terça-feira, 27 de novembro de 2018

A morte do esteta

Amigo me telefona para falar sobre Bernardo Bertolucci, morto nessa segunda-feira 26, aos 77 anos. Ao final, faz a provocação:  ---  "Espero a crônica!", diz-me, sabedor de que no cinema é a beleza da linguagem o que mais me seduz. E Bertolucci era, acima de tudo, um esteta. A perfeição do quadro e da luz, a suavidade dos movimentos de câmera, a composição esmerada da imagem, que nem um pintor da renascença, davam aos filmes de Bertolucci uma sofisticação estética de encher os olhos, e tocar a alma como muitos poucos foram capazes de fazer.

Desligo o celular e me vem à tela da retina uma sequência de O Último Imperador, 1987, que considero uma das coisas mais lindas de sua filmografia  ---  a lágrima, discreta, já escorrendo pela maçã do rosto: Numa praça imensa da Cidade Proibida, Pu Yi, o garoto que protagoniza o filme, corre em busca de um balão (amarelo?) e a câmera de Bertolucci o acompanha num travelling carregado de poesia e cor.

Para Bernardo Bertolucci, as estratégias narrativas eram tão ou mais importantes que o significado do filme, no que, aliás, destacou-se exemplarmente bem. A prova disso é que muitas vezes encontrou na literatura o esteio de filmes memoráveis, como em Antes da Revolução, de 1962, plasmado no romance Cartuxa de Parma, de Stendhal, verdadeira obra-prima sobre as revoluções. Ou, um pouco mais tarde, como faria em O Conformista, de 1970, uma adaptação bem sucedida do livro de Alberto Moravia, Jean-Louis Trintignant no papel principal, soberbo, como sempre.

Que dizer, então, de películas apaixonantes como La Luna, 1979, o mais "freudiano" de seus filmes, todos eles perpassados de motivações psicanalíticas, no caso, sobre a relação filho e mãe? Do épico Novecento  (1900, no Brasil), de 1976, sobre a utopia em torno de um mundo melhor e mais humano? De O Céu Que nos Protege, 1990, sobre o antagonismo entre culturas?  Que dizer, insisto, de O Último Tango de Paris, 1973, um dos mais belos filmes da história do cinema, tão equivocadamente recebido por conta de uma "simples" cena de sexo? Sim, porque nele, em que pese o erotismo da cena referida, a famigerada cena da manteiga, o que se discute é muito mais que isso: é a angústia de um homem para o qual a vida deixou de ter sentido, e o mundo é apenas um vazio imenso.

Filho de poeta (Atílio Bertolucci), e crítico incansável do fascismo italiano, contra o qual fez de sua arte um instrumento de luta, Bernardo Bertolucci fez seus últimos filmes preso a uma cadeira de rodas, vítima de uma cirurgia de coluna malsucedida. Ironicamente, a propósito, disse durante uma entrevista:  ---  "Sempre gostei tanto de travelling, nunca imaginei que terminaria a vida num travelling permanente, vendo o mundo da perspectiva do deslocamento dessa cadeira". A voz incontida do esteta.

O fato é que o cinema perde com a morte de Bernardo Bertolucci um dos seus mestres mais adorados. Fica a beleza de sua arte, a que podemos, felizmente, nos entregar, vez e outra, sempre que a vida, como está em Nietzsche, pretenda nos matar de tanta realidade.

 

  

 

 

 

  

 

 

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

As mil vidas de Jean-Paul

A palavra escrita não para de surpreender, o que é maravilhoso num mundo dominado pela imagem. Explico-me: "garimpando" estantes da livraria Cultura, no exercício diário do vício, eis que deparo com um livro intrigante  ---  não por outra razão: do autor, nada sabia além do fato de que se trata de um ator importante, e ícone da Nouvelle Vague francesa, uma estética cinematográfica que "amo de paixão", como diria Carol, minha filha. Como escritor, absolutamente nada conhecia de sua autoria. Eis o porquê da surpresa. Refiro-me Jean-Paul Belmondo, cuja autobiografia chega às lojas de livros brasileiras com um título curioso: "Mil vidas valem mais do que uma".

