domingo, 31 de maio de 2009

Viagens de Gulliver

Volta e meia, escrevo neste espaço sobre o Brasil bom, o Brasil que vem dando certo sob a chefia do presidente Lula. Este 'olhar' pessoal e otimista, não-raro, tem gerado críticas dos leitores da coluna, ressabiados com as coisas que começam bem e, comumente, têm desfecho desastroso. E aja recordações não muito felizes do nosso passado recente. O certo, contudo, é que a turma do quanto pior melhor, vez por outra, parece ressurgir das cinzas, com a 'voz rouca' do mau agouro anunciando o desastre que se aproxima. Em parte, claro, esses leitores têm razão. Se se atenta para a qualidade dos nossos políticos, então, fica difícil nutrir esperanças. A eleição para presidente da Câmara e do Senado que o digam. E não é coisa de agora, todos sabem.

Dia desses, relia eu um artigo de Machado de Assis, de 29 de dezembro de 1864, em que o Bruxo de Cosme Velho cita o irlandês Jonathan Swift (1667-1745) para se referir aos anões políticos do Brasil, mais empenhados em defender seus interesses pessoais que os legítimos interesses da população. Para os que não conhecem a história de Swift, está no Viagens de Gulliver, em que o personagem-narrador apresenta uma corrosiva e desencantada visão de sua época e da espécie humana.

O caso do novo corregedor da Câmara, Edmar Moreira (DEM-MG) é um exemplo convincente do nosso ananismo político, que me perdoem o que for na expressão de politicamente incorreto. Envolvido em ilícitos de toda ordem, o deputado mineiro tem como primeiro 'grande projeto' o fim do julgamento dos congressista pelos colegas. Vai além e declara: "Parlamentar não é polícia". Mil graças!

O fato deixa a nu um aspecto preocupante: como integrante do Conselho de Ética, Moreira absolveu, sem exceção, todos os parlamentares envolvidos com a prática da corrupção, por suposto, os mesmos que agora o elegeram corregedor.

Se em Lilipute, no imaginoso livro de Swift, Gulliver conhece um país em que as pessoas têm um duodécimo de sua estatura, em Brobdingnag vai deparar com gigantes doze vezes maior que ele. E eis que o nosso pigmeu também vive situação semelhante e sai do Congresso para o gigantismo do seu castelo em Minas, com 36 suítes e torres de oito andares. O edifício está à venda pela 'bagatela' de 25 milhões, mas o deputado declarou seu patrimônio à Receita em R$ 9 milhões. Não à toa, como se vê, que o novo corregedor é contra as cassações e se diz favorável a que os casos de corrupção sejam julgados pela 'justiça lenta'. Claro está: dificilmente um deputado perderia seu mandato daqui por diante.

No artigo de Machado, por sinal, a existência dos dois Brasis já se faz perceber pelo autor: - "O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política, nada temos a invejar no reino de Lilipute". Sábio Machado, tão atento às coisas do seu tempo, que, de resto, continua em muito parecido com o de agora. O que não significa dizer, óbvio, que tenhamos de fechar os olhos para o Brasil bom.

7 de fevereiro de 2009



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Linguagem da paixão

Volta e meia, perguntam-me porque deixei a atividade política. Respondo com as palavras do escritor Mário Vargas Llosa logo que perdeu as eleições para a presidência do Peru: "O que me pareceu mais chocante foi descobrir como as idéias [na atividade política] não têm o menor papel, nem valores, nem imaginação. Tudo está entregue à manobra, à intriga, ao jogo mais cínico, o qual tem enorme e decisiva eficácia na ação política. Creio que é importante levar isto em conta, saber que a política é também isto e que quem quer fazer política guiado por valores, deve saber jogar esse outro jogo."

Por falar em Vargas Llosa (pronuncia-se Lhôsa), que considero um dos escritores-chave da literatura contemporânea, é autor de La guerra del fin del mundo (A guerra do fim do mundo), bela reconstituição da trajetória de Antônio Conselheiro e da guerra de Canudos feita por um dos mais sensíveis humanistas das letras latino-americanas. Li-o em edição original de 1981, de que guardo as melhores impressões pela densidade do relato e funda compreensão dos significados simbólicos do conflito, como se sabe, muito mais do que um acontecimento meramente missionário ou um movimento de fanáticos, como durante muito tempo professava a História oficial. Construído, pois, com a beleza estilística inconfundível de um mestre, o livro, embora dialogando com a obra monumental de Euclides da Cunha – a quem "em el outro mundo" é dedicado – acrescenta ao fato histórico tantas vezes explorado a fina sensibilidade de um romancista comprometido antes de tudo com a arte, razão por que considero uma leitura indispensável aos amantes da grande literatura.

Mais recentemente, li dele Linguagem da paixão, livro de crônicas bastante interessante, originado da coluna "Pedra de Toque", que escreveu para o jornal espanhol El Pais entre 1992 e 2000. Nele estão algumas pérolas do grande observador da vida, de um mundo fragmentado e disperso, em que pesem os efeitos não menos perniciosos da globalização. Na crônica que dá nome ao livro, Llosa presta uma justa homenagem ao escritor mexicano Octavio Paz, que viveu em meio a controvérsias (decerto porque não se deixou dominar nunca pelo sectarismo de ordem política, cultural ou intelectual), não obstante fosse autor de uma das mais sólidas produções literárias do seu tempo. Lembra o triste episódio em que manifestantes mexicanos, conterrâneos de Paz, puseram por terra uma efígie do escritor sob o impiedoso grito de guerra: "Reagan, rapaz, teu amigo é Octavio Paz!" É que o senso comum tende a pensar no mundo como algo polarizado entre o bem e o mal, o certo e o errado. Na política, também, tende-se a viver dividido entre efusivos elogios e inflamadas abjurações.

27 de outubro de 2007



Seios à beira-mar

Uma mulher nua seria menos perigosa do que é uma saia habilmente exibida, que cobre tudo e, ao mesmo tempo, deixa tudo à vista. Balzac (1799-1850)

Com uma coisa hão todos de concordar: o Brasil é, hoje, um país extremamente avançado em termos de sexualidade. Nunca se viu tanta naturalidade diante do sexo, amassos, carícias atrevidas em público, corpo à mostra etc. Vai ver, tem isso alguma relação com o nosso clima, nossa ancestralidade aborígene, nosso espírito dionisíaco, nossa indisciplina atávica, sei lá. O que é certo é que o brasileiro tem-se mostrado um povo mais aberto nesse sentido. Lidamos melhor com a libido, mesmo quando tomamos como parâmetro países desenvolvidos da Europa, Holanda à frente. Na tevê, já não espantam as cenas de sexo explícito, quer na ficção novelesca, quer na ficção cretina do BBB, quando nossas crianças ainda estão em pleno exercício de sua vitalidade infinda.

Dia desses, na praia, no entanto, duas garotas resolveram tirar a parte de cima do biquíni e bronzear os seios, que, diga-se de passagem, eram bastante formosos. E qual não foi a minha surpresa: em poucos minutos, estavam rodeadas de marmanjos. Os rapazes que jogavam frescobol largaram num instante suas raquetes, os garçons esqueceram seus clientes e até os seguranças da barraca, na maior sem-cerimônia, foram dar uma olhadinha de perto. Gente, o que é isso, falei com meus botões - e olhe que nem os tinha comigo, naquele instante. Passei a debater o fato com minha namorada, que me chamara a atenção para o inusitado. Por que o brasileiro, que lida tão bem com essa coisa do sexo, como disse, entrega-se ao maior frisson diante do topless?

O corre-corre de rapazes - e até algumas moças, acrescente-se - diante da nudez daqueles seios era algo que chamava a atenção de todos, muito mais do que a juventude mamária das garotas. Daí a pouco, quem sabe contagiado pela curiosidade incontida da rapaziada, vi-me também atraído pelos dois belos pares de seios, a ponto de ser repreendido pela namorada. Disfarcei e desferi a pergunta: - Por que o topless ainda causa tanto furor? E ela, sem titubear: - "O brasileiro é, foi e será sempre um machista. Qualquer nudez o desconcerta!" Atribuo a curiosidade coletiva ao inesperado, que, como todo inesperado, tende a chamar nossa atenção. Quem sabe o gosto pelo proibido. É isso, afirmo. Ou não, como diria o Caetano. Foi aí que lembrei de uma crônica da Martha Medeiros sobre o tema.

