segunda-feira, 27 de maio de 2019

O passado que assombra

Leio, em e-book (a versão impressa será lançada hoje em São Paulo), Sobre o autoritarismo no Brasil, da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Shwarcz. De cara, o livro arrebata pelo tratamento de linguagem com que Schwarcz teceu a narrativa, emprestando ao texto uma leveza que lembra uma conversa informal, sem perder de vista, no entanto, o rigor acadêmico que é mesmo uma marca da pesquisadora e escritora extraordinária que é.

"Tentei mesmo fazer o livro em tom de conversa", e pensar com o leitor o momento atual por que passa o País", disse-me ela há pouco sobre o novo título, direto de São Paulo.

No momento em que se tenta por meios legais ou não desconstruir a inteligência brasileira a partir de um discurso egocêntrico e assumidamente reacionário em suas bases temáticas, o livro constitui uma contribuição importante para o debate e serve para reacender na memória a consciência muitas vezes apagada de que somos um País historicamente autoritário do ponto de vista político.

Dividido em 8 capítulos, Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e Intolerância, Sobre o autoritarismo brasileiro, Cia. Das Letras, 2019, já na longa introdução, intitulada História não é bula de remédio, explicita para o leitor sua estrutura textual composta de outros olhares de Lilia Schwarcz, muitos dos quais assentados em sua vitoriosa parceria com Heloísa Starling no incontornável Brasil: uma biografia (2014), da mesma editora, ao que se soma, como esclarece Lilia Schwarcz, em nota, uma série de artigos publicados no jornal Nexo ao longo dos cinco últimos anos.

Como a chamar a atenção do leitor para o que, ao lado do capítulo dedicado ao tema da corrupção, parece mesmo constituir o esteio da pesquisa, o livro debruça-se sobre a questão educacional com um desvelo que remete, necessariamente, à criminosa redução de recursos anunciada pelo Ministério da Educação: "Somente a educação tem a capacidade de desativar o gatilho da desigualdade social. Essa é uma aposta no futuro", sentencia a autora com a firmeza de análise que assinala sua trajetória intelectual desde as salas de aula como professora da USP.

Mas o livro, produzido entre outubro de 2018 e 1º. de março passado, ainda que se volte com redobrada atenção para o que se pode identificar como as raízes do autoritarismo brasileiro, como o próprio título sugere, mostra-se atento aos dias sombrios de nossa realidade hoje, revelando a preocupação da intelectual engajada que é Lilia Schwarcz. Nesse sentido é que a autora ressalta o uso da comunicação digital em sua vocação dialética: Assim como favorece a massificação de um pensamento autoritário como se vê atualmente no Brasil e no mundo, diz ela, "não é o caso de demonizar essas redes, que têm uma veia democrática importante".

Nessa perspectiva sintonizadora, e de forma mais clara,  neste oportuno Sobre o autoritarismo brasileiro, em que pese um e outro comentário menos satisfeito com o que julgam ser uma omissão da historiadora não "dar nomes aos bois", deve-se destacar Quando o fim é o começo: nossos fantasmas do presente, notável texto com que Lilia Schwarcz desfecha, com perfume literário, o seu belo livro.

"A história, ressalta, costuma ser definida como uma disciplina com grande capacidade de 'lembrar'. Poucos se 'lembram', porém, do quanto ela é capaz de 'esquecer'".

Cita, com sutileza, Gilberto Freyre, no Plenário da Constituinte em 1946: "O passado nunca foi, o passado continua", não sem nos advertir de que o sociólogo pernambucano fazia ali um elogio aos tempos de outrora, pontuando em grande estilo: "... esse passado que vira e mexe vem nos assombrar, não como mérito, e sim tal qual fantasma perdido, sem rumo certo".

Um livro notável em hora oportuna. 

