sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O Glorioso de General Severiano

Em inícios dos anos 70, sofri um grave acidente que me deixaria marcas no corpo. Durante algum tempo, certa tensão psicológica. Eu tinha 15 anos, era um tipo bonito e participara, como modelo, de pelo menos dois desfiles de moda. O que não fiz? Para o jovem inexperiente e vaidoso de então, as cicatrizes eram muito mais que sinais na pele, depois da ferida curada. Era uma lembrança dolorosa, traumatizante, estigmática, no corpo belo e viçoso do adolescente.

Um ano depois, por volta de 1973, começo uma série de viagens ao Rio de Janeiro para me submeter a cirurgias plásticas. Entre uma hospitalização e outra, aproveito a minha estada na cidade para me dedicar a uma das minhas maiores paixões: o Botafogo de Futebol e Regatas.

Ia com regularidade e assiduamente à sede de General Severiano, assistia aos treinos, fotografava com os jogadores, meus primeiros ídolos. Se hoje, amando com a mesma fidelidade o Botafogo, dou pouca importância ao futebol, colocando este interesse em seu devido lugar, à época era um torcedor fanático e, não raro, sabia de cor o nome de registro de todo o elenco alvinegro. Pasmem, de alguns, sabia com quem namoravam, com quem eram casados, de que pratos gostavam. Tolo fanatismo do menino que fui!

Botafogo! Botafogo!/Campeão  –  desde 1910./Foste herói em cada jogo/Botafogo,/Por isso é que tu és/E hás de ser/Nosso imenso prazer/Tradições,/Aos milhões tens também./Tu és glorioso/Não podes perder/Perder pra ninguém/Noutros esportes/Tua fibra está presente/Honrando as cores/Do Brasil de nossa gente/À estrada dos louros/Um facho de luz/Tua estrela solitária/Te conduz.

Cantava emocionado o hino de Lamartine Babo antes e depois de cada jogo. Minto: se o time da estrela solitária perdia, faltavam-me forças e caía (quase literalmente!) em prantos. Uma loucura, uma psicose. Uma paixão sem nome.

Ocorre-me, neste instante, lembrar do cronista Mário Filho: – "Ser botafoguense é mais do que pertencer a um clube, a um grande clube. É pertencer a uma casta, com o seu tipo especialíssimo, inconfundível." Ou, para revelar uma marca realmente inconfundível de todo bom botafoguense, do seu irmão Nelson Rodrigues: "[…] há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal."

Nada, não. O certo é que, naquela geração de fins dos anos 60 (o Botafogo fora bi-campeão da Taça Guanabara e do Campeonato Carioca, em 68), havia em General Severiano uma verdadeira máquina de fazer gols, e de evitar sofrê-los: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César.

Dia desses, revendo a história do alvinegro carioca, encontrei o "time de todos os tempos" escalado por um botafoguense célebre, o escritor Sérgio Augusto: Manga, Carlos Alberto Torres, Leônidas, Nilton Santos e Marinho Chagas; Didi e Gérson; Garrincha, Jairzinho, Heleno de Freitas e Paulo César.

Como se vê, o jornalista dá um jeitinho para ter no mesmo time Nilton Santos e Marinho Chagas, embora os dois atuassem na lateral-esquerda. Para não falar de Didi, que aparece na sua seleção como médio-volante. Coisas de botafoguense. Se é difícil, a gente dá um jeito!

Quanto a mim, até onde sei, constitui motivo de orgulho figurar como torcedor do Botafogo de Futebol e Regatas ao lado de gente que admiro pelo que realizaram fora das quatro linhas, como escritores, cineastas, jornalistas etc. Vamos citar alguns? Aí vai: João Saldanha, Olavo Bilac, Vinicius de Moraes, Glauber Rocha, Augusto Frederico Schmidt, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Antonio Candido, Armando Nogueira, Ana Botafogo, Beth Carvalho, Adriana Calcanhoto, Claudio Marzo, Paulo Betti, Visconde de Taunay, Agildo Ribeiro, Cid Moreira, Carlos Eduardo Novaes, Carla Camurati, Bernardinho e tantos e tantos apaixonados pelo Glorioso.

Para finalizar, coisa que só uns poucos amigos sabem: certa feita, me apresentei aos juvenis de General Severiano para pleitear um lugar como médio-volante. Cheguei a bater bola no dia do teste, mas, devido ao grande número de pretendentes, fui relacionado para o treino da semana seguinte. Exatamente a semana em que me submeteria à primeira de uma série de cirurgias plásticas, sobre o que já falei, no alto. Se seria ou não aprovado, são outros quinhentos. A bem da verdade, confesso, não era dos piores, e tratava a bola por você. Tinha com ela alguma intimidade.

Obs. Crônica publicada no livro Depoimento. Republico-a atendendo a uma provocação de outro botafoguense, entusiasmado com a volta do Glorioso à elite do futebol brasileiro.

