sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Como escrever bem, o debate

Gastei uma hora/pensando um verso/que a pena não quer escrever./No entanto ele está cá dentro/inquieto, vivo,/e não quer sair./Mas a poesia deste momento/inunda minha vida inteira.      (Carlos Drummond de Andrade)

Nas últimas semanas, estabeleceu-se através da imprensa (jornal Folha de S. Paulo à frente) um curioso debate: "Como escrever bem?" O assunto foi objeto de excelentes artigos, nomeadamente os do colunista Sérgio Rodrigues, um craque em se tratando da produção de textos em que sobressaem algumas das principais qualidades da boa escrita: coerência, coesão e concisão. Além de outras qualidades que são adquiridas no próprio exercício da escrita, algumas delas decorrentes do contínuo hábito da leitura, da vivência diuturna com os bons autores, sem esquecer, claro, que, a exemplo do que ocorre em todos os campos da atividade criativa, escrever bem, em alguma medida, tem sempre um pouco da personalidade do próprio escritor, tomando-se a palavra aqui em seu sentido mais geral, ou seja, aquele que escreve, independentemente das motivações pelas quais o faz.

Em livro clássico, "Como se faz uma tese", Umberto Eco (notável exemplo do bom escritor), recomenda: "Não imite Proust. Nada de períodos longos. Se ocorrerem, registre-os, mas depois desmembre-os. Não receie repetir duas vezes o sujeito. Elimine o excesso de pronomes e subordinadas."

O escritor italiano, como deixa evidenciado, refere-se a Proust não para exaltar as qualidades do romancista francês naquilo que sugere ser ele inimitável: o fôlego para discorrer em períodos "quilométricos" sobre a vida de Marcel, o protagonista do seu inigualável "Em busca do tempo perdido" (sete volumes) e das mais de cem outras personagens do seu livro monumental. Numa palavra: "Não ouse ser como Marcel Proust".

Há poucos anos, um livro sobre a matéria estourou no mercado livreiro do mundo inteiro, conquistando o interesse de pretensos escritores, jornalistas, advogados e muitos outros profissionais que lidam com a produção de textos, como se se tratasse de um livro de receitas da boa escrita.

"Como escrever bem", era o título, do jornalista norte-americano William Zinsser. Já nas primeiras páginas, o autor diz: "O excesso é o mal da escrita americana. [...] Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido." Como se vê, Zinsser ecoa Umberto Eco quando trata daquela que lhe parece ser a maior qualidade do bom escritor: a capacidade de dizer o que deseja em texto econômico, sucinto, evitando floreios e rebuscamentos que pouco ou nada acrescentam às ideias traduzidas em palavras. Bingo.

Entre os grandes escritores brasileiros, é conhecido o caso do alagoano Graciliano Ramos, cuja prosa, enxuta, descarnada, desprovida de artifícios desnecessários, calcada em substantivos secos e precisos, talvez seja o exemplo mais irretocável da melhor escrita. Sob este aspecto, ouso afirmar, nada em língua portuguesa se deve comparar aos romances "Vidas Secas" (1938) e "São Bernardo" (1934), absolutos em concisão, clareza, objetividade e perfeito domínio da linguagem. Tudo, devo ressaltar, sem qualquer prejuízo em termos estéticos, pois que se trata de literatura em seu sentido pleno, dotada de originalidade estilística e beleza plástica exemplarmente sedutora.

É improvável que William Zinsser tenha lido o escritor brasileiro, mas estou certo de que, se o tivesse feito, haveria de tomá-lo como modelo do que afirma em seu livro de forma conclusiva: "[...] o segredo da boa escrita é despir cada frase e deixá-la apenas com seus componentes essenciais."

A coisa, contudo, não é tão simples o quanto parece ser. Como o próprio debate a que me refiro no primeiro parágrafo dá a ver, existem outras possibilidades, outros caminhos para o sucesso na difícil arte de escrever bem. Assim como os concisos, que fazem da economia lexical e sintática o segredo de sua arte, há aqueles que ficam a meio caminho, na linha de um Eça de Queiroz ou um Machado de Assis; os que se alargam em adjetivações e floreios, maneirismos, construções frásicas longas e artificiosas, e nem por isso menores enquanto escritores fiéis a estilos de época definidos, com seus clichês e manias, à maneira de José de Alencar, no Brasil, e os igualmente românticos Camilo Castelo Branco e Almeida Garret, em Portugal.