 

 

 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Chico Buarque, o Novo Camões

Com méritos de um Nobel, Chico Buarque de Hollanda é o novo vencedor do Camões, o mais prestigiado prêmio de literatura em língua portuguesa. Segundo consta, levou-se em conta, sobremaneira, a obra magnífica do compositor (de texto e de melodia), embora estejamos diante de um artista cuja variedade de aptidões é algo espantoso. Isto porque falar da arte de Chico Buarque pressupõe falar de um novelista, um romancista, um dramaturgo, de um intérprete de qualidade e, mais que tudo isso, de um poeta extraordinário.

A nota oficial do júri do Camões destaca a "transversalidade" da obra do artista como forma de dar destaque ao cruzamento de linguagens que perpassa sua vasta produção, o que mais ainda redimensiona o caráter universalista e a versatilidade de um gênio da palavra. Versatilidade, diga-se ainda, que se percebe não apenas no plano de expressão, mas também no plano de conteúdo, pois Chico Buarque, quer na música, quer no teatro, quer no romance, mostra-se atento aos desafios do seu tempo, entenda-se por isso saber como poucos explorar as contradições da sociedade, do homem e da mulher. Desta, muito antes de a questão feminina entrar para a agenda política, foi sempre um aliado, desvendando-lhe a alma e os segredos mais íntimos da feminilidade. Sua obra transita com o mesmo apuro de Noel Rosa e Pixinguinha a John Gay a Bertold Brecht. Desses últimos, por exemplo, trouxe inspiração para realizar uma pérola do teatro moderno, Ópera do Malandro, em 1978.

Com a humildade que dá a ver a solidez do seu caráter, em tudo irrepreensível, Chico Buarque foi informado da premiação em Paris, onde se encontra para festejar o aniversário de 74 anos e dedicar o tempo a escrever seu novo romance: --- "Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar", foram suas palavras ao ser informado do prêmio.

Os desafetos, curvados à força do ódio em face das posições políticas de Chico Buarque, apressaram-se em desqualificar a honraria, como se o agraciado não fosse um dos maiores talentos brasileiros de todos os tempos, e do mundo, muito maior, por exemplo, como escritor, que o Nobel Bob Dylan, cuja obra de ficção, experimental, circunscreve-se a Tarântula, além, claro, dos livros em que estão reunidas as letras de suas belas canções.

No caso de Chico Buarque, há que se falar do teatro   --- de elevadíssimo nível estético! --- e da literatura propriamente dita, a exemplo de peças como Gota d'Água, Roda Viva e Ópera do Malandro, e de romances como Estorvo, Budapeste e Leite Derramado. Nestes, a descrição desconcertante, com metáforas originais e um tratamento de linguagem a revelar o artesão exigente por trás de uma narrativa de enorme apuro técnico.

Mas é o poeta que desde os anos 60 vem encantando o Brasil e o mundo. E quando falo "poeta", faço-o como forma de ressaltar o que, nos meios acadêmicos, já parece ser um consenso: as letras de música de Chico Buarque, em termos de estruturação poética e rigor elaborativo, colocam-se anos-luz à frente do que, com raríssimas exceções, se produziu na MPB.

Nesse sentido, diga-se de passagem, figuram tão-somente uns poucos nomes, Vinicius de Moraes, Gilberto Gil e Caetano Veloso, por exemplo. Grosso modo, mesmo letristas extraordinários, que os temos muitos, na linha de Noel Rosa, Dolores Duran, Cartola, Nelson Cavaquinho, Ary Barroso, Lamartine Babo e Lupicínio Rodrigues, escreveram letras necessariamente pensadas sobre melodias, não raro produzidas simultaneamente, uma, praticamente, não existindo sem a outra.

Em Chico Buarque deparamos com o poeta dotado de absoluto domínio da carpintaria poemática, com formação acadêmica sobre os mecanismos da versificação. Exemplo disso (e são centenas no conjunto de sua vastíssima produção), tomemos a irretocável Construção, canção composta em 1971, cujo rigor técnico excede mesmo na perspectiva da grande literatura: versos dodecassílabos perfeitos; tônica na sexta e décima segunda sílabas, para não falar da forma como trabalha a estrofação, cruzando rimas em proparoxítonos, experimentações estéticas que o colocam, sem favor algum, entre os maiores nomes da literatura de língua portuguesa contemporânea.

