quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pelos Novos Caminhos da História

Sossega, saudade minha. Não me cicies o impróprio convite. Não quero ver-te mais, meu triste horizonte, meu destroçado amor (Carlos Drummond de Andrade).

"Iguatu, Pelos Novos Caminhos da História", o segundo volume da incontornável pesquisa sobre Iguatu a que se dedicou ao longo de uma vida o historiador Wilson Holanda Lima Verde, a cujo lançamento tive o privilégio de assistir (e participar com grande alegria), na noite desta quarta-feira 27, no Ideal Clube, em Fortaleza, é obra que confere ao autor o definitivo título de paladino de nossa memória.

Vazado num estilo elegante, mas sem eruditismos desnecessários, o historiador traça com segurança, domínio de linguagem e fina capacidade de percepção dos fatos, naquilo que tiveram de mais significativo, o desenrolar da história de Iguatu, dando visibilidade aos desconhecidos (e não menos dignos de realce, por isso) e novo brilho aos que já se tornaram referências reconhecidas nos registros historiográficos até aqui realizados em diferentes publicações, jornais, revistas, livros e documentos de toda ordem --- além das conversas informais, poemas telúricos, como os de Ossian Nogueira, e dos causos à Geovane Oliveira, transmitidos de uma geração a outra.

O livro, pois, já nasce clássico, ombreando-se a obras de densidade intelectual e rigor analítico já consagradas, a exemplo do ainda insuperado "Iguatu", de Alcântara Nogueira.

Em suas páginas, assim, vê-se o pesquisador atento e criterioso, o homem de sensibilidade, apaixonado pelo que faz, dedicado a esmiuçar acontecimentos, dirimir dúvidas, elucidar divergências, apoiando-se invariavelmente num vastíssimo repertório de informações --- e numa insuspeita visão de mundo, que pautou sempre, frise-se, pela correção e cidadania exemplares.

Se não sabemos para onde estamos indo, mas que a história é que nos trouxe até aqui, como desfecha o seu monumental "A Era dos Extremos", Eric Hobsmawm, o livro de Wilson Holanda Lima Verde  --- nos limites estabelecidos de sua pretensão, o município da região Centro-Sul do estado, em que nasceu e viveu a maior parte dos seus dias --- constitui alentada e alentadora prova de que existem, ainda, caminhos a se percorrer, alternativas de ação a se buscar, contribuições a se dar, independentemente das diferenças que nos separam do ponto de vista econômico, social, intelectual e político, pois que é bastante, para tanto, amar as nossas origens e compreender as nossas apreensões, abrir-se ao porvir com entusiasmo, combater o bom combate em defesa de um mundo mais justo, mais humano, mais livre e mais solidário.

Folheando as páginas deste livro notável, já nos primeiros instantes de um novo dia, pude sentir que seu autor, à maneira de Horácio, o poeta latino da Antiguidade, conseguiu o que é precioso num grande livro: que ele deleite e ensine, deixando o leitor mais leve e mais bem informado. É que Wilson Holanda Lima Verde escreve com clareza, imprimindo um ritmo pessoal à narrativa, sem floreios ou tentativas inúteis de sofisticar a forma em detrimento do conteúdo. Isso, por si só, já o coloca, como escritor, entre os muito bons, vitorioso em suas conhecidas intenções de historiador.

A enriquecer esse belíssimo "Iguatu, Pelos Novos Caminhos", devo destacar o que diz sobre o autor e sua obra, Ivan Lima Verde, na primeira orelha, e, à guisa de prefácio, irretocável, o texto de José Hilton Montenegro, também ele dedicado estudioso da história de Iguatu.  Um e outro, sem artifícios ou subjetivações inconsistentes, deslindam o que é fundamental no livro de Wilson Holanda Lima Verde: exatidão, vigor, senso de realidade historiográfica, a que se soma, digo eu agora, um espírito poético que se expressa com comedimento e aristotélica noção de medida.

Para finalizar, que o espaço é exíguo, ocorrem-me os versos desconcertantes de Fernando Pessoa na inconfundível voz de Alberto Caeiro: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."