Tomo nas mãos um exemplar e, ali mesmo, leio com sofreguidão essa pérola sobre uma vida muito mais rica do que, cinéfilo contumaz, supunha eu até agora.

Delícia de livro este em que o astro francês desfia uma história pessoal marcada por experiências emocionantes, mesmo quando a narrativa se dedica às coisas mais banais: a infância em Neuilly-sur-Seine, onde nasceu em 1933; a convivência inesquecível com os horrores da guerra; a admiração pela mãe; o ateliê do pai, escultor, e os muitos amores. É que o texto de Belmondo, vazado num estilo leve e descontraído, como é raro no gênero, leva-nos a percorrer os mais inusitados caminhos, numa prática de leitura que a um tempo ensina e seduz.

Belmondo, sabe-se, além de protagonizar o filme Acossado, 1960, de Jean-Luc Godard, um dos marcos do cinema moderno, atuou em mais de oitenta filmes, sem falar nas dezenas de peças teatrais encantando plateias do mundo inteiro com o perfil "feio charmoso" que levou a cantora Édith Piaf a fazer a famosa revelação:  ---  "Saio como [Alain] Delon e volto com Belmondo".

O livro vai, assim, de página em página, proporcionando-nos um passeio atemporal pela Europa e pela história do cinema moderno. Intitulado "Então, Godard", o capítulo em que se reporta ao filme que o consagrou, contracenando com a lindíssima Jean Seberg, é uma aula de construção narrativa. É que Belmondo lança mão de uma forma curiosa de expor o seu pensamento sobre a personalidade controversa do diretor francês, no que surpreende com um depoimento originalíssimo que vai da repulsa ao mau caráter à verdadeira adoração ao gênio do cinema. O discurso desliza de um olhar a outro com a leveza de um mestre da escrita, sem sobressaltos ou declarações minimamente antipáticas tão comuns quando se é levado a julgar alguém. É sublime o estilo, na sua simplicidade quase franciscana.

As páginas em que narra a dura realidade da Segunda Guerra constituem um registro invulgar sobre a insanidade do combate armado entre homens: Jean-Paul, então com onze anos, e seus amigos de mesma idade, auxiliam um padre a recolher cadáveres de aviadores "abatidos" nos céus de Clairefontaine, cidade onde vivia com os pais. Tudo, reafirmo, com um domínio de linguagem que impressiona pela força de uma narrativa digna de nota mesmo se estivéssemos diante de um escritor consagrado.

Nomes célebres do cinema, das artes plásticas, do teatro, da literatura, protagonizam histórias impagáveis vividas com Jean-Paul Belmondo em diferentes países. Nesse sentido, aliás, é que o livro ganha fôlego enquanto registro do que houve de mais significativo na Europa na segunda metade do século XX. Aí estão Michelangelo Antonioni, Woody Allen, Ursula Andress, Jean Anouilh, Claude Chabrol, François Truffaut, Laura Antonelli, Alain Resnais e Gérard Depardieu, para citar apenas algumas celebridades que povoam essa mil vidas de Jean-Paul Pelmondo.

Mas o livro, diga-se por fim, é muito, muito mais que um depoimento de um astro do cinema e do teatro sobre seu tempo. Em muitas passagens, deparamos com o homem consciente do seu papel, politizado, portador de mensagens extremamente atuais sobre a impossibilidade de nos colocarmos neutros diante das contradições de um mundo submetido à lógica do capital, em que se professa, de forma desavergonhada, a neutralidade impossível. Referindo-se às corporações militares, por exemplo, à época da Segunda Guerra, diz sobre um dos chefes: "Usa a braçadeira das forças de Resistência quando precisa e tira quando se sente constrangido". 

E arremata, com uma precisão cirúrgica: "Quando a batalha surge, convém escolher de que lado lutar. Mas, para sobreviver, há os que fazem questão de não ter opinião, de esquecer de escolher um lado. Querem a paz a qualquer custo, até mesmo às custas da própria honra. No final do conflito, não pensarão duas vezes antes de marchar com os norte-americanos [...]. A duplicidade vem acompanhada de certa audácia".

Que bela surpresa estas Mil vidas... de Jean-Paul Belmondo.