 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Noites de luar na ABL

Poetas, seresteiros, namorados / Correi! / É chegada a hora de escrever e cantar / Talvez as derradeiras noites de luar." (Lunik-9)

Chama a atenção o mal-estar que tomou conta de milhares de pessoas no Brasil desde a eleição de Gilberto Passos Gil Moreira para a cadeira de número 20 da Academia Brasileira de Letras. Nas redes sociais, sobretudo, é assustador o que se tem veiculado sobre o fato, e que bem materializa o desrespeito a um princípio intelectual básico: não se emitir opinião sobre aquilo que se ignora. No caso, a obra do artista baiano, uma das maiores da cultura brasileira.

Num juízo estreito e preconceituoso, acima de tudo, desconsidera-se o fato de que Gilberto Gil é, para além do cantor e compositor de forte apelo popular, um poeta de extração clássica, em que pese produzir letras na perspectiva das licenciosidades formais próprias do poema moderno: versos livres (sem métrica definida) e brancos (sem esquema fixo de rimas), mesmo, como é seu caso, quando assentado em bases estruturais advindas do pleno domínio da linguagem poética (ritmo, cadência, aliterações, assonâncias, consonâncias, dissonâncias intencionais, metáforas, organização inédita de imagens e associações desconcertantes). Numa palavra: o uso da linguagem em sua função poética, conforme teoria de Roman Jakobson.

Já a essa altura, dirão: ele faz letras de música, não poemas. Ao que acrescento: claro, foram pensadas para serem cantadas, portanto apoiadas no código musical. Nada impede, todavia, que sejam lidas independentemente da música, com significados e potências poéticas originais ou a ela acrescentadas. Sem esquecer que, pelo arranjo de linguagem, essas letras, como é recorrente no poema tradicional (não uma propriedade infalível sua) trazem em si uma musicalidade própria, que vai além da melodia com a qual foi produzida enquanto canção.

Nesse caso, é natural que o significante textual perca, pela ausência do código musical, parte de sua intencionalidade. Na contramão disso, no entanto, ganhará elementos novos a partir das diferentes possibilidades de leitura: ênfase, dicção, pausas, silêncios etc. O problema, como se vê, é complexo, mas não insolúvel. Poema e letra de música são, observadas algumas especificidades, arte da palavra, literatura, portanto.

Nesse sentido, lancemos mão do próprio texto de Gilberto Gil. Em Domingo no parque, por exemplo, uma das canções fundantes do tropicalismo, deparamos com um poema em que sua força de sentido vai além da musicalidade (que, por sua vez, independe do código musical a que está originariamente atrelado). Nele, agora me refiro ao texto verbal (do ponto de vista semiótico existem outros tipos de texto), pode-se perceber como é particularmente expressivo o uso de recursos próprios de outros códigos, o cinematográfico, no caso em exame. A propósito, são extremamente felizes as palavras de Fred de Góes, professor de Teoria Literária da UFRJ, em trabalho importante sobre a obra de Gilberto Gil: "... após situar as personagens e descrever o cenário onde a ação se desenrolará, o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos flashes. Além da letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas, evocando realisticamente um parque de diversões".

O texto está dividido em seis estrofes irregulares, de quatro, sete, onze, dez, doze e quatro versos, respectivamente. Nas três primeiras estrofes predomina o ritmo narrativo/descritivo: na primeira delas, "O rei da brincadeira --- é José / O rei da confusão  --- é João / Um trabalha na feira  --- é José / Outro na construção  ---  é João", as personagens são apresentadas.

Na segunda e terceira estrofes, o poema abandona o tom descritivo e passa à ação, sutilmente enriquecida pela revelação do caráter de cada personagem, José e João, a que se soma Juliana, objeto de desejo que leva ao conflito instalado na estrofe seguinte, a quarta do poema, além de situar o cenário, o parque de diversões, no qual se instalará o componente dramático central da narrativa: "O José, como sempre, no fim de semana / Guardou a barraca e sumiu. / Foi fazer no domingo, um passeio no parque, / Lá perto da boca do rio. / Foi no parque que ele avistou / Juliana, / Foi que ele viu / Juliana na roda com João, / Uma rosa e um sorvete na mão. / Juliana, seu sonho, uma ilusão, / Juliana e o amigo João. // O espinho da rosa feriu Zé / E o sorvete gelou seu coração. / O sorvete e a rosa  ---  ê José / A rosa e o sorvete  ---  ê José / Oi dançando no peito  ---  ê José / Do José brincalhão  ---  ê José / O sorvete e a rosa  ---  ê José / A rosa e o sorvete  ---  ê José / Oi girando na mente  ---  ê José / Do José brincalhão  ---  ê José".