Durante o lançamento de seu livro tão importante e tão oportuno, momentaneamente fixei o olhar nos olhos de Wilson, meu amigo e meu mestre: havia ali as águas do Jaguaribe, o rio que corre, vez e outra, caudaloso, pela nossa aldeia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Reais e imaginários

É como se Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, por quase toda a vida, ocupassem uma mesa para escrever, a quatro mãos, contos, roteiros de cinema, crônicas e outros textos de altíssima qualidade, os quais, sob muitos aspectos, ajudassem a compreender seus processos criativos e suas percepções de mundo. O resultado, posso acreditar, seria esplêndido. Curiosamente, foi o que ocorreu a dois outros grandes escritores de língua espanhola, os argentinos Adolfo Bioy Casares (1914-1999) e Jorge Luis Borges (1899-1986).

Tudo começou, supostamente, por volta de 1936, numa fazenda de um tio de Bioy, rico produtor de leite e derivados, e tinha por objetivo apenas divulgar os produtos processados a partir do líquido precioso, o iogurte La Martona. Do ponto de vista comercial, o empreendimento não foi bem-sucedido, mas ensejou uma parceria que entraria para a história da literatura hispânica --- e que só agora chega ao Brasil em tradução notável de Maria Paula Gurgel Ribeiro (Companhia das Letras, 2023).

Mas o livro, claro, não enfeixa textos assinados pelos dois autores, de cuja convivência nasceu um "terceiro homem", Honorio Bustos Domecq*, uma espécie de heterônimo que veio ao mundo em 1941 e para quem Bioy e Borges tiveram a preocupação de traçar um perfil psicológico jocosamente atribuído à educadora Adelma Badoglio, também ela produto da inventividade desses dois monstros sagrados da literatura latino-americana.

Tudo, naturalmente, soa estranho, absurdo, rompendo os limites entre a realidade e a ficção, muito embora, aqui e além, para leitores mais familiarizados com a escrita de ambos, sobressaiam componentes estéticos que viriam a marcar o estilo e os experimentos de linguagem recorrentes em suas obras. Os contos, por exemplo, guardam a mesma atmosfera fantástica que norteia alguns dos textos mais conhecidos de Borges, bem como salta aos olhos a pegada surreal do criador de "A Invenção de Morel".

O próprio processo de criação da obra faz-nos lembrar o incontornável "Pierre Menard, autor do Quixote", do livro "O jardim de veredas que se bifurcam" (1942) ou o não menos genial "A Biblioteca de Babel", com razão considerados os mais borgeanos dos textos do escritor argentino. Naquele, a cujo enterro Borges afirma ter assistido, sabe-se que se propunha realizar, numa obra invisível, a mais perfeita tradução para o francês do clássico de Cervantes; neste, o autor supõe a existência de uma biblioteca total, com todos os livros e todos os seres, mas em cujo labirinto estaria a perdição do homem. A questão do "duplo" em Menard, e o "labirinto", n'A Biblioteca, antecipam-se em muitos dos contos deste maravilhoso "Bioy e Borges, obra completa em colaboração". À essa altura, no entanto, deve-se observar que seus textos quase sempre remetem a outros textos. "As noites de Goliadkim", para citar um dos mais densos do livro, traz perfumes de Agatha Christie e seu conhecido "Assassinato no Expresso Oriente", mas noutra chave estilística, mais complexa e incompreensível.

O elemento central dessas histórias, contudo, o fio condutor propriamente dito, é a imaginação livre, a capacidade de pensar como realidade aquilo que habita o sonho, a fantasia, o engenho criativo, bem na linha do que é possível encontrar em Wittgenstein (1889-1951) e o "Tratado Lógico-Filosófico", em que Bioy e Borges, sem o citarem, supostamente encontraram o suporte teórico para tecer narrativas tão intrigantes e tão sedutoras.

A edição brasileira desse livro indispensável (refiro-me, claro, aos leitores de Borges, sobretudo), traz ao final três textos extremamente enriquecedores e elucidativos (como é próprio dos bons posfácios): Nós é um outro, de Michel Lafon; De igual para igual, de José Pimentel Pinto, e Quando dois são três ou mais, de Davi Arrigucci Jr.