Está no livro Topless, de 1996. Para ela, o brasileiro adora sacanagem [sic], o que cria uma falsa imagem de modernidade. Mas, no fundo, somos de uma caretice atroz. Diz ela: - "Dançamos na boquinha da garrafa, mas não toleramos a liberdade de costumes".

A propósito, releio em edição quentinha os contos de A vida como ela é, de Nelson Rodrigues. O reaça era mesmo genial. O livro reúne textos publicados a partir dos anos 50, em jornais do Rio. Numa linguagem direta que caracteriza a ficção de Nelson, narra crimes passionais, casos de ciúme e obsessão, desejos inconfessáveis, dilemas morais, adultério e, claro, muito sexo. A reboque, nas lojas, vem em DVD a fidelíssima adaptação de Daniel Filho para a tevê Globo. Vale conferir.

29 de fevereiro de 2008

Divã

Noite dessas, em Piracicaba, vou com Valéria assistir à versão cinematográfica da novela Divã, primeira experiência em narrativa extensa da cronista Martha Medeiros. O texto fora adaptado há tempos para o teatro, constituindo um dos maiores sucessos do palco nos últimos anos. Atraiu algo próximo dos 200 mil espectadores Brasil afora. Não tenho informações sobre a bilheteria do filme, que tem como protagonista a atriz Lilia Cabral; a mesma que interpreta Mercedes no teatro. Mas arrisco, sem medo: vai bombar.

Não que se trate de uma obra densa, complexa em sua tessitura dramática ou construída com uma linguagem inovadora e muito original. Enfim: um grande filme. Antes pelo contrário, a película obedece a uma narração recorrente no gênero comédia, na linha de Se eu fosse você 2, que lidera o ranking desde a retomada do cinema nacional pós-Collor, com bem mais de 1 milhão de espectadores. O quê, então, justifica tão expressivo sucesso de público? Simples: homens e mulheres veem-se na história de Mercedes e Gustavo (José Mayer), cuja crise conjugal um dia explode da forma mais desconfortável: a traição.

Mercedes, uma mulher quarentona de classe média, das milhões que existem em todo o Brasil, casada e mãe, decide fazer análise, como forma de reencontrar sentido para sua vida. Eis que a experiência detona um desesperado ato de libertação, que, como é recorrente nas analisadas, não-raro vai resultar grotesco, mas bastante divertido. Para o desconforto dos que se sentem bem casados, mas fazem da vida a dois uma aceitação resignada da renúncia aos desejos mais íntimos, à Simone de Beauvoir, o filme levanta uma inquietante reflexão em torno da liberdade no casamento. Pior: desconstrói o mito da dominação à luz de uma sociedade equivocada e mal-resolvida. Para não falar da leitura negativista de uma das mais reverenciadas instituições do Ocidente, a família. Inquietante.

Mercedes é, como disse, uma mulher comum, inteligente, dedicada à família e, em princípio, apaixonada pelo marido. Esses atributos, que estabelecem os parâmetros mais rotineiros da sociedade falocêntrica brasileira, não são suficientes para fazê-la feliz. Vê-se, então, que, ao lado de tantos 'bons' atributos, possui um que foge ao comum das maioria das mulheres de mesmo perfil: o senso de liberdade. A uma dada altura, já fazendo psicoterapia, profere a frase mais desconcertante do filme: - "Não tenho medo de perder o senso. Eu tenho medo é dessa eterna vigilância interior, tenho medo do que me impede de falhar." Arre!

Confesso que, já à saída do cinema, vive-se o doloroso processo de revisão de muitos dos nossos valores. Os corredores parecem demasiado estreitos, a iluminação é pouca, os músculos doem. O que se passa, então? Se passa o milagre que só a arte é capaz de processar. A arte, além das suas inúmeras outras funções, faz-nos melhorar, como homem ou mulher, na medida em que mobiliza a nossa inteligência de encontro aos demônios interiores mais inconfessáveis. Ela nos convoca a uma reflexão profunda em torno das aparentes banalidades, que, passando despercebidas, minam a estrutura do amor na vida dos casais.

Numa outra fala devastadora, diz Mercedes: "Ser feliz para sempre é aceitar com resignação católica o pão nosso de cada dia e sentir-se imune a todas as tentações, então é deste paraíso que quero fugir. Não estou disposta a inventar dilemas que não existem, mas quero reencontrar aqueles que existem e que foram abafados por esta minha vida correta." Por estas e outras razões, o filme Divã cumpre à perfeição o seu papel e dignifica a obra originária de Medeiros. É visceral, e, no entanto, presta um serviço relevante aos que amam e sonham em ser verdadeiramente felizes.

Abril de 2009






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Encontro com um Rei

O mito é o nada que é tudo. (Fernando Pessoa)
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Conviva de Hildernando e Fátima, às margens deslumbrantes do Trussu - e numa quase noite particularmente agradável - cercado de grandes amigos, conversando sobre música popular brasileira, contei essa história: Fui sempre muito reticente em relação a reverenciar pessoas famosas, políticos de prestígio, intelectuais, artistas consagrados etc. Não podia entender como era possível que mulheres, sobretudo, ficassem horas a fio em frente a hotéis na esperança pueril de ver, por alguns segundos, seus ídolos de perto. Aqueles bilhetes quilométricos com duas ou três palavras do tipo "eu te amo, eu te amo", então, deixavam-me aturdido. Assim, amante das viagens, tive muitas oportunidades de privar da rápida convivência com alguns grandes nomes do teatro, da literatura, do cinema e da política. Conversei, não raro demoradamente, com celebridades como Darcy Ribeiro, Lula, Edgar Morin, Paulo César Saracceni, Walter Lima Jr., Jorge Amado e Zélia Gattai, para ficar em uns poucos de que me lembro agora. Só achava possível me emocionar, exercitar um tipo qualquer de tietagem - por razões que não saberia explicar -, diante da figura de Carlos Drummond de Andrade ou Roberto Carlos, dizia.

Com o primeiro, jamais estive, não tendo sido raras as vezes em que, no Rio, andei pelas proximidades do seu prédio na esperança de vê-lo sair para as suas costumeiras caminhadas pelas ruas de Ipanema. Não tive sorte. O Urso Polar se foi antes que pudesse vê-lo, à distância ainda que fosse. Com o segundo, aconteceu de estarmos hospedados no mesmo hotel, em Juazeiro do Norte, há coisa de uns dez ou doze anos. De manhã, no hall de entrada, deparamos, uns amigos e eu, com D. Laura, que, inusitadamente, acompanhava o filho em sua turnê por cidades do Nordeste. Muito simpática e possuidora de uma ternura contagiante, a boa senhora generosamente cedeu ao apelo de que nos levasse até o Rei, que dormira dentro do ônibus, a poucos passos de onde estávamos.

Minutos depois, aparece Roberto Carlos e, através do pára-brisa, acena para nós, como um rei em tudo convincente. Em princípio, resiste aos pedidos de que desça, de que venha até seus "súditos", àquela altura magnetizados pela presença desse artista diferenciado e dotado de um carisma sem par. Eis que nos surpreende, manda que lhe abram a porta do veículo e desce lentamente. A emoção tomou conta de todos. Diante de nós, abraçando-nos carinhosamente, na simplicidade de um jeans desbotado, está ali, conosco, por minutos que pareceram uma eternidade, um verdadeiro mito, uma figura humana iluminada, portadora de uma energia extremamente positiva e capaz de exercer sobre os circunstantes um sortilégio que não consigo definir com palavras. Vimos que, se existem homens abençoados, Roberto Carlos é um deles.