 

 

 

 


 

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Processo de Kafka

Como uma personagem dos pesadelos de Kafka, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva percorreu mais uma vez, esta semana, os corredores do Tribunal. Os que conhecem a obra do escritor tcheco, nascido em Praga em 1883, sabem do que estou falando. Por dever de ofício, no entanto, tentarei ser claro para os que nunca leram obras como A Sentença, Na Colônia Penal e, principalmente, O Processo, algumas das páginas mais luminosas sobre a injustiça entre os homens.

 

Os dois primeiros, ambos de 1916, tratam, respectivamente, da condenação sem causa e do cumprimento injusto da pena estabelecida pelo Tribunal. Mas é o terceiro que se pode considerar a obra-prima de Franz Kafka.

 

O romance narra o martírio do bancário Josef K., retirado do convívio social em função de um processo marcado por contradições e absolutamente inconsistente do ponto de vista legal. Preso, portanto, sem provas que o justifiquem, K. é julgado por motivos que ignora e, finalmente, executado. O livro é tomado como referência em cursos de Direito, e rendeu, de que me lembro, duas obras-primas do cinema.

 

No estilo enxuto e cru que é mesmo uma de suas marcas, o texto de Kafka começa assim: "Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal, foi detido certa manhã. [...] Imediatamente bateram em sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto, que emprestavam à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviriam todas aquelas coisas."

 

A partir daí, sustentando-se em delações vagas, imprecisas, invariavelmente marcadas por contradições, cuja verdadeira razão de ser nem mesmo ao leitor é dado conhecer em profundidade, posto que o livro constitui uma metáfora do desespero humano e sua impotência ante a injustiça inelutável de que é vítima, tem início o processo que serve de título à obra atemporal de Franz Kafka.

 

Lembrei do livro ao ver, ontem, na TV, as imagens do interrogatório de Lula. Acompanhei a sua angústia, a sua impotência diante do discurso autoritário da juíza Gabriela Hardt,  como a cumprir, ela mesma, seu papel na farsa de um julgamento para o qual, desde muito cedo, todas as cartas estão marcadas. Não era o discurso de Hardt um "discurso de autoridade", para me valer da teoria de Mikhail Bakhtin, aquele que se abre para o contraditório e para a interpretação criadora de outros contextos, nas palavras felizes do pensador russo. O discurso da juíza Grabriela Hardt era o "discurso autoritário", fechado, unilateral, vinculado a um interesse externo, ao dogma político dominante, como a impor nossa relação ideológica com o mundo:  ---  "Isso é um interrogatório e se o senhor continuar nesse tom comigo, a gente vai ter problema!" 

 

No parágrafo com que desfecha seu livro sempre atual, Kafka descreve os derradeiros instantes de Josef K., o pescoço entregue à impiedade de seus algozes: "... as mãos de um dos senhores seguravam a garganta de K., enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois a revolvia ali duas vezes. Com os olhos vidrados conseguiu K. ainda ver como os senhores, mantendo-se muito próximos diante de seu rosto e apoiando-se face a face, observavam o desenlace. Disse:  

--- "Como um cachorro!  ---  era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo".

 

As palavras de Lula, ao final do depoimento, ontem, lembraram-me as de Josef K.:  ---  "Eu me considero um troféu que a Lava Jato precisava entregar!" 

 

 

 

 

 

 

 

 


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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O presidente louco

Golyádkin começou a experimentar duas sensações: uma, de uma felicidade fora do comum, a outra, a de que não conseguia mais se aguentar nas pernas. (Dostoiévski, O Duplo)

 

É bom "já ir se acostumando", mas a sensação de desordem que a chamada equipe de transição do presidente eleito, o próprio à frente,  vem causando, é inacreditável. A habilidade no trato de questões importantes, se é lícita a comparação, é a mesma de um macaco embriagado numa loja de cristais. 

 

A menos de dois meses da posse, a dificuldade de Bolsonaro para lidar com a linguagem escancara o perfil do que será seu governo: um diz/desdiz, um faz/desfaz que tendem a colocar o país numa situação de indefinição perante o mundo, cujos prejuízos serão impensáveis nos mais diferentes setores.