Se a concisão é elemento incontornável em determinados escritos, nos quais a clareza de estilo e objetividade expressiva são elementos altamente recomendáveis, na literatura é diferente e nem todo bom escritor é Graciliano Ramos. Não há, portanto, segredos, regras infalíveis ou obrigatórias. Importa, mesmo, é aquele traço pessoal intransferível, aquele jeito incomunicável de escrever com estilo pessoal, fazendo escolhas subjetivas capazes de dar forma elegante ao texto, para o que pesa positivamente a sensibilidade estética de cada um --- que pode ser educada, nunca escravizada a gramatiquices. Para isso, insisto, não há receitas, modelos a seguir. É conversa íntima do escritor com ele mesmo, sem perder de vista, por óbvio, aquele "leitor ideal" de que nos falou Umberto Eco.*

No mais, é lendo muito, lendo apaixonadamente, que se descobre o caminho e se bebe do melhor remédio contra defeitos e limites, até se tornar um bom escritor.

*Aquele que tem um papel ativo na leitura, que permite não só compreender o texto, mas reconhecê-lo em sua especificidade. 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Assim, como tantas outras

Um espectro ronda a Europa --- o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjugá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.

Qual partido de oposição não foi acusado de comunista pelos seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou aos seus adversários de direita ou de esquerda a alcunha infamante de comunista?

Os parágrafos acima não foram escritos por mim. Eles iniciam de forma arrebatadora o "Manifesto do Partido Comunista", de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848. Reproduzo-os intencionalmente, assim, sem aspas, para discorrer sobre o uso da velha pecha pela extrema direita no Brasil, 175 anos desde que foram escritos e divulgados como uma bomba na Inglaterra.

Naquela época, o continente europeu vivia grandes conflitos. As lutas entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores atingiam níveis de tensão insuportável. Pela primeira vez, de forma assim clara e objetiva (e extremamente bem escrita), os abismos sociais eram tratados com pretensão científica, e nascia, no contexto de uma Europa em crise, a utopia de uma sociedade menos injusta e desigual.

Repensava-se a luta de classes.

Com o "Manifesto Comunista", Marx e Engels denunciavam de forma intelectualmente explosiva a exploração do proletariado pela burguesia --- e dava-se a ler o mais importante tratado político jamais escrito.

Em essência, o texto propugnava a possibilidade de existência de um modelo de sociedade em que todos tivessem acesso a uma vida decente. O documento termina conclamando a união dos explorados e oprimidos: "Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossos grilhões".

Se é verdade que o ideário marxiano foi muitas vezes usado à revelia do que propõe, de que o stalinismo é o exemplo mais inconteste, não é menos verdade que permanecem válidas suas diretrizes, e que sejam os mesmos os mecanismos de exploração denunciados 175 anos atrás.

Somente num país atrasado intelectualmente, e no qual se explora a ignorância dos outros como forma de obter dividendos políticos inconfessáveis, é comum que se use vulgarmente a palavra "comunista" como sinônimo do que não presta, do que em si representa o mal para a sociedade. Somente num país como o Brasil, em que se lê mal e se lê tão pouco (e onde deseja imperar a desfaçatez), é comum assistir-se ao triste espetáculo de ontem, no Senado Federal, ao final dos trabalhos da CPMI do 8/1, onde a palavra "comunista", proferida por gente iletrada e sem escrúpulos, ecoou por corredores e salões, insurgindo-se, à maneira dos moleques, contra o histórico relatório da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) em defesa da democracia e do Estado democrático de Direito no Brasil.

Há poucos anos, em Berlim, hospedado nas proximidades da Avenida Karl Marx, em que o busto do intelectual alemão, altaneiro e belo, sobressai em meio a automóveis, ônibus e caminhões, vi pessoas colocarem ao pé do monumento arranjos de flores, num gesto que soube recorrente em plena Alexanderplatz. Para um povo bem-informado e culto, ser comunista é uma forma de pensar.

Assim, como tantas outras.