Desde então pude compreender melhor essa visão idealizada que o público tem dos seus ídolos, essa magia que toma conta de milhares de pessoas a um só tempo, em shows, em aparições às vezes meteóricas, mas invariavelmente inesquecíveis. A diferença, ainda quero crer, é que, em se tratando de Roberto Carlos, esse magnetismo é inexplicável e desconcertante, posto que capaz de se instalar em pessoas de diferentes faixas etárias, níveis sociais, econômicos ou culturais.

Por que Drummond ou ele, Roberto Carlos? Não sei. Supostamente pelas mesmas razões que levaram um artista de prestígio internacional, um gênio como Caetano Veloso, a dizer de um encontro com ele em Londres: "Ao atender seu telefonema para marcar a visita, Rosa Maria Dias não acreditou que fosse verdade e, ao render-se à evidência, chorou. [...] Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) [...] do que intelectuais de direita e de esquerda, que a princípio não nos entendiam e agora queriam nos mitificar: ele era o Brasil profundo. [...] Foi algo avassalador. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: Bobo, bobo". Talvez, ou quem sabe, porque marcou de forma indelével a minha geração - e suas canções fizeram parte das minhas muitas histórias de amor.
13 de abril de 2007

Apelo

Pesquisa divulgada hoje aponta: o brasileiro está casando mais. Bonito. O outro resultado da mesma pesquisa, infelizmente, desaponta: O brasileiro está separando mais. Neste ano o número de separações legais superou todas as estatísticas. Pena. Se o casamento é uma instituição falida, como afirmam alguns (e os números parecem confirmar isso), por que tantos homens e tantas mulheres decidem tentar a vida a dois? Que leva as pessoas a tentarem viver "junto", dividir camas e lençóis, como se a felicidade fosse, necessariamente, uma experiência de cumplicidade? Levantamentos indicam que é cada vez maior o número dos que moram só - e conseguem estar de bem com a vida. Nos supermercados, cresce a oferta de produtos para solteiros, o que facilita a vida daqueles em cuja mesa um só talher é bastante. Mas, a pesquisa indica, aumenta o contingente dos que acreditam na utopia do improvável: "... até que a morte os separe".
Não é sem razão que o tema do amor frustrado povoa o imaginário das pessoas e o cancioneiro popular é pródigo em cantar os desencontros. Há mesmo, entre os grandes compositores, quem parece ter se especializado em cantar essa dor. E não estou falando de Lupicínio, que seria um tipo de redundância. É de Vinícius que estou falando, é de Chico Buarque (perfeição!) e de Roberto Carlos, para ficar nos emblemáticos que tematizaram em suas canções o insucesso dos relacionamentos e o sofrimento que advém disso. Na literatura, é inimaginável a quantidade de livros que exploram o tema, verdadeiros clássicos da poesia e da prosa de ficção. Romances, novelas, contos. No cinema, então. Quem haverá de esquecer a cena memorável de Casablanca? A propósito, na busca de um "mote" para a coluna de hoje, larguei o jornal com os dados da pesquisa e fui à estante, queria um texto que lhe fizesse contraponto, que ilustrasse a minha coluna de hoje. Caiu-me às mãos esta pérola de Dalton Trevisam:
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada - meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.


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Romance

O diário é uma longa carta que o autor escreve a si mesmo. (Julien Green)

No Entanto
(Fragmentos de um diário perdido)

"NO ENTANTO, o livro que eu lesse, o livro na mão, era sempre o teu seio! Tu estavas no morno da grama, na polpa saborosa do pão... Mas agora encheram-se de sombra os cântaros. E só o meu cavalo pasta na solidão". São os versos de Quintana que voltam em teu lugar desde que partiste. Ficaram tantas palavras por dizer...

Como as imagens bruxuleantes na parede da caverna de Platão, fui lentamente construindo a tua figura de mulher. Pareceste-me belíssima desde o primeiro encontro. Desejei-te como um menino pobre à torta de chocolate no vidro da confeitaria. Jamais me julguei capaz de conquistá-la, tão jovem e fascinante, na brejeirice dos teus pouco mais de vinte anos. A idade a nos separar. Pus-me a traçar planos, a idealizar uma forma de me aproximar de ti, outros abismos a impor distância.

Hoje de manhã, ao abrir o armário da cozinha, dei com a pequena cesta de vime em que guardavas quinquilharias e remédios para eventualidades. Há dias não via a tua imagem tão viva à minha frente, não sentia de novo aquele beliscão na alma, aquele desejo louco de abraçar-te como o fiz nos primeiros encontros contigo. É incrível como estás ainda presente nas poucas coisas que deixaste aqui. Lembrei de ti com um misto de saudade e alívio, agora que o tempo, sabiamente, vai colocando o passado em seu devido lugar. E era apenas uma pequena cesta de vime.

Custa-me entender por que se tornam inimigos os ex-amantes. É a precariedade dos homens, a ingratidão para com a felicidade que não foi eterna, a incapacidade para o perdão. E, que pena, é assim que parece estar acontecendo conosco, tão entrelaçados na vida um do outro, tão cúmplices nos muitos planos que fizemos juntos.

Hoje te imagino uma mulher feliz, entregue aos amores de circunstância. Não se trata de volubilidade, por favor, entende. Não emito com esta reflexão um juízo de valor, nem te condeno. É o Eros de Platão, está no Banquete. Nada diz do Eros da desordem, da sublimação dos instintos. É o Eros da busca daquilo que nos falta e que, quando possuímos, faz-nos sentir menores e escravos de nós mesmos, enquanto durar a aceitação. Inconformismo. O Eros platônico nos adverte de que o segredo da existência está em procurar o novo. Soubeste como ninguém entender isso.

Tão logo teu carro desapareceu na distância, dirigi-me à casinha dos cães para soltá-los, a fim de que sentissem teu cheiro pela última vez. Abri a portinhola e não quiseram sair, como que adivinhando que também suas vidas estariam condenadas a grandes transformações. Demorou até que saíssem em disparada pelo jardim. Em desespero, farejavam pelas frestas do portão, como se querendo tragar através delas o teu perfume, evanescente como teu corpo na estrada.
Custou-me subir a escada até o nosso quarto, deparar com o vazio imenso que deixaste ao partir. Num derradeiro carinho, que me dilacerava a alma, ainda toquei a madeira do armário em que, até bem pouco, guardavas as tuas roupas. Coração sangrando. Através da pequena janela do banheiro, alforriei o olhar para o horizonte. Caía mansamente a tarde.

Tínhamos tanto por fazer, no entanto...

Dom Casmurro

Volta e meia me perguntam se Capitu traiu Bentinho ou não. Professores, alunos e leitores, bem ou mal formados na fascinante experiência de ter um livro nas mãos, insistem na tola curiosidade. O interessante para muitos é que tenhamos uma conclusão sobre a dramática vida do casal de Cosme Velho, como quem sente um prazer inconfessável ao saber da intimidade dos outros. Faz parte da bisbilhotice, da maledicência que é, ainda, uma de nossas pragas. Não sabem que o livro de Machado de Assis é muito mais que um livro sobre o adultério, se é que, de sã consciência, pode-se dizer que é um livro sobre o adultério.
Prefiro dizer que é um romance que trata do ciúme, daquele monstro dos olhos verdes de que nos falou Shakespeare na peça Otelo. Ou, para alcançar com mais exatidão o fio condutor da trama, trata-se da dolorosa história de um homem em dúvida, mergulhado, até a raiz dos cabelos, na conflituosa disposição de acusar a esposa, supostamente envolvida em sentimentos com o seu melhor amigo, Escobar. A história, para os que ainda não a puderam ler, em rápidas palavras, é a seguinte: Bento Santiago, como um Proust brasileiro, tenta reconstruir o seu passado através da memória, recordando o amor ingênuo por Capitu (a quem descreve no romance como detentora de "olhos oblíquos e dissimulados", "olhos de cigana", "olhos de ressaca"); a entrada forçada no seminário como pagamento de uma promessa da mãe; o abandono da vida de seminarista; o casamento e a íntima convivência com Escobar - como ele, advogado -, e sua mulher Sancha; o nascimento do filho, Ezequiel, e o surgimento das primeiras dúvidas sobre a lealdade de Capitu.
Exímio nadador, numa ironia do destino, Escobar morre afogado e no seu velório Bentinho observa que Capitu olhava "alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa..."  como "se quisesse tragar também o nadador da manhã." Nasce a desconfiança que aumentará com o passar do tempo e culminará com a suspeita de que Ezequiel é filho de Escobar, de cuja imagem fisionômica guarda traços para ele visíveis.
O casamento, por razões óbvias, desmorona. Capitu parte para a Europa com o filho, morre algum tempo depois. Ezequiel vai para a África e lá vem também a falecer. Bentinho tem como única saída tentar vencer a dolorosa solidão.
Da sinopse, apresentada como aqui está, é natural que se tirem precipitadas conclusões. Teria Capitu de fato traído Bentinho com o seu melhor amigo. Por isso é preciso ler na íntegra este livro maravilhoso, que coloca o escritor brasileiro entre os maiores ficcionistas do mundo. A história, como se sabe, é contada na perspectiva de Bento Santiago, um homem tomado de ciúme, para quem detalhes os mais prosaicos constituem prova inequívoca da presumível traição da mulher. O que importa, pois, o que lhe dá densidade e torna esta obra um monumento, na linha do que professou o crítico Michael Riffaterre, é o conflito humano vivido pelo personagem, o drama que o leva, como  um Hamlet dos trópicos, a descer às profundezas do inferno, dilacerado pela dialética da dúvida e do ciúme. Se houve ou não adultério, pouco importa ou acrescentará ao livro. Ele se basta pelo que diz da trágica experiência amorosa de um homem. Pelo sofrimento que faz sofrer. Por esta razão, publicado na virada do século XIX, permanece vivo e continua a despertar o interesse e a paixão de tanta gente.