 

Primeiro afirma que acabará o Ministério do Trabalho, depois aponta para uma divisão da pasta em três frentes, mas não diz quais; fala que fundirá num só os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, mas já se curvou à grita de ambientalistas e até mesmo dos grandes empresários do setor de agronegócios, receosos da repercussão indesejável que a medida teria lá fora. 

 

Anteontem, em entrevista, afirmou que o Ministério da Educação absorverá o Ministério da Cultura, mas, agora, acena com a possibilidade de que ambos sejam incorporados à Ciência e Tecnologia...

 

Enquanto isso, o todo-poderoso Paulo Guedes mal recomenda uma "prensa" no Congresso, tem de engolir a aprovação do aumento do Judiciário com uma projeção de gastos em torno dos 5 bilhões a mais a partir do próximo ano. Engraçado, não fosse um desastre.

 

No início da semana, o presidente eleito decidiu que o número de ministérios seria reduzido para 15, mas, hoje, sexta-feira 9, admite que serão 18 pastas; e o famigerado MDIC (Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior) pertencerá mesmo à Economia, como anunciado antes? Tente-se compreender...

 

Em tempo: a CGU, que há cinco dias faria parte do superministério da Justiça confiado a Sergio Moro, agora terá status de ministério e "seguirá com vida própria" segundo o próprio presidente eleito. É pouco? Pois veja, o tão festejado ministro da Defesa, General Heleno, desce nesta quarta um degrau, pois deverá assumir o Gabinete de Segurança Institucional.

 

O mais grave é que, sem precedentes na História, o Brasil abre o flanco para o olhar ameaçador do terrorismo muçulmano com o desnecessário anúncio de que transferiria a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, o que nada traz de benéfico para o país e tão-somente constitui uma demonstração oficial de que se alinhará mesmo aos interesses norte-americanos, custe o que custar. Mas, tranquilizemo-nos, o assunto, diz agora Bolsonaro, não está resolvido.

 

Para além de dar provas irrecusáveis de que Jair Bolsonaro é mesmo despreparado para dirigir o país, a bagunça faz-me lembrar daquele personagem inesquecível de Dostoiévski no romance O Duplo. Mergulhado em dilemas, um pobre homem descobre que a realidade é bem diferente do sonho, e que a imagem que desenhou de si mesmo não tem correspondente nas suas possibilidades humanas.

 

No romance, Golyádkin (é como se chama a personagem) tem duas vozes, a dele e do seu duplo... razão por que se vê dividido entre a fantasia e a realidade, a ambição e a humildade, os desejos e as frustrações. O resultado disso, claro, pode ser a loucura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

   

 

     

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

PREFÁCIO - ENSAIOS SOBRE O CINEMA MODERNO

Tenho pela produção acadêmica de Régis Frota um profundo respeito. Mais que isso: nutro pelo estudioso de cinema que é uma admiração que dedico, subjetivação à parte, aos grandes nomes brasileiros no campo do audiovisual  ---  gente "grande", a exemplo de Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, Amir Labaki, Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany. Para não falar dos mais antigos, como Pedro Lima, Moniz Vianna, Rubem Biáfora, Hugo Barcelos ou Francisco Luiz de Almeida Salles. É visitar (ou revisitar) a sua vasta produção para entender que não vai, nisso,  nenhum exagero.

 

Estudioso atuante em diferentes áreas, e historiador de cinema dotado de sólida erudição, Régis Frota vem contribuindo, há pelo menos 40 anos, para o que existe de mais significativo entre nós sobre a Sétima Arte. Agora, pela segunda vez em menos de doze meses, vem a público com um novo livro  ---  para enriquecer o debate e dar relevo ao que se publicou no Brasil sobre cinema nos últimos tempos.

 

Desta vez com uma coletânea de artigos em que esmiúça, com um domínio de linguagem notável, questões importantes acerca do cinema moderno. Debruça-se, assim, com a sensibilidade e o rigor analítico de sempre, sobre a filmografia de cineastas incontornáveis, ninguém menos que Ingmar Bergman, Krzystof Kieslowski e Andrei Tarkovski, para que se tenha uma noção do que é este pequeno-grande livro que o leitor tem em mãos.