Numa época de tantos desencontros, mais que nunca a arte constitui uma alternativa de ação, um caminho para chegar ao outro, para vivenciar o sentido pleno da alteridade --- a função outrativa da linguagem a que se referiu Edvard Lopes em livro por demais conhecido ---, de que "Bioy e Borges", o livro que acaba de nos chegar às mãos, constitui bom exemplo.

Mais que recomendo.

  

*Bustos é sobrenome de um bisavô de Borges; Domecq, de um bisavô de Bioy.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Dia Internacional da Democracia

Os espíritos tacanhos precisam de despotismo para o jogo de seus nervos, como as grandes almas têm sede de igualdade para a ação de seu coração.

BALZAC (1799-1850)

Escrevo esta coluna no Dia Internacional da Democracia (15 de setembro). O Brasil, depois de quatro anos sob um regime de fisionomia e práticas assumidamente fascistóides, e há pouco menos de oito meses da mais repugnante tentativa de um golpe de Estado, parece voltar definitivamente para a condição de país democrático. A provar isso, felizmente, segundo relatório produzido pelo Instituto V-Dem, entidade sueca dedicada a analisar a realidade política mundial em termos democráticos, o Brasil, desde a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, volta a figurar entre os países em nível democrático satisfatório, com nítida reversão do quadro de ameaças a que foi submetido durante o governo do inominável.

O resultado, não bastasse configurar uma realidade política desejável, em que as instituições funcionam de conformidade com o que lhes impõe a Constituição Federal, tem ainda maior significado quando os números do levantamento, na perspectiva global, apontam para um crescimento de regimes autoritários nos últimos quarenta anos. A estimativa, segundo o instituto, é de que pouco mais de 70% da população mundial sejam governados por regimes autocráticos, muitos dos quais vivendo realidades muito próximas do que se pode definir como modelos neofascistas ou com eles identificados.

O relatório evidencia que o Brasil caminha para a plena reconstrução democrática, mesmo considerando-se a existência de organizações de extrema direita empenhadas em impedir esses avanços em práticas cotidianas que se estendem do simples desejo reacionário (volta dos militares ao governo), por exemplo, a comportamentos do dia a dia marcados pela intolerância, racismo, aversão aos pobres, visão elitista de mundo, desrespeito aos valores republicanos e sanha ideológica contra entidades, movimentos populares e partidos convencionalmente considerados progressistas  ---  PT, PSOL e afins.

A celebração do Dia Internacional da Democracia, ressalte-se, ocorre entre nós, brasileiros, num momento particularmente importante da pauta política e institucional nacional, leve-se em conta os julgamentos, iniciados ontem pelo STF, dos envolvidos com os atos de 8/1, cujas sentenças até aqui conhecidas giram em torno dos 17 anos em regime fechado.

O momento, pois, constitui uma demonstração de que inimigos da democracia e destruidores da coisa pública deparam com um desfecho para eles surpreendente. É indispensável, no entanto, que esses processos e as investigações em andamento não se limitem aos "bagres", aos desordeiros e desatinados autointitulados "patriotas", os que batem continência para pneus e constituem, sob o domínio da insensatez, provas contra si mesmos. Urge que se chegue --- e as provas são incontrastáveis --- aos peixes grandes, tambaquis, dourados e poraquês que assoberbam as águas verdes dos quartéis.

Falar nisso, qual o paradeiro dos esbravejadores de há pouco, agora convertidos ao mais acovardado silêncio? Por onde andam Augusto Heleno, Luis Fernando Ramos, Paulo Sérgio, anfitrião de hackers com fito golpista? Onde o general Braga Neto, Eduardo Pazuello, Bento Albuquerque, José Roberto Bueno Jr., onde?

Como escreveu em coluna notável o jornalista Ruy Castro, "tão valentes no poder, hoje trêmulos e mudos. Mas terão de criar coragem e se explicar".

No dia que lhe é internacionalmente dedicado, viva a democracia brasileira!

  

 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Ainda sobre poesia e música

Semana que passou, escrevi neste espaço sobre a proximidade da música com a poesia. O texto ensejou por e-mail e WhatsApp bons comentários. Mais de um leitor fez alusão ao simbolismo, movimento estético ocorrido entre fins do século 18 e inícios do século 20, dentre cujas caraterísticas sobressai o gosto pela musicalidade dos versos. A tendência, mais que um deleite com a sonoridade das palavras, num tipo de formalismo descompromissado, revela antes o sentido simbólico como caminho para a expressão do mundo interior do poeta, indo do consciente para o subconsciente e o inconsciente, alcançando toda a dimensão do "eu profundo".