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O ciclo vicioso da paixão

A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida. (Vinícius de Moraes)

Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em A Louca da Casa: "Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar - você acha que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas." E, no entanto, a dor que se sente é insuportável. Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir que "foi melhor assim", que "Deus sabe o que faz", que "o importante é a amizade que ficou", "que isso passa e logo vai aparecer alguém", palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante. Balela. Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor. A coisa pega, queima, sufoca, estrangula, quando se vive esse martírio sem nome.

Cecília Meireles tem um verso antológico sobre o tema: "A maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata". Ao amante desiludido, custa aceitar a idéia de que se possa ter esquecido tudo. De que o "eu te amo" agora nada represente. Que o outro não se recorde das coisas boas vividas a dois, de que para ele nada mais signifique a lembrança de tudo aquilo que se viveu junto, e do que ainda se tinha por fazer.

Alencar termina Iracema com uma frase lapidar: "Tudo passa sobre a face da terra." Aos poucos, enfim, vai diminuindo o vazio, a equivocada sensação de que nada mais vale a pena. Volta-se a crer na vida, a agradecer milagre de cada amanhecer. Compreende-se a difícil realidade de que ninguém é de ninguém. E de que o amor é comunhão, não existe se não é recíproco. Silenciosamente, vai nascendo dentro do peito um novo sentimento, uma esperança que não é a esperança utópica de que falou Nietzsche, aquela que só prolonga o tormento. É a esperança que já tem o gosto inconfundível da felicidade. Recobra-se o amor-próprio, refaz-se a auto-estima, lida-se melhor com a solidão.

Por que se tornam inimigos os ex-amantes? É a precariedade dos homens, a ingratidão para com a felicidade que não foi eterna, a incapacidade para o perdão? Sim, é tudo isso, mas acima de tudo, é não saber perder. No belo romance Em Tuas mãos, a escritora portuguesa Inês Pedrosa diz sobre isso algo que considero indispensável citar: "A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poderem-se amar de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal." E, continua: "Só nós dois sabemos que não se trata de sucesso ou fracasso. Só nós dois sabemos que o que se sente não se trata - e é em nome desse intratável que um dia nos fez estremecer que agora nos separamos. Para lá da dilaceração dos dias, dos livros, dos discos e filmes que nos coloriram a vida, encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro como já não nos lembrávamos de ter estado em presença." E desfere o golpe certeiro: "É uma forma de amor inviável, que, por isso mesmo, não tem fim."

Hora dessas, de repente, deixa de importar se ela continua a usar os brincos que você deu, se ele ainda bebe rum, se parou de fumar. Se ele melhorou o inglês, se ela aprendeu a estacionar, se ainda lembra de você, por que deixou de amar. Um dia, quando você menos espera, a química ressurge, no semáforo - quando os carros se alinham -, no supermercado, no elevador - onde ele gentilmente segurou a porta para você entrar -, no barzinho da esquina, num lampejo de olhar. Vem sorrateira, num cruzar de pernas que só você percebeu, no jeito excêntrico de usar as mãos, de recompor o cabelo, de renovar o batom. Aí, todos sabem, sente-se aquele friozinho que não se pode definir, os olhos brilham, o coração batuca - e então, como no verso memorável de Bandeira, "os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre as águas". O ciclo vicioso da paixão. Depois, está na canção do Roberto, o tempo, que transforma todo amor em quase nada.

17 de março de 2007







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Internet, namoros virtuais e traição

O homem é ele e suas circunstâncias. (Ortega y Gasset)

Dia desses, uma amiga me perguntou: a Internet está contribuindo para acabar casamentos? Tive de dizer-lhe, antes de responder, que sempre fui muito reticente em relação aos sites de relacionamento. Achava mesmo uma babaquice, um jogo de falsidade em que todos se escondem daquilo que são e tentam mostrar aquilo que não são. Enfim, uma fantasia que nada de positivo trazia para quem quer que fosse. Mas, como a ocasião faz o ladrão, vi-me de repente solteiro e, como é comum nesses casos e em princípio, sem saber o que fazer com a liberdade ou como lidar com a solidão. Para o bem ou para o mal, eis que cedi aos apelos do msn e me descobri teclando feito um desesperado, um habitué desse baile de máscaras que é hoje uma mania de todo homem ou mulher minimamente íntimo da comunicação virtual.

O fato é que fui descobrindo o que há de interessante no troço e já tenho um punhado de pessoas, em sua maioria mulheres, com as quais me comunico com freqüência pelo menos semanal. O bicho pega, vicia, cria uma dependência gostosa - é a minha cachaça atual. Confesso, para não faltar com a verdade, que em muitos casos tem rolado uma cumplicidade que ultrapassa os limites da simples amizade. Tenho conhecido gente interessante e com algumas mulheres tenho tido relacionamentos marcantes. Se vai dar ou não para achar a minha cara-metade, não sei, mas que a vida se tornou muito mais fácil, não vou negar.

A que se deve o sortilégio desse negócio, francamente não sei. Talvez a intimidade aflore com mais rapidez e a conversa dispense o mise-en-scène dos encontros acidentais, onde, em princípio, o conteúdo pesa bem menos que a embalagem. Você não repara na roupa, nos brincos e anéis. Não repara na textura da pele, no tom dos cabelos ou no esmalte das unhas. Não se preocupa com a formalidade às vezes indispensável do contato pessoal. Não tem de esperar aquele olhar desejoso, que às vezes é mesmo fruto de um erro de interpretação e não raramente leva o cara a dar com os burros nágua. Aqui, você vai direto às idéias, à cultura, à inteligência do outro - e logo conclui se existe o interesse de ir adiante. Você vai se deixar atrair ou não por alguém que você enxergou pela alma, e não pela beleza exterior.

Mas, como tinha que responder ao que me perguntara a amiga, disse que não. Ou melhor, em termos. É claro que a comunicação virtual dá uma mãozinha - e que mãozinha! -, mas, lembrando Galeano, o cronista uruguaio, acho que "a culpa do crime nunca é da faca." Mas, afinal, insistiu a amiga: A que se deve o crescimento espantoso dos casos de adultério? Ih, minha amiga, essa história se confunde com a história dos homens, faz parte da libido de que nos falou Freud e tem raízes em tempos que não se pode precisar. Se cresceu - e acho mesmo que cresceu enormemente - é que as mulheres conquistaram a sua independência, tornaram-se donas do seu nariz. O que leva um casamento ao fracasso, na maioria das vezes, é o fato de que a mulher um dia resolve vasculhar o fundo de suas gavetas interiores e redescobre em si os valores, e sentimentos, e emoções que havia silenciado durante anos em relações amorosas muitas vezes sufocantes, mornas e rotineiras. Um dia ela vai encontrar alguém que, como ela, deseja fazer da vida uma eterna novidade, que gosta de filmes, livros, viagens. Aí, minha amiga, como na fala desconcertante de uma personagem do filme Crimes e Pecados, de Wood Allen, "a gente é a soma das nossas decisões."