Que dizer de A banda (1966), Olê, olá (1965), Pedro pedreiro (1965), Com açucar, com afeto (1966), Quem te viu, quem te vê (1966), Roda-viva (1967), Carolina (1967), Retrato em branco e preto (1968), Sabiá (1968), Gente humilde (1969), Apesar de você (1970), Valsinha (1970), Atrás da porta (1973), Cala a boca Bárbara (1976), Tanto mar (1975), À flor da pele (1976), Mulheres de Atenas (1976), Trocando em miúdos (1978), Moto-contínuo (1981), Vai passar (1984), para citar obras-primas do cancioneiro popular?

A verdade é que Chico Buarque, como compositor, como letrista, como dramaturgo e como ficcionista, figura, hoje, em qualquer relação dos maiores artistas vivos do Brasil e do mundo. Como afirmou o crítico de artes Sérgio Rodrigues, à Folha de S. Paulo, tão-logo divulgada a escolha, "o Camões é pouco em se tratando de Chico Buarque de Hollanda. Se escrevesse numa língua menos secreta, o Nobel de Dylan se sentiria à vontade em seu colo". É fato.

Por essas e outras, o Brasil deveria aplaudir em uníssono este símbolo da resistência à ditadura e a qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, de negação à liberdade!

  

   

 

 

 

 

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Educação, impeachment e desmandos

Fazer educação é um ato necessariamente político. Só mesmo num País que tem como presidente um fascista e delinquente, como o nosso, pode-se pensar numa educação sem orientação política, o que é, em si, também, uma forma de se fazer política. A diferença é que, no segundo caso, faz-se a política da alienação, negando ao educando aquilo que é uma conquista do homem desde a Grécia Antiga: o pensamento crítico diante da realidade.

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Não é a toa que o governo de Jair Bolsonaro se volta perversamente contra a Universidade, chamando de contingenciamento o que é um corte programático-ideológico dos recursos que lhe são destinados. Ao querer separar a educação da política, o que se pretende é levar a efeito uma intervenção sobre a principal instância geradora do pensamento crítico, impondo à sociedade brasileira um regime de força típico das ditaduras. Tudo sob o manto da falsa legalidade, o que é mais preocupante.

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Nunca, em tempo algum, que me permitam a redundância, vimos o Brasil entregue ao que existe de pior em termos morais e políticos. O que se vê, para além do escancarado despreparo de Jair Bolsonaro, é a prática generalizada da desfaçatez na intimidade do Poder. A coisa é de tal modo grave, que uma aberração se sobrepõe a outra com o passar das horas, levando o País a um estado de desmoralização para o qual não se encontra par nos tempos de hoje.

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Enfiada na lama da corrupção e do conluio com as milícias do Rio de Janeiro, conforme as primeiras investigações indicam, a família Bolsonaro vai sendo aos poucos desmascarada. Agora abandonado pelo presidente, que lhe atribui responsabilidade pelo vazamento de informações que dão a ver o esquema criminoso, Fabrício Queiroz é identificado como suposto articulador dos negócios envolvendo o gabinete do filho de Jair Bolsonaro e o que existe de mais hediondo na criminalidade da capital fluminense.

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Fica mais que comprovado que Flávio Bolsonaro e o próprio presidente da República, no âmbito de seus gabinetes políticos, abrigaram anos a fio inúmeros assessores com ligações estreitas com uma das milícias mais violentas da cidade. Mais que isso: Flávio Bolsonaro lançou mão desses assessores na campanha que o levou ao Senado, o que, num País menos prostituído que o Brasil de hoje, implicaria no seu afastamento imediato das funções, pelo menos até que os ilícitos fossem devidamente apurados.