 

Para aqueles que já conhecem de perto a obra de Régis Frota (e tenho o orgulho de estar entre esses) Ensaios Sobre o Cinema Moderno cristaliza uma nova perspectiva de análise, posto que o autor, habitualmente situado entre os estudiosos de tendência "crítico-histórica", envereda, agora mais, pelo viés "formalista" que estava mesmo a merecer dele maior atenção. Não que Régis Frota não fosse, desde sempre, possuidor de uma notável acuidade analítica sob qualquer aspecto em que o objeto de exame seja o cinema. Pelo contrário, pois Régis Frota é, entre nós, daqueles que conhecem melhor o cinema no antes, no durante e no depois da realização de um filme, mas talvez por pertencer a uma escola demasiado comprometida com a defesa do cinema nacional e latino-americano em nível internacional, mais pelo engajamento político que o fez admirar tanto o Cinema Novo e o desbravador Glauber Rocha em particular (e nisso é dos maiores especialistas que temos) e menos pelas qualidades rigorosamente estéticas dos mesmos, diga-se em tempo.

 

Nos textos aqui reunidos, sem descuidar do conteúdo dos filmes examinados, que é mesmo o esteio que sustenta o estudo sob diferentes aspectos  ---  filosóficos, psicanalíticos, sociais etc.  ---, Régis Frota mostra-se mais atento aos procedimentos formais de cada quadro, cena ou sequência para os quais se volta com a competência de um profundo conhecedor da matéria. Quando examina a filmografia de Andrei Tarkovski, por exemplo, Régis Frota mantém-se em sintonia com os fundamentos estéticos professados pelo cineasta russo no belíssimo Esculpir o Tempo, como ele, supostamente, consciente de que "a sua filmografia poderia conferir-lhe aquela intensidade estética de sentimentos que transformaria a ideia da história numa verdade confirmada pela vida".

 

Não à toa, assim, é que intitula Andrei Tarkovski e o Cinema do Interior Humano aquele que considero o mais interessante capítulo do livro, pela contribuição que dá para uma compreensão possível da difícil filmografia do cineasta russo, marcada, é indispensável saber, por uma invariável tensão de cunho dostoievskiano dentro da qual se movimentam personagens "exteriormente estáticos e interiormente cheios da energia de uma paixão avassaladora", segundo palavras do próprio realizador russo.

 

É relevante dizer que, em dia com as mais recentes contribuições da filosofia para o campo da exegese cinematográfica, tanto em relação a Tarkovski quanto em relação a Kieslovski, Régis Frota dialoga, ainda, com o pensamento do esloveno Slavoj Zizek (sem esquecer o clássico estudo de Walter Benjamin sobre a Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica) e equilibra-se, com apreciável segurança, sobre o delicado fio que separa, na perspectiva de suas filmografias, os componentes psicanalíticos, religosos e marxistas.

 

É claro que o livro de Régis Frota, assim, contando nove pequenos capítulos, não tem a pretensão de cobrir um arco já por demais estendido do que se convencionou chamar de cinema moderno, mesmo considerando-se que essa modernidade se deu na Sétima Arte muito depois do que ocorrera às outras linguagens, por volta de 1910, a exemplo das Artes Plásticas. Tampouco se pode fechar os olhos para o fato de que na Alemanha e na antiga União Soviética, com o expressionismo e o construtivismo, respectivamente, é onde estão as raízes dessa modernidade, elevados em expressiva porção pela presença marcante de grandes diretores na Itália e nos Estados Unidos, onde pontuam, com destaque, nomes importantes como os de Rossellini e Welles com suas inapagáveis contribuições para o repensar da narrativa clássica e a inserção definitiva da cinematografia como encenação da realidade do homem e do mundo. O olhar de Régis Frota, nesse sentido, não se volta para esse tipo de historicismo já muito remoído, e seu enquadramento é despretensioso e consciente de que este papel já fora desenvolvido, por ele mesmo, com rigor, em outras de suas muitas publicações: artigos de jornais, revistas e livros etc., onde examina à perfeição, por exemplo, o cinema francês, nomeadamente a partir do final dos anos 1950, com a nouvelle vague, uma de suas paixões.