 

 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

O centenário de um clássico

Não é raro que grandes ficcionistas tenham se revelado igualmente grandes como ensaístas. Sob este aspecto, o inglês E.M. Foster, o russo Vladimir Nabokov e o peruano Mario Vargas Llosa, não necessariamente nessa ordem, são nomes que entraram para a história da melhor ensaística com trabalhos notáveis. Com não menor destaque, aparece, entre esses, Italo Calvino, com a diferença de que, desgarrando-se dos outros aqui citados, pelo menos um de seus memoráveis ensaios é referido à larga, mesmo por aqueles que nunca se dedicaram à literatura com maior pretensão: "Por que ler os clássicos".

É nesse texto, de 2002, publicado, no Brasil, em 2007, pela Companhia das Letras, que aparece, entre 14 outras, a célebre definição "Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer".

A definição, como se vê, ressalta uma das propriedades dos grandes livros: a capacidade de nunca serem esgotados em suas potencialidades de conteúdo, ressignificando-se através dos tempos em leituras e releituras, análises, exegeses e novas chaves de interpretação, num tipo de função literária que, à falta de melhor juízo, pode-se identificar como "sintonizadora", permanecendo atuais e carregadas de sentido ano após ano.

Mas o ensaio de Calvino, por óbvio, vai além do verbete já muito conhecido. No segundo, como a acrescentar percepções novas ao primeiro, ele afirma: "Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los". E, no quarto, com maior precisão, ele diz: "Toda leitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira".

Como afeito a paradoxos, todavia, diz ele no verbete seguinte: "Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura". É que Calvino, como pode-se ver no verbete sete, mostra-se atento ao fato de que "Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Importante destacar, contudo, que o próprio Calvino é assertivo em reconhecer que toda definição traz em si vazios, terrenos intocados, insuficiências de que parece extrair a própria substância de suas reflexões. É nesse sentido que se pode concluir que clássicos são inesgotáveis e indefiníveis, razão por que "a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos", como diz de modo aparentemente ingênuo ao final do ensaio. E é por esta razão, acrescento eu, que se deve ler a obra (ensaística, e ficcional, sobretudo) desse escritor extraordinário que contaria neste mês de outubro cem anos.

Italo Calvino nasceu em 1923, em Santiago de Las Vegas, arredores de Havana, Cuba, e transferiu-se para a Itália pouco antes de completar dois anos. Atuou nas lutas contra o fascismo durante os anos de guerra e foi membro do Partido Comunista Italiano, figurando nas lides intelectuais como uma das vozes mais respeitadas. Em 1946, depois de uma temporada em Sanremo, instalou-se em Turim, onde ingressou na universidade e realizou um brilhante trabalho de pesquisa sobre Joseph Conrad ("O Coração das Trevas"). Estreou na ficção com o livro "A trilha dos ninhos de aranha" (1947), ainda preso às narrativas tradicionais do neorrealismo italiano, forma compatível com as intenções do livro: deixar registradas as impressões e emoções como testemunha dos enfrentamentos da Resistência contra as tropas alemãs e os violentos métodos das brigadas fascistas.

Mas é a fase "adulta" de sua vida e obra que lhe dá a notoriedade como intelectual e escritor (dos maiores das seis ou sete décadas encerradas em 1985, quando morreu aos 61 anos), e que o consagram como contista, romancista e ensaísta inspirado e dedicado com sucesso a rever os procedimentos narrativos dominantes. Dessa inquietação artística, nasce uma ficção de altíssimo nível, de que os livros "Se um viajante numa noite de inverno" (1979) e "As Cidades Invisíveis" (1972) são leituras obrigatórias. Neste, Calvino imagina dezenas de comunidades fantásticas (fabulosas, talvez), muitas delas invisíveis pelos caminhos da física, algumas outras em descompasso com os fundamentos da geografia e nas quais ocorrem coisas incompatíveis com a realidade factual.

Por último, num exercício de subjetivação de resto aceitável em se tratando de literatura, tenho o atrevimento de sugerir dois títulos que me parecem ainda mais ajustados ao que se pode definir como clássicos "calvineanos": "O Barão nas árvores" (2009) e o desconcertante "O Visconde partido ao meio" (1952), livros inquietantes, intensos, forjados à maneira de um dos gênios da literatura universal.