13 de março de 2007







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sábado, 30 de maio de 2009

Amadeo Modigliani



Vira e mexe, um aluno levanta a questão irrespondível: - "Todo grande artista é louco?" Hum! A última aconteceu esta semana, durante uma aula sobre arte moderna. Falava de Modigliani, genial pintor italiano que teve uma vida dolorosa, marcada por ocorrências chocantes. Aliás, a exemplo do que se fez com outros grandes nomes das artes plásticas, como Picasso e Vermer, cujas vidas foram curiosamente registradas no cinema, recomendo Modigliani, que repassa a dramática trajetória desse fenômeno da pintura interpretado à perfeição por Andy Garcia. Um filme belíssimo, obrigatório para os amantes da pintura, perpassado de paixão e sofrimento, componentes indispensáveis quando se fala da vida pessoal de Amadeo Modigliani.

Era baixinho, com um metro e sessenta e cinco, esquálido, ombros estreitos, mas bonito e possuidor de um magnetismo irresistível para homens e mulheres. Segundo Rosa Montero, que fez sua biografia amorosa no livro Paixões, sobre o qual escrevi na coluna de sábado, nas raras vezes em que estava feliz, Modigliani impressionava pela elegância e pelo charme incomuns. Cita Cocteau, para quem Amadeo era um tipo "esplendoroso". Pois bem. O filme de Mick Davis, de forma extremamente poética, registra, assim, a vida desse homem a um tempo genial e atormentado, na Paris de inícios do século XX. A obra expõe o clima de animosidade, inveja, competição, tramas inconfessáveis que permeiam a sociedade artística parisiense, nomeadamente a rivalidade entre Modigliani e Pablo Picasso.

Não querendo fugir ao propósito da coluna de hoje, que assenta-se na curiosidade de um aluno acerca da insanidade dos grandes artistas, sinto-me motivado a discorrer um pouco mais sobre este pintor maravilhoso que é Amadeo Modigliani. Então: Dono de um traço inconfundível, em que pontificam nús arrebatadores, para não me reportar aos longos pescoços de suas retratadas, invariavelmente possuidoras de uma beleza exótica e sedutora, Modigliani deparou sempre com uma realidade adversa, passando por cruéis provações. Seus quadros não agradavam, suas exposições resultavam em nada, não vendia e passava ao largo da atenção dos críticos.

Viciado em haxixe e álcool, o pintor descambou para a ruína. Dormia em pensões sórdidas, não raro em bancos de praças, sem dinheiro e desumanamente sujo. Como todo grande artista, por miserável que seja, Modigliani viveria a sua grande paixão. Conquistou o coração da jovem Jeanne Hébuterne, treze anos mais nova, filha de uma família de classe média estruturada. Começava uma das relações de amor mais trágicas da história da arte. O casal viveria em conflito; Jeanne, objeto de maus-tratos, traições e abandono.

Rosa Montero escreve em sua biografia uma metáfora prodigiosa para evidenciar os passos da destruição de Amadeo: - "Quando uma pessoa se instala no sofrimento, alguma coisa impele a aumentar a dor, da mesma maneira que a língua cutuca uma e outra vez a pequena ferida de uma gengiva até transformá-la em chaga." Certa vez, grávida e debilitada, sem forças para assistir o amante em delírio, Jeanne tranca-se durante muitos dias com Amadeo, consumindo apenas álcool e restos de comida. Anotaria em seu diário, contudo, que esses foram os dias mais doces de Amadeo como amante, aqueles em que lhe proferiu as palavras mais amáveis e mais carinhosas.

Encontrados por um amigo, também pintor, Modigliani seria internado num hospital em estado terminal. Morreria três dias depois. Em gravidez avançada, Jeanne Hébuterne atira-se pela janela do quinto andar da casa dos pais. O enterro de Modigliani transformou-se num acontecimento, contrariamente ao de Jeanne, sepultada em quase absoluta solidão. Tempos depois, os restos mortais de ambos foram ajuntados no mesmo túmulo. Visitei-o, um dia, no cemitério de Père Lachaise, em Paris.

Ao curioso aluno, tentei responder: Não, nem todo grande artista é um louco. Não importa se me ocorrem neste instante os nomes de Van Gogh, Mozart, Rimbaud, Paul Verlaine, Baudelaire, Caravaggio, Genet, ou mais próximos e contemporâneos nossos, como Cazuza e Raul Seixas. Acho que a arte é um ofício de libertação. Pintar, cantar, escrever, dançar, são antes de qualquer coisa uma forma de libertação da alma. E isso implica em romper com os grilhões que sufocam a subjetividade e as verdades humanas. Os muito certinhos, como vi num livro de que não lembro agora, tornam-se bons maridos, mas suas canções, poemas e pinturas, raramente entrarão para a história. É que "A beleza faz exigências dolorosas", como afirmou o próprio Amadeo Modigliani.







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Paixões

Leitora encontra-me na rua e dispara: - "Adorei a crônica sobre a paixão. Quero ler mais sobre... (risos)." Poupando-me da obrigação, recomendo-lhe o livro Paixões, da escritora espanhola Rosa Montero, autora do belíssimo A Louca da Casa. Curiosa, não se contenta: - "Fala-me do livro, vai!" Estávamos na entrada de um banco, bem à frente de uma fila quilométrica e o entusiasmo da amiga, além de tornar pública sua suposta paixão, fez-me lembrar a torcedora da crônica de Nelson Rodrigues. Mas sobre isso escreverei outro dia. Voltemos a Rosa Montero.

Pois bem. Rosa Montero é a Martha Medeiros da Espanha. Lidíssima (e muito bonita, diga-se em tempo), Montero começou sua carreira brilhante como jornalista, dedicando-se a escrever para os principais jornais de Madri, onde nasceu. Hoje é colunista exclusiva do El País. Como ficcionista estreou com o romance Crônica do Desamor, em 1979. Há quatro ou cinco anos vem sendo traduzida para o português, razão por que recomendo, além do já mencionado A Louca da Casa, o delicioso História de Mulheres.

Em Paixões, para não esquecer do que me pede a leitora supostamente apaixonada, Rosa Montero arrola a história da vida amorosa de casais famosos, de Leon e Sônia Tolstói a Elisabeth da Áustria e o imperador Francisco José, passando pelo excêntricos John Lennon e Yoko Ono. Histórias interessantes, como se vê. O mais relevante da obra, ou mais curioso, talvez seja o adjetivo mais adequado, é que Montero põe por terra o mito do amor perfeito que gira em torno dessas celebridades. Em outros termos, como diz Caetano, "de perto, ninguém é normal."

Aliás, já na introdução a autora arrisca uma generalização inquietante: - "É que todos somos tentados a acreditar que o próximo é capaz de viver a plenitude que sempre se esquiva de nós mesmos: o amor absoluto, a felicidade completa." Perfeito. Acho que, no mundo midiático em que vivemos, sobretudo, somos condenados a projetar nos outros algumas das nossas mais caras fantasias, enamoramentos, paixões. Esquecemo-nos de nós, numa palavra. Não à toa, sobremaneira para as pessoas menos preparadas culturalmente, passam a interessar os reality shouws da vida, as revistas de futilidades ou a sub-literatura.

Delicioso, o livro de Rosa Montero pode levar a leituras equivocadas, uma vez que, na sua totalidade, os casos evidenciam amores desajustados, muitos deles doentios. É que falar da paixão, diz a escritora, "é nomear o caos." Certamente. É assim que chama a atenção para uma obviedade que quase nunca se percebe: - "... a essência do passional é a alienação que produz: o apaixonado sai de se mesmo e se perde no outro, ou, melhor dizendo, naquilo que imagina ser o outro." Nesta perspectiva, já dizia Catão que a alma de quem ama hab ita o corpo alheio.