Para tanto, buscava o poeta traduzir pela linguagem verbal o inefável, sensações e estados anímicos os mais diversos, atingindo níveis de abstração impensáveis. É nessa perspectiva que explorava o símbolo não como usualmente o fazemos (a pomba branca, por exemplo, simbolizando a paz), mas de modo a reduzi-lo a uma massa sonora carregada de sugestões, aproximando com isso a poesia da música. É que nenhuma linguagem estética é capaz de suscitar emoções intraduzíveis quanto a música, mesmo quando estamos falando de músicas sem letra, como é recorrente entre os clássicos, quase sempre compostas sobre bases narrativas, isto é, quando "contam" histórias, casos, enredos imaginados pelo compositor.

São imperdíveis, como exemplo, os versos do poeta Cruz e Sousa no irretocável "Violões que Choram": "Vozes veladas, veludosas vozes/Volúpias dos violões, vozes veladas/Vagam nos velhos vórtices velozes/Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas". Para não citar, claro, os franceses Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, ápices dos experimentos musicais do verso.

Agradecendo ao interesse despertado pelo artigo, retomo a reflexão para observar que, embora dominante durante o fastígio do movimento simbolista, como deixei evidenciado antes, poesia e música andam de mãos dadas, mesmo quando se toma como parâmetro o verso modernista, que sabemos refratário à forma fixa, à métrica rigorosa, à rima convencional. No Brasil, são notáveis sob este aspecto, para me referir aos clássicos, poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Sobre este é imprescindível ressaltar-se "a estilística da repetição", tão bem examinada em livro maravilhoso de Gilberto Mendonça Telles, com este título. Quanto a Manuel Bandeira, creio ser o caso mais representativo, pois que sua poética está firmemente calcada na fina percepção da potência musical da palavra. Não é muito lembrar que Bandeira sempre deixou evidenciado o seu amor pela música, que considerava a mais sublime das expressões artísticas.

Nesse sentido, é absolutamente oportuno que me volte para o seu "Itinerário de Pasárgada", livro de memórias com que o poeta pernambucano traça o seu perfil criador, indo das raízes da infância ao aprimoramento estético, todo ele embasado no amor à música e no pleno domínio dos recursos da versificação. A esta altura, abro aqui um parêntese: revendo ontem o belo filme "Inocência", de Walter Lima Jr., baseado no romance homônimo de Visconde de Taunay, marejei os olhos na bela sequência em que Fernanda Torres canta "Azulão", poema escrito por Bandeira para a música de Jayme Ovalle*: "Vai/Azulão,/Azulão,/Companheiro,/Vai!/Vai ver minha ingrata./Diz que sem ela/O sertão/Não é mais/Sertão!/Ai voa!/Azulão,/Vai contar,/Companheiro,/Vai".

Para não me alongar, considere-se a exiguidade do espaço, os limites entre poesia e música estão desde sempre diluídos, o que ressalta o preconceito em relação aos bons letristas serem considerados "poetas" mesmo no sentido clássico.

Voltando a Manuel Bandeira, assim, é que sobram os exemplos de que sua poesia está assumidamente ligada à música, sendo numerosos os estudos que examinam essa proximidade. Digo melhor: essa unidade.

Por último, do mesmo poeta, cito o poema intitulado "Letra para uma valsa romântica", não estranhamente escrito a pedido do maestro Radamés Ganattali: "A tarde agoniza/Ao santo acalanto/Da noturna brisa/E eu, que também morro/Morro sem consolo/Se não vens, Elisa!".

Como se vê, o ritmo e as rimas do poema ecoam a valsa. Os versos de seis sílabas observam um compasso ternário. Mas isso já é música em sentido estrito, matéria que não é, com rigor, minha praia.

Bom fim de semana!

*A música foi objeto de releitura pelos maestros Camargo Guarnieri e Radamés Ganattali. Em tempo: No filme de Walter Lima Jr., a voz, registre-se, é da cantora Telma Costa.