P.S. A obra de Italo Calvino acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Centenário de Fernando Sabino

5 da manhã desta quinta-feira, 12 de outubro. Sento, à frente do computador, para escrever a coluna da semana, e me ocorre lembrar que há exatos cem anos nasceu Fernando Sabino. Sei que muitos haverão de torcer o nariz a muita coisa que direi aqui, a começar pela afirmação de que se trata do maior cronista brasileiro --- maior, no gênero, que Rubem Braga e Machado de Assis --- e só seguido de perto, guardadas as diferenças de estilo, por Nelson Rodrigues.*

É claro que tomo por medida uma espécie em que Sabino foi um verdadeiro mestre: a forma narrativa curta que se situa num espaço rigorosamente literário, pautado pela pegada ficcional, e no qual os outros autores aqui mencionados transitaram com menor ênfase. Foram mais autores de texto para jornal, muito embora grandes, mesmo quando adoçaram suas crônicas com a sensibilidade estética e a originalidade estilística que os tornaram inconfundíveis.

Fernando Sabino foi exemplar num tipo de crônica que sobressai pela rapidez, exatidão no emprego da palavra e um componente lúdico que absorve o leitor por completo, razão por que é quase imperceptível a linha que separa sua crônica do conto propriamente dito.

Se são mesmo delicadas as distinções entre uma forma e outra, o que enseja que as antologias não raramente confundam 'crônica' e 'conto', não significa dizer que inexistam, mesmo aos olhos de leitores não especializados. Quer dizer: a crônica, geralmente curta, destinada a pequenos espaços de jornais e revistas, além da brevidade que resulta disso, é o mais das vezes narrada em primeira pessoa, do que sobressai a visada subjetiva, o olhar do eu sobre o fato explorado no texto como assunto. É, portanto, o ponto de vista do autor que interessa ao leitor, o que comumente empresta ao texto algum perfume de poesia, aspecto característico da crônica em que Vinicius de Moraes --- para não citar o próprio Rubem Braga --- é notável.

Para não falar de outras marcas dominantes na crônica: linguagem direta, espontânea, jornalística, ainda quando o escritor dispensa ao texto um estilo metafórico que beira o que se define como rigorosamente literário. A tudo isso, importante ressaltar, soma-se uma invariável atenção para o fato efêmero, o 'desimportante' fugaz que salta à sensibilidade do cronista como algo digno do registro textual.

Mas em Fernando Sabino esses componentes adquirem uma fisionomia especial, pautando-se pelo que Italo Calvino, o escritor italiano nascido em Cuba, define como mais nobre marca na boa literatura: um senso de medida rigoroso na construção do texto.

Aqui reside, pois, o que diferencia Fernando Sabino dos demais: seus textos, preservando elementos característicos da crônica 'clássica', inclinam-se para o que tradicionalmente chama-se de 'conto', sem, no entanto, perder a sua essência enquanto gênero narrativo. Explico-me: as crônicas de Fernando Sabino, ao lado de voltarem-se para o fato transitório, passageiro, inusitado etc., dão a esses fatos uma pitada de luz que os faz romper com a mera 'efemeridade' para ganhar o status de 'transcendentes'.

Aqui está a grande virtude desse cronista de personalidade autoral ímpar, pois que soube como  poucos dar a uma forma narrativa menos pretensiosa, mais fadada ao esquecimento, porque relato de ocorrências do dia a dia, do inusitado, um toque de 'permanência' que é próprio do conto, sem perder a leveza da narrativa ligeira, leve, solta, própria da crônica enquanto literatura. Conclua-se: se é típico da crônica ser um gênero híbrido, pontuado pelo estilo entre oral e literário, em Fernando Sabino essa marca adquire uma dimensão estética de tal modo elevada, que faz dele um caso à parte --- e de sua obra, o que existiu de mais marcante em meio aos cronistas brasileiros.

Mas, como escritor, Sabino foi além do texto curto, no qual ombreou-se, como disse, a tanta gente boa e igualmente importante (Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, entre outros), com destaque para o emblemático "O Encontro Marcado", nosso maior romance de formação, tão influente sobre os de minha geração quanto "A Idade da Razão", de Jean Paul Sartre, ou "Wilhem Meister", de Goethe. A esta altura, que me permitam mais uma subjetivação: Eduardo Mariano, o protagonista do romance de Fernando Sabino, alterego do autor, foi para nós o Julien Sorel (Stendhal), o Rastignac (Balzac), verdadeiro símbolo de uma educação cultural marcada pela 'perfectibilidade' de nossa moral irrequieta e carregada de sonhos.