Seja como for, Paixões é um livro maravilhoso. Se se volta para o que houve de mais doloroso na intimidade desses casais, o que, como disse, pode refletir um certo negativismo da autora em torno desse sentimento que é a razão mesma de nossas vidas, é que Montero, na linha de Denis de Rougemont em seu História do Amor no Ocidente, está atenta para o fato de que "em toda história de amor, mesmo na mais realizaa e feliz, há sempre um ingrediente de tristeza, o sentimento inexorável da perda."

Mas, para não desapontar a leitora amiga, se é verdade que esta sensação mágica um dia acaba, pode resultar disso uma outra dimensão do mesmo sentimento, algo próximo de uma amizade, de um companheirismo, de uma cumplicidade não menos encantadora. Sem prescindir do sexo, claro, ingrediente indispensável para manter acesa a maravilhosa chama.

Ainda sobre o ciúme

Leitora comenta a coluna de sábado, que leu no meu blog, e mostra-se curiosa em relação aos outros dois tipos de ciúme estudados por Freud. Quer saber mais. Vá lá, falemos um pouquinho mais sobre o tema. No estudo citado, de 1922, como disse, Freud estabelece a existência de três tipos de ciúme: o normal, o projetado e o delirante. Sobre o primeiro tecemos considerações rápidas no texto anterior. O segundo, projetado, é um caso clássico que a leitora diz conhecer de perto (risos): é uma projeção no outro cônjuge da própria infidelidade. A pessoa tem inclinações para trair, sente-se com freqüência tentada a fazê-lo e, numa atitude inconsciente de defesa ou mascaramento de suas vocações adúlteras, transfere para a outra essas 'inquietações'. É mesmo um tipo comum e, segundo Freud, pode sobrepor-se ao ciúme dito normal ou deslizar para o terceiro tipo, o delirante. Aqui, creio, entram os excessos da psicanálise: para Freud, no ciúme delirante estão presentes os mesmos mecanismos do ciúme projetado, mas o objeto do desejo é, nesse caso, do mesmo sexo. Palavras do próprio: "O ciúme delirante corresponde a uma homossexualidade abafada". Valendo-me da literatura, a título de exemplo e no viés da psicanálise, no Dom Casmurro é Bentinho quem sente forte atração por Escobar, a quem considera objeto passional da mulher, Capitu. Tudo no plano do inconsciente, claro. Coisas da psicanálise.
O fato é que não se pode desconsiderar essa possibilidade, ou seja, não se pode fechar olhos para as muitas pistas deixadas por Machado acerca da paixão homossexual de Bentinho. Textualmente: "Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo [Escobar], que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou". Isso para ficar numa citação, apenas, entre as muitas que se poderiam fazer. Obra aberta, no clássico sentido professado por Humberto Eco, em livro homônimo, a obra de Machado permite leituras diversas. Este olhar sobre a vertente homossexual de Bentinho, pois, prende-se à tentativa de exemplificar o que para Freud seria o ciúme delirante. Satisfeita a curiosidade da leitora, penso, voltemos ao tema da última coluna sobre a pesquisa "Ciúme excessivo induz à traição", que tanta polêmica causou.
A literatura é pródiga em tematizar essa questão. Em Nelson Rodrigues, cuja genialidade vem a ser outra vez objeto de adoração no meio teatral, depois de um prolongado ostracismo, a coisa é recorrente. Já no texto de estréia, A mulher sem pecado, deparamos com um caso genial: Olegário, o protagonista, tomado de ciúmes da mulher, Lídia, entrega-se a uma cadeira de rodas com a intenção de confirmar a sua infidelidade. A peça gira em torno desse drama, desse ciúme patológico da personagem. Quando, por fim, convence-se de que não é traído, acontece-lhe o pior. Não suportando mais a situação, o inferno em que vive, Lídia foge com Umberto, o motorista da casa.
Mas é outra personagem de Nelson que representa, à saciedade, o tipo ciumento-mórbido: Gilberto, protagonista de Perdoa-me por me traíres, para quem tudo é motivo para desconfiar da mulher, mesmo os mais rotineiros hábitos de higiene: no seu delírio, vê rivais por toda parte, "escorrendo pelas paredes, como água infiltrada". Decide internar-se para tratamento. Quando se sente recuperado, "outro homem", retorna à casa, mas a mulher já tem um amante. E aqui vem uma fala maravilhosa da mãe de Gilberto, como se antevisse o adultério: "[...] higiene íntima três vezes por dia, se tem cabimento! Tanto asseio não havia de ser só para o marido, duvido!" Por sua vez, num nonsenso tipicamente rodrigueano, Gilberto, atirando-se aos pés da mulher: "Perdoa-me por me traíres". É Nelson, no seu melhor estilo.


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A decisão que faz sofrer

"Somos as nossas escolhas."(Meryl Streep)

Cinéfilo atento, leitor telefona: "Adorei sua coluna sobre namoro virtual. Muito boa, como tudo o que você escreve (sic). Mas, posso fazer uma correção?" Agradeço a gentileza e peço que o faça, que fique à vontade. Ele diz: "A fala que você citou no final não é de Woody Allen, mas está no filme As Pontes de Madison, de Clint Eastwood." Perfeito. Errei feio. De fato, é uma fala da personagem Francesca, interpretada por Meryl Streep neste belíssimo drama do autor de Um Mundo Perfeito (1994). Está justificado o equívoco. É um dos filmes de que mais gosto no gênero, um verdadeiro épico romântico sobre o amor e seus (des)encontros. Prometo-lhe escrever sobre o filme. Faço-o na coluna de hoje.

O enredo é simples. Para aqueles que ainda não o viram, gira em torno de uma mulher de meia-idade, casada, com filhos, entregue a uma vida absolutamente tranqüila e acomodada. O marido é um soldado, por quem Francesca troca a Itália pela América e passa a viver numa fazenda, dedicada aos afazeres de mãe e dona-de-casa. Até que um dia, enquanto a família está viajando para participar de uma feira de agropecuária, sozinha em casa, Francesca é surpreendida pela presença de um homem, Robert Kinkaid (Clint Eastwood), fotógrafo de uma revista importante contratado para fotografar as famosas pontes da região. Robert acha-se perdido e pede ajuda. Francesca, num gesto que em princípio é de pura gentileza, decide acompanhá-lo até o local.  Começa aí uma comovente história de amor.

Por que, então, uma obra de tessitura tão rasa, com soluções aparentemente fáceis e previsíveis, pode exemplificar algo que se considere bom no gênero? Decerto porque o filme, na singeleza de seu apelo, trata do que há de mais profundo na alma humana: a dúvida, esse tema eterno que já imortalizou autores de diferentes épocas e estilos, de Shakespeare a Machado de Assis. Na contramão do que pode sugerir a simplicidade da obra de Eastwood, o que sobressai é o conflito dilacerante que toma conta de Francesca, dividida entre retornar ao mundo das convenções, emblematizado na estabilidade de um casamento "normal", e a coragem de transformar a vida de tanta gente em favor de sonhos que renascem de forma inesperada, inquietante e ardentemente sedutora.

Robert e Francesca passam quatro dias juntos, apaixonam-se, mas têm de decidir o que pretendem fazer de suas vidas. O enredo, como se vê, reedita velhas histórias do cânone cinematográfico, mas o faz na perspectiva de um tempo psicológico que independe da realidade geométrica que sinaliza o passar das horas, envolve o espectador num ritmo que se arrasta, torna-o cúmplice, enreda-o com uma força poderosa. Não bastasse a fotografia arrebatadora, e o desempenho irrepreensível de Meryl Streep, numa de suas mais belas atuações, Eastwood revela-se a partir desse verdadeiro épico romântico um diretor de sensibilidade notável, o que torna o filme extremamente poético, em que pese o despojamento dos recursos e a leveza de sua concepção.

