solta e somos felizes, temos a vida que pedimos a Deus. Não há pobres e ricos, exploradores e explorados e o que importa é “beber, cair e levantar”, como diz a letra (?) do forró do momento.

Tudo bem. Dá um desconto que todo mundo merece ser feliz, mesmo que à custa de muita cachaça, que ninguém é de ferro. O diabo é que há um cheiro de fumaça no ar e algo me diz que depois da festa vem uma realidade dificílima para o brasileiro. O Banco Central, depois de contar vantagens à exaustão, parece cair na real e prevê subida nos índices de inflação. O país não parece tão preparado para a crise que vem dos Estados Unidos e a coisa tende mesmo a pegar por baixo. Há tempos não começávamos o ano de forma tão dramática.

O pior, é que o governo, em mais um exercício de malandragem, arma mecanismos mil a fim de impor um novo imposto aos brasileiros, única forma de superar as perdas advindas da queda da CPMF. E haja gogó para justificar o injustificável. Redução de gastos, o que é condição sine qua non para o país segurar sua estabilidade, nem pensar. Enquanto isso, paguemos as contas irresponsáveis com cartões de crédito corporativos da Presidência da República.

A propósito, a situação da ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, parece mesmo insustentável e os indicativos são de que cairá tão-logo passe o Carnaval. Canalhice. Ribeiro fez compras em free shop. Mas não é bastante elegê-la o bode expiatório da vez. Como ficará a situação do ministro Orlando Silva (Esportes), que pagou com o cartão corporativo até conta de tapiocaria em Brasília. E de Altemir Gregolin (Pesca), que usou a mesma prerrogativa para custear despesas em churrascaria de luxo. Sei, não. A sensação é de que na Capital do país o Carnaval é o ano inteiro.

Nada, não. Tudo passa sobre a face da terra, já dizia Alencar. Vamos à gandaia, que a partir de hoje é o que importa, nesse paraíso tropical. Pelo sim, pelo não, não há negar: este país fica lindo em ritmo de Carnaval. É fascinante como esse povo consegue virar o jogo por uns dias, como essa gente reencontra os mitos do paganismo mais antigo nos quatro dias de folia. É de Bandeira que me lembro agora: “Quero beber! Cantar asneiras/No estro brutal das bebedeiras! Que tudo emborca e faz em caco/Evohé Baco!/Lá se me parte a alma levada/No torvelim da mascarada/A gargalhar em doudo assomo/Evohé Momo./A Lira etérea, a grande Lira!/Porque o eu extático desfira/Em louvor versos obscenos/Evohé Vênus!” Viva o Carnaval!

A Cabra Vadia

Aproveito a folga do Carnaval para ler, entre outras coisas, A Cabra Vadia, de Nelson Rodrigues, que sai em edição da AGIR trinta e oito anos depois da primeira e última edição, 1970. O livro resulta de uma série de artigos publicados por Nelson no jornal O Globo, entre dezembro de 1967 e outubro de 1970, e fazem parte das memórias do autor, que ainda contam com A menina sem estrela , 1967, Confissões, 1968, e O reacionário, 1977. Num estilo inconfundível, o livro traga o leitor da primeira à última página. Revela o lado polêmico do cronista, suas posições desconcertantes sobre temas palpitantes do “ano que não acabou”, para fazer referência à curiosa forma como Zuenir Ventura documentou 1968 em obra obrigatória sobre um dos mais férteis momentos da história do país.

Assumindo-se um reacionário, o que é faceta conhecida das posições políticas do autor de Vestido de noiva, a obra não perde em qualidade por isso, antes pelo contrário: deparamos com um homem absolutamente seguro nas suas inquietantes leituras de algumas questões políticas radicalizadas, naqueles idos, à esquerda e à direita. Põe por terra o mito da omissão e trata, com a sagacidade de um gênio, alguns temas ligados ao movimento estudantil brasileiro, que, entre nós, refletia as ações dos universitários franceses contra o governo De Gaulle e a favor das liberdades plenas.

A crônica com que abre o livro é algo irretocável como peça do gênero. Ex-Covarde, é o título, e, como sugere, mostra um Nelson escancarado em termos ideológicos. Um interlocutor quer saber dele a razão por que “de repente, você mergulha na política”. É então que deparamos com um Nelson pouco conhecido, descendo a língua ferina contra intelectuais, artistas, professores etc., entre os quais se destacam figuras resistentes ao governo militar, como Alceu do Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara, alvos das críticas mais contundentes do livro.

Mas é ainda no Ex-Covarde que encontramos uma das ‘confissões’ mais comoventes de Nelson Rodrigues, quando fala das inúmeras mortes ocorridas na família e que, sobremaneira, marcaram tão fundo suas peças teatrais. Refere-se aos seus sofrimentos, “na carne e na alma”, desde 1929, ano em que o irmão Roberto foi assassinado no dia seguinte ao Natal. O pai de Nelson Rodrigues morreria poucos dias depois, “de pura paixão”. Algum tempo depois, morre o irmão Joffre, dos mais ligados a ele. Em seguida, a irmã, Dorinha e o irmão Mário Filho (o talentoso jornalista que dá nome ao Maracanã). “Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário”, dizia sobre o lendário cronista esportivo. “Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim”, declara Nelson, antes de se reportar ao trágico deslizamento de uma pedra, em Laranjeiras, no Rio, sobre a casa do irmão Paulinho. Morreriam no acidente, ainda, a cunhada de Nelson, Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto e a sogra de Paulo Rodrigues, D. Marina. Tanto tempo depois de sua publicação em livro, os textos que compõem A cabra vadia devem ser recebidos com entusiasmo pelos fãs desse artista polêmico e incomparavelmente talentoso, no jornalismo e no teatro modernos do Brasil.