Na fase derradeira de sua vida como grande escritor, Sabino terá cometido o deslize de emprestar seu enorme talento à produção de um livro comercial e de qualidade esteticamente questionável, "Zélia, uma paixão" (1991), o que lhe custou um tipo de cancelamento desnecessário e perverso: o amigo e também escritor Millôr Fernandes, para ficar num exemplo, publicou no Jornal do Brasil uma charge em que Fernando Sabino aparece carregando uma mala estufada de dinheiro.

Escorraçado das rodas e dos acontecimentos literários, evitado por ex-amigos, Fernando Sabino desceria ao inferno do que hoje se poderia chamar de redes sociais, amargando o peso dos rancores e das incompreensões, indiferentes, todas, ao fato de se tratar de um escritor em cuja obra pulsa um senso de humanidade extraordinário. Nesse sentido, ocorre-me lembrar uma de suas crônicas irretocáveis, "A Última Crônica", obra-prima sobre a desigualdade social entre as famílias brasileiras.

No centenário de Fernando Sabino, assim, os amantes da boa literatura temos a oportunidade de ressignificar juízos, nomeadamente os não estéticos, e marcar um reencontro com a obra de um grande escritor brasileiro.

*Incomparável a qualquer outro escritor brasileiro, Machado de Assis dedicou-se a escrever crônicas para jornal: textos filosóficos, políticos, sobre o cotidiano e de crítica literária, que não têm qualquer relação com o tipo de crônica a que me refiro nesta coluna. Quanto a Nelson Rodrigues, mais adequado seria considerá-lo "ensaísta", na linha do que foi examinado por Luis Augusto Fischer no seu notável "Inteligência com dor", em que afirma que Nelson Rodrigues foi o Montaigne do Brasil. 

  

 

 

 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Retrato na parede, mas como dói*

Para se conhecer uma cidade é necessário viver nela três dias ou trinta anos. Ao final dos trinta anos, verifica-se que o julgamento após três dias é que é o bom. Ocorre-me pensar nas palavras de Jean Cocteau (1889-1923), no caminho de volta.

Debaixo de um calor de 40 graus à sombra, voltei a Iguatu para rever amigos e matar saudade da terrinha.

Infelizmente, o que ocorre comumente aos que deixam suas "aldeias" queridas em busca do desconhecido em outras paragens, deparei com uma cidade em que não me reconheço mais. E na qual não me faço reconhecer.

Se o céu, aos olhos cansados, ainda é o mais lindo, como afirmei em crônica antiga, desfigurou-se a paisagem, tomada de prédios feios onde, ainda há pouco, havia casarões com perfumes do estilo neocolonial, impondo-se, ao mesmo tempo, pela solenidade da grandeza e sobriedade dos traços.

Onde havia jardins bem cuidados e praças acolhedoras, como a nos fazer lembrar habitações de velhos cortiços, veem-se barracas mal levantadas em que se vendem salgados e guloseimas insalubres.

Aqui, não mais as calçadas sobre as quais se ia ao longe, sem o risco de escorregões e tropeços; acolá restos do que foram, um dia, árvores multidecenárias a convidar os andantes para dois dedos de prosa sob suas copas frondosas.

Onde se viam paralelepípedos de fino corte, agora restos de asfalto a castigar, impiedosamente, aqueles que ousam sair pelas ruas, dando-lhes de bandeja cinco graus a mais de calor escaldante. Hoje, apenas sobem dos rachões e buracos, poeira e fumaça, enquanto motos tomam de açoite as vias mal sinalizadas, --- e os automóveis, ainda mais ameaçadores e mal educados, colocam em risco os que se atrevem a atravessar de um meio-fio a outro.

A poluição visual é alucinante: cones, correntes, cordas, autoritários e ilegais, a demarcar como propriedade privada o que é coisa pública.

Não mais as rodas de conversa à boquinha da noite; não mais o clima ameno, a brisa generosa, o farfalhar das folhas anunciando a chegada do Aracati, tão pontual e tão doce, como a cobrir de carinho toda a cidade.

O lugar em que nasci e que guardo na memória --- morro de saudade todos os dias! ---, decididamente, não existe mais. É retrato na parede, como quis o poeta, em poema célebre.

Mas como dói.

 

*Verso conhecido, de Carlos Drummond de Andrade.