De novo: o que impressiona no filme? É que nos vemos na pele de Robert e Francesca. Eles vivem o drama que todos nós, cedo ou tarde, fomos ou seremos condenados a viver. Faz-nos levantar os olhos para as velhas questões: o amor, tal qual nos ensinaram um dia, só acontece uma vez? É possível amar duas pessoas com intensidades e de formas diferentes? Deve-se renunciar aos desejos e às fantasias, que brotam do mais profundo da subjetividade, em função do que está socialmente estabelecido? Do "politicamente" correto? Pode-se voltar a amar a pessoa que amamos um dia e que, por um tempo, deixamos de amar? São essas e outras questões que o filme coloca-nos em seus pouco mais de 120 minutos - e que parecem não ter fim! -, mostrando com ternura o lado inconfessável, tortuoso e inseguro de cada um de nós. Quem não passou ou passará um dia por tais provações? Por isso, revi o filme em DVD. Se você não o viu ainda, faça-o agora. É provável que se veja nele. Mas guarde lágrimas e coração. 


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É olhar no espelho e ver

Li, na revista Época desta semana, uma matéria interessante sobre relacionamentos amorosos que duram e permanecem estáveis durante muitos anos. A reportagem faz alusão a celebridades que continuam casadas 20, 30 anos. Carlos Alberto Riccelli e Bruna Lombardi, por exemplo, que se dizem felizes e atraídos, em que pesem as três décadas juntos.

Sempre tive uma grande admiração pelas pessoas que conseguem manter acesa a chama da paixão anos e anos, e continuam ali, na base do 'só vou se você for', como na canção de Duran. Desde muito jovem exaltei essa capacidade cada vez mais rara nos dias de hoje. Quando o assunto entrava em pauta, lembro que citava invariavelmente dois casais famosos que me chamavam a atenção, pela sintonia e recíproca admiração que tornavam públicas nas entrevistas, mesas-redondas etc. O primeiro deles, os atores Tarcísio Meyra e Glória Menezes, permanece firme e, ontem, passando diante da tevê, vi-os atuando juntos, maravilhosos. O segundo, separou-se há coisa de uns quatro, cinco anos. Trata-se de Chico Buarque e Marieta Severo, que tentam, ainda, reconstruir suas vidas amorosas em lados diferentes. Tentam, é o que me consta.

Segundo a revista, pesquisas recentes apontam para a compatibilidade genética dos amantes como fator decisivo para o sucesso da relação, havendo, hoje, o que me deixou estarrecido, empresas bem-sucedidas que vivem, exclusivamente, da avaliação do DNA dos que se apaixonam a fim de prever a possibilidade de darem certo 'até que a morte os separe'. Fiquei imaginando: a que ponto chegamos, meu Deus. O amor vai se tornando uma mercadoria, você passa no supermercado, vê um produto novo, lê as informações da embalagem, analisa a relação custo/benefício e decide levar ou não. Exagero à parte, é nisso que querem transformar essa busca eterna da felicidade a dois que movimenta a vida de homens e mulheres através dos tempos.
No filme Closer - Perto Demais, explora-se mais ou menos isso. Quatro pessoas se relacionam mas ninguém está satisfeito e todos buscam algo que sequer sabem bem o que seja. Acho que o filme levanta uma reflexão interessante sobre o mito da paixão nos dias de hoje. A gente vai procurando, fazendo trocas e, não deu certo, cada um vai cuidar da sua vida. A banalização dessa procura vai desgastando as pessoas naquilo que têm de mais legítimo: o direito de ser feliz. As facilidades dessa experiência e a vastidão do mercado de 'amores', opções e consciência de que o descompromisso é o grande segredo, quem sabe não explica essa esdrúxula novidade do mercado: DNA's passionalmente compatíveis.

E não se toca numa questão que me parece fundamental em relação a isso, por ultrapassada que pareça ser a minha opinião: o segredo da felicidade a dois deveria estar centrado na capacidade de renúncia em relação a pequenas coisas que, via de regra, constituem a gota-d'água para a separação. Não temos sido capazes de exercitar a tolerância e parecemos encantados com a equivocada compreensão do que é a liberdade humana: - "Não está bom, faz a mala e vai. Ah, não esquece de bater a porta". Mas um dia a ficha haverá de cair e só então você compreenderá: Ninguém, isoladamente, reúne em si todas as qualidades para fazer, por inteiro, o outro feliz. É olhar no espelho e ver.

17 de janeiro de 2009



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Os velhinhos de Piracicaba

Com efeito, escrever sobre o Amor é tarefa não fácil de realizar. Momento, explico-me melhor: é tema já tão mastigado, que procurar uma ótica original de fazê-lo chega a parecer impossível. Mas - como neste instante em que deparo com a `página´ em branco -, às vezes nos sentimos tão provocados a retomar o tema, que impossível mesmo é nos furtarmos ao desafio. Vamos a ele.

De início, contudo, devo ter a honestidade de revelar uma coisa, que, sendo de foro íntimo, talvez não coubesse numa página de jornal, assim, tão gratuitamente (risos). Estou em estado de paixão! Sim, com exclamação. Assim estando, o homem vê poesia em tudo e, sobre tudo o que pode ser o Amor, sente-se motivado a falar, ainda que se trate de fatos inusitados e de aparente pouca ou quase nenhuma relevância. De novo, explico-me: andando pelas ruas da cidade paulista de Piracicaba, de onde escrevo esta coluna, deparo com um casal de velhinhos que me chamam a atenção e deixam-me sob incontido lirismo, como numa extensão daquilo que, estou certo, inunda seus corações neste instante.

Têm algo em torno dos 75, 80 anos, pouco mais ou menos, e, todavia, de tão `apaixonados´, parecem mesmo dois jovens no mais pleno vigor de suas vidas. A uma dada altura do tempo em que os observo, que não deve extrapolar o espaço de dois ou três minutos, ela quer arriscar-se a fazer a travessia de uma rua movimentada. Chove uma chuvinha fina e constante. Segurando-lhe a mão, ele resiste e, de repente, parece esse desencontro de intenções ensejar uma discussão dos dois. A uma pequena distância, não contenho a curiosidade e fico a acompanhá-los naquela `pugna´ imensa. Chego a ficar apreensivo, posto que os dois velhinhos estão entre o meio-fio e a faixa que indica o início da pista por onde passam carros em boa velocidade.

O que parecia ser o começo de uma discussão entre rabugentos, coisa não-rara na vida dos casais idosos, torna-se pública demonstração de carinho e bem-querer recíproco. O dois velhinhos entreolham-se e, como que num passe de mágica, entregam-se num beijo fremente, desses com que só se vêem beijar os jovens amantes. Eu tenho amado tanto e ainda não conheço o amor, ocorre-me o verso de Bilac. Discretamente, levo o indicador à face e continuo minha caminhada sem destino pelas ruas desta simpática cidade.

Que beijo tão doce e tão terno. Já se tem falado tanto sobre o Amor, dizia eu há pouco. E, no entanto, como me disseram novidades sobre o tema esses velhinhos de Piracicaba.

31 de janeiro de 2009



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O horizonte em que vislumbro a paz

Para Valéria Aversa
 
Ano passado, escrevi neste espaço em favor da instituição do Dia Internacional do Homem. Defendi a idéia de que, mais que uma questão de gênero, tratava-se de uma questão genérica. Trocadilho à parte, esclareci que a violência e outras formas de maus-tratos à mulher são um problema essencialmente educacional. E expus argumentos que não foram rechaçados, sendo o texto objeto de referências elogiosas da parte de muitos e muitos leitores. Leitoras, inclusive. Digo isto, obviamente, sem nenhum prurido de vaidade, mas provocado pela convicção de que a reflexão levantada tem pertinência, observado, por certo, o que traz de polêmico.
 
Penso que a questão da mulher tem sido tratada com vulgaridade, tornando-se um lugar-comum, um dos muitos clichês que, infelizmente, povoam algumas das nossas discussões mais sérias. Claro que não se pode negar que a mulher continua sendo tratada com desrespeito, aqui e além; claro que, por mais que tenha conquistado, ainda falta à mulher muito dos direitos que lhe são negados, pela força e por outros meios não menos perversos de exploração adotados pelo homem; claro que o olhar dominante é, ainda, falocêntrico. Mas o debate em torno desta questão me parece por demais romantizado, ressentindo-se de uma fundamentação mais geral, algo que se coloque no bojo das discussões que dizem respeito ao homem, à condição humana.
 