 

Por último, é importante ressaltar o fato de que Régis Frota dedique, neste livro, espaço para o cinema brasileiro com o registro oportuno do percurso feito por Nelson Pereira dos Santos, bem como para o cinema chileno contemporâneo na figura do extraordinário Sebastián Lelio. E o que dizer de uma abordagem em que se confrontam nomes como os de Patrício Guzman e Eduardo Coutinho?

 

Não é pouco, admita-se, para um trabalho que o próprio autor considera assumidamente "apressado", quero crer, como a nos advertir de que novos estudos se seguirão a este Ensaios Sobre o Cinema Moderno. Um livro para se ler com atenção.

 

Álder Teixeira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, é autor, entre outros, do livro 'Bergman, Estratégias Narrativas'. 

 

         

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

      


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Em pequenas doses

Em todo caso, precisamos lembrar que quem deve responder primeiramente pela vitória do mal no mundo não são seus executores cegos, mas os servidores do bem, que são espiritualmente capazes de ver. (F. Stepun)

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É conhecido o provérbio latino atribuído a Plínio, o Grande: "In vino, veritas", ou seja, "no vinho, a verdade". Defendo que também o voto revela o homem. Assim foi.

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Pouco tempo se passou, e nós mesmos nos curvamos sob o seu fardo, porque ninguém nos ensinou o que era a liberdade. Só nos ensinaram a morrer pela liberdade. (Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura 2015).

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Para quem defendeu a isenção do juiz Sergio Moro já soa mal o seu encontro com Bolsonaro, nesta quinta-feira, quando deverá confirmar seus superpoderes de novo ministro da Justiça. Segundo Mourão, o vice do presidente eleito, o convite se deu antes da eleição. Sim, entendi.

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A propósito, está na edição de quinta-feira da Folha de S. Paulo, juízes federais, dirigentes de associações de magistrados e ministros do Supremo avaliam que, ainda que Sergio Moro rejeite o convite para a superpasta da Justiça de Jair Bolsonaro, ele já meteu os pés pelas mãos.

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De Marina Silva, sobre a proposta de fusão dos Ministérios da Agricultura e Meio Ambiente: --- "Você submete um ministério com a função de fiscalizar ao setor que será fiscalizado". Em metáfora grosseira, é como se você confiasse aos macacos cuidar do bananal.

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"Freire, sim, Frota, não". A frase, empunhada por estudantes ontem, no Congresso Nacional, referia-se ao educador Paulo Freire, nome internacionalmente respeitado como notável educador que foi, e Alexandre Frota, o ator de filmes pornô, eleito deputado pelo PSL, respectivamente.

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A única força legitimada para invadir as universidades é a das ideias livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia. (Cármen Lúcia, ministra do STF)

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"A guinada do juiz", é como se intitula o editorial do jornal Folha de S. Paulo, desta quinta-feira. Ao se aproximar do novo governo, Sergio Moro perde a isenção necessária para seguir à frente da Lava Jato e mina esforços de combate à corrupção, diz o lide (em inglês: lead), como se chama, no jornalismo, o primeiro parágrafo posto em destaque.

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Há dias, disse que a lua de mel dos eleitores com o presidente eleito terminaria assim que ele assumisse o mandato. Estava errada. Nem bem o casamento foi consumado, os desentendimentos começaram. (Mariliz Pereira Jorge, jornalista)

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Sempre sinto atração por esse pequeno espaço: o ser humano... um ser humano. Na verdade é lá que tudo acontece. (Svetlana Aleksiévitch)

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Um prestigiado assessor do deputado Heitor Ferrer, Barros Alves, poeta e membro da Academia Cearense de Cinema (pasmem!), postou em redes sociais a afirmação de que "as mulheres de bem votaram em Bolsonaro, as vadias, não". Claro que foi afastado do cargo e responderá a processo da própria Assembleia Legislativa. Entrarei, hoje, com pedido de afastamento também da ACC. Fere, num só golpe, com a sua truculência recorrente, a poesia e o cinema. E envergonha seus pares!