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Nem mesmo a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, manteve-se à margem dos escândalos. É de domínio público que, entre as movimentações financeiras do "ex-motorista", Fabrício Queiroz, está um cheque de R$ 24 mil cuja razão de ser continua não esclarecida. Ela, sabe-se, não tem foro especial e será, presume-se, investigada pela Promotoria do Rio de Janeiro.

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A agravar o quadro desesperador para o atual governo, está na edição de hoje dos principais jornais, a economia do País vai de mal a pior, o que enseja o ressurgimento da palavra impeachment nos bastidores do Poder. Prestigiada coluna da Folha, por exemplo, sentencia sobre essa hipótese: "Não com ares de conspiração. O tom é de resignação pela incapacidade do governo de dar vazão a uma pauta efetiva."

 

Em tempo: Alguém pode dizer onde quedam, envergonhados, os manifestantes da Praça Portugal?    

   

 

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Gratidão, essa palavra-tudo


Há pouco tempo o visitei em Iguatu. Estava, já, muito combalido fisicamente, fato que se agravara desde a morte da companheira Teonila. Como o gentleman que sempre foi, no entanto, não mediu esforços para apertar-me a mão, ajeitando-se com sacrifício sobre a cama; o sorriso largo, como se a minha presença lhe devolvesse um pouco da alegria perdida, dos tempos inesquecíveis à sombra dos cajueiros do colégio Adhail Barreto, entre amigos e familiares.

Senti que seria esse o nosso último encontro, mas guardei, a custo, as lágrimas, para depois, a fim de que a minha tristeza não contagiasse o seu coração visivelmente cansado, morada de tanta generosidade, tantos sentimentos bons, tanto amor pela vida; a mesma vida que, agora, como que apontava-lhe a porta da partida.

Saí dali tomado de uma emoção profunda, de tal forma que foi Miguel, o filho do meio, entre os três homens, quem me consolou, conduzindo-me, serenamente, até o carro, num silêncio que dizia tudo: Raimundo estava, mesmo, de malas prontas, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar, como no poema clássico se refere à morte que chega, Manuel Bandeira.

O certo é que, pelo quarto de hora que passei a seu lado, sentado à beirada da cama, ouvi de Raimundo Felipe quase as mesmas palavras sábias de sempre. Falou de Teonila, da vontade confessa de ir logo encontrá-la, que "o mundo, sem Teonila, deixara de fazer sentido", é  como me dizia. Altruísta, todavia, ainda rebuscou forças para comentar o país, o "governo sem rumo" que começava, a injustiça "sem nome" que se fizera a Lula, os filhos, noras, genros, os amigos...

A uma dada altura, surpreendeu-me, dedicando a Teonila os versos de Machado, a voz titubeante, os olhos encharcados: "Querida, ao pé do leito derradeiro / Em que descansas dessa longa vida / Aqui venho e virei, pobre querida / Trazer-te o coração do companheiro".

Ao final do soneto, que recitou na íntegra, a mão trêmula ainda tentou disfarçar uma lágrima mais pesada que lhe correu pela face, mas a boca já não me disse nada. Eram os olhos de doutor Raimundo que me davam adeus.

Deixou-nos, há pouco, é verdade, mas fica a memória do homem de bem; do professor elegante; do amigo respeitoso e cordial; ficam as lições de um pacifista; fica, acima de tudo, o sem-número de obras importantes com que assinalou, a ouro, a sua passagem pela instituição educacional a que dedicou, quando menos, dois terços de sua vida luminosa e fértil.

Há homens, estou convencido, que, pela grandeza de alma e bondade de espírito, pela galhardia de suas ações, pelo exemplo que legam à posteridade, parecem ter nascido para nunca morrer  ---  e haverão, mesmo, de permanecer vivos para sempre em nossos corações. Raimundo Felipe, seguramente, é um deles.

Deixo-lhe, como está em Drummond, o poeta mineiro, a minha "Gratidão, essa palavra-tudo"!