As dificuldades já podem ser observadas pela própria idealização que se faz da mulher, como se o gênero, por si só, dotasse a mulher de propriedades que a diferencia do homem como medida da sua superioridade. E não seriam homens e mulheres iguais? O feminismo de outrora, que tanto confundiu o debate, não se tem reproduzido de forma disfarçada no discurso sexista contemporâneo? É o que me parece estar acontecendo em larga escala, o que, a meu ver, resulta num lengalenga que mais cansa que contribui para qualquer avanço. Acho que homens e mulheres devem somar forças pelas construção de um mundo melhor, mais livre, mais justo, mais fraterno.
 
Não quer isto dizer que não se deva homenagear a mulher nesse 8 de março. Assim como se deve homenagear o aniversariante do dia, a mãe na data que lhe é consagrada, a exemplo do pai, da criança, dos profissionais em suas muitas versões.
 
Enquanto escrevo a coluna de hoje, para não faltar com o sentimento de gratidão e carinho, no filminho das minhas recordações, penso nas mulheres que me marcaram a vida; minha mãe, com a doçura do seu olhar e a gratuidade de sua entrega; minhas ex-companheiras, a quem devo tanto de vida que construí, e que me fizeram melhorar como homem, inclusive na dor; as muitas amigas que fiz, que me têm dado a medida exata do significado de ter amigos, num mundo tão desumano, tão sem amor. Penso na mulher que amo, tão distante e tão dentro de mim, neste instante - a quem dedico toda a ternura do olhar que alforrio, através da janela, na direção do horizonte em que vislumbro a paz. Amor.

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A lição de Susan Boyle

O que parecia ser uma cena bizarra, dessas que se veem aos montes na tevê, comoveu o mundo inteiro essa semana. Estou falando da escocesa Susan Boyle, que deixou boquiabertos os jurados de um prestigiado programa de 'calouros' da televisão inglesa e deslumbrou a plateia que lotava o auditório, depois de ser recebida com risos de deboche pelo simples fato de ser feia e desengonçada. Susan interpretou a canção Dreamed a dream, do musical Les miserables, e, com a beleza de sua voz e o prodígio do seu talento, deixou magnetizados queles que a ridicularizavam minutos antes. Tem 48 anos, está desempregada e afirmou jamais ter sido beijada.

Vi e revi a sua apresentação num vídeo na internet. Como me comovo com beijo de novela, para lembrar a canção de Baleiro, confesso que não deu para conter a emoção diante da cena, a um tempo simplória e divina. Fiquei imaginando como o caso de Susan se presta para revelar a vida da gente. Temos uma inclinação irrefreável para julgar precipitadamente - o conteúdo, pela embalagem; o significado, pelo significante; a realidade, pela aparência. Atire a primeira pedra quem nunca o fez. Estou certo?

E, no entanto, quantos equívocos nos levam a dar com os burros n'água. O sujeito anda em desalinho e, logo, fazemos a imagem do que é a sua intimidade: - "Um desorganizado, a vida uma bagunça." Anda arrumadinho, é sonho de consumo das mulheres; fala com simplicidade, 'um ignorante'; arrota conhecimento, é 'um sábio'; é introvertido, não é dado a badalações, ao sorriso largo, 'um chato, pensa que é mais do que é. Vamos construindo imagens quase sempre sem correspondência com a realidade. Nossos mitos de cada dia. E o mundo vai se tornando um zoo de gatos que se passam por lebres, de lobos travestidos de cordeiros, num baile de fantasias e enganações. Ocorrem-me as palavras do meu velho pai: - "Não se deixe engambelar." O termo não se usa mais, mas servia para definir a prática dos dissimulados, dos embusteiros, que se multiplicaram com o passar dos tempos.

Do livro das misses, como se aludia pejorativamente ao conto de Saint-Éxupery, recordo a passagem do encontro da raposa com o Pequeno Príncipe. "Tu serás para mim único no mundo", diz ela. E desfere a frase antológica: "Só com o coração podemos ver bem." Que bela alegoria para dizer do homem e dos seus equívocos, reedição do mito de Platão. As aparências a confundir os olhos...

Por sob a feiúra e o desleixo de Susan Boyle, com que foi julgada no primeiro instante, havia a mulher adorável, a voz e a sensibilidade contagiantes. Jurados e público, rendem-se ao talento dessa mulher que não se via antes; beldades, como Demi Moore, caem em prantos. A arte de Susan, como no livro de Exupéry, serviu para mostrar que "é no deserto que encontramos a verdade." No desfecho do conto, recordemos, o Príncipe volta para o seu planeta de origem, não sem antes assinar a grande lição, essa verdade de que estamos esquecidos: "O essencial é invisível aos olhos."

25 de abril de 2009

A paixão e a descrença

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Tenho um amigo que afirma não acreditar no amor. Teve uma desilusão há muitos anos e não consegue superar o troço. Vira e mexe, começa um novo relacionamento e não passa dos dois meses. Logo se desentende, e o que parecia ser, finalmente, um recomeço, termina em frustração. Dele e nossa, dos amigos com os quais convive. E não pense que se trata de um babaca, muito pelo contrário. Para tudo o mais, é o cara: inteligente, sensível, bem-humorado sempre e, se não é Tom Cruise, não é tão mal apanhado. Escreve, toca um violão belíssimo, compõe e, à mesa, rouba a cena, com o papo agradável e as piadas que levam todos a mais aberta gargalhada. É o cara, já disse. Mas, quando o assunto é paixão, amor, trava: - "Tô fora!", diz sempre.

Fico imaginando o que leva alguém a descrer, assim, do amor - ou de qualquer outro sentimento que dele se aproxime. Impressiona-me que um homem tão novo, ainda, se deixe entregar a tal negativismo, num tempo de tanta oferta e tanta procura. O que pode justificar a pessoa pensar assim?: - "Sofri demais, tô fora!"
Dia desses, indagando-lhe a razão por que se sente assim, sequer titubeou: - "Não tenho mais idade para me apaixonar!" (sic), acredite. Como se a paixão exigisse comprovação de idade, uma classificação etária ao contrário: Imprópria para maiores de 30 anos.

Como lembra a Martha Medeiros, numa crônica bem conhecida, tive dezoito anos. Tive vinte. Tive quarenta. Amei e fui amado em cada fase de minha vida. Já sofri por amor e achei que talvez nunca mais me apaixonasse. Mas, descrer da paixão, do amor, jamais. A idade, se é uma realidade que pode dificultar as coisas, traz consigo algumas vantagens. Inclusive em matéria de conquista, inclusive no jogo da sedução. Dou a palavra à cronista: "Avançar envolve progresso. Avança-se não só em relação ao tempo, mas também em relação ao meio em que se vive, aos conceitos que nos são impostos. Avançando, nossa percepção do mundo é ampliada, nossa história de vida acaba se justificando e nos preparando para o que vem mais adiante." Perfeito, Martha.

É fato que a mídia, a publicidade, a tevê à frente, têm supervalorizado a geração saúde, a turma da 'barriga de tanquinho' e dos corpos sarados. É fato que a beleza física parece ainda imperar na sociedade de consumo. Daí a fechar os olhos para a contraface disso, vai um abismo de diferença. Via de regra, a mulher se tornou mais exigente e os parâmetros de avaliação são outros, além dos aparentes. E do homem, diga-se em tempo.

Ter 'idade avançada', fique atento, pode significar estar à frente, descobrir onde dormem as andorinhas ou saber como se assam as castanhas. Vai ver, cedo ou tarde, o meu amigo descrente encontrará o novo caminho, que haverá de levá-lo à mulher dos sonhos. "Daqui, deste posto avançado em que me encontro, diz a cronista, posso dizer que a gente ama muitas vezes e que a vida tem mais portas do que parece." Muitas delas entreabertas, é bom lembrar.

14 de março de 2009




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