O texto, que tem como substrato dramático uma cena de traição, seguida do assassinato do casal, por José, é metaforicamente enriquecido pela sugestiva inversão dos substantivos "espinho" e "ciúme", posto que, como observa Góes, aqui citado, não é o espinho que fere José, mas o ciúme que o devasta ao deparar com a mulher amada na companhia do amigo: "O espinho da rosa feriu Zé, o sorvete gelou seu coração".

A penúltima estrofe concentra o desenlace da narrativa, e o ritmo obedece a uma luta corporal em que os perfis psicológicos das personagens, a exemplo dos substantivos na estrofe anterior, aparecem invertidos: "Juliana girando  ---  oi girando / oi na roda gigante  ---  oi girando / O amigo João ---  oi João / O sorvete é morango  ---  é vermelho / oi girando e a rosa  ---  é vermelha / oi girando, girando  ---  é vermelha / Oi girando, girando  ---  olha a faca / Olha o sangue na mão  ---   ê José / Juliana no chão  ---  ê José / Outro corpo caído  ---  ê José / Seu amigo João  ---  ê José / Seu amigo João  ---  ê José". Os versos, pelo uso inventivo do ritmo e a repetição inusitada do gerúndio girando, têm uma força imagética envolvente e bastante sugestiva na perspectiva de sua "visualidade", como a colocar diante dos olhos do leitor a luta entre os pelejadores.

A última estrofe, de quatro versos, fecha o poema expondo o resultado da tragédia passional: "Amanhã não tem feira  ---  ê José / Não tem mais construção  --- ê João / Não tem mais brincadeira  ---  ê José / Não tem mais confusão  ---  ê João".

Ao lado de outras quase mil composições, cujas letras na sua totalidade se prestam a leituras independentes do código musical (pelas características estéticas evidentes), com que constituem em princípio unidades artísticas de notável qualidade, Domingo no parque, a exemplo de clássicos como Cálice (em parceria com Chico Buarque), LouvaçãoSuper-HomemExpresso 2 222Meu amigo, Meu HeróiDrãoUm SonhoÊxtaseSe Eu Quiser Falar com Deus, Viramundo (em parceria com Torquato Neto), Copo Vazio e tantas e tantas obras-primas do cancioneiro popular, dá a ver a presença de um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

Que não sejam derradeiras as noites de luar. Parabéns, poeta!

 

 

 

 

 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Novos imortais da ABL

A eleição de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras, na esteira do que já ocorrera com relação a Fernanda Montenegro, há uma semana, serviu para alimentar a velha discussão: o que é literatura? A pergunta, se atrelada a definições ditas clássicas, por certo ensejará um tremendo desconforto, uma vez que a produção dos dois artistas recém-eleitos, em termos rigorosamente literários, não pode ser considerada tão significativa  ---  cada um deles publicou apenas um livro.

Se formos além dos conceitos tradicionais que os manuais de estética e teoria da literatura atribuem à grande ao termo literatura, no entanto, haveremos de concluir: literatura é algo muito mais abrangente. O teatro e a música, assim, estão de tal forma ligados à arte literária que não é muito compreendê-los como extensão daquilo que, historicamente, se convencionou chamar de literatura propriamente dita. Indago: o que são o texto dramático e as letras de música, ambos nascidos do uso estilizado da linguagem verbal?

Num tempo em que as linguagens estão fortemente entrelaçadas, portanto, é estreito defender a ideia de que as fronteiras entre literatura, teatro, música, cinema, artes visuais e outras estéticas constituam muros indevassáveis, ao ponto de entendê-las, unicamente, como realidades autônomas.

Sob este aspecto, por exemplo, como avaliar a atuação de um ator num filme, se não com os instrumentos da análise dramática? Como se falar de ritmo, cadência, musicalidade de um poema ignorando-se os elementos da estética musical? Em que sentido não é literatura a letra de uma composição como Super-homem (Quem dera / Pudesse todo homem compreender / Oh mãe quem dera / Ser o verão o apogeu da primavera / E só por ele ser) ou Drão (Quem poderá fazer aquele amor morrer / Nossa caminhadura? / Dura caminhada / Pela estrada escura), cuja estrutura, carpintaria verbal e jogo de linguagem saltam aos olhos de qualquer ouvinte mais atento como literatura de fina qualidade?

A trajetória artística de Fernanda Montenegro, por sua vez, num tempo de irrefreáveis trocas intersemióticas (que só ampliaram as potências e o valor de cada estética), está e esteve sempre marcada pela presença de obras de gente como Shakespeare, Calderón de La Barca, Samuel Beckett, Sófocles, Nelson Rodrigues, August Strindberg, Edward Albee, Bernard Shaw, Simone de Beauvoir e tantos outros grandes escritores, que será grotesco fechar os olhos para a sua notável contribuição, como artista extraordinária que é, para aquilo que se deve entender por  literatura em toda a sua beleza e imortalidade.

Quanto a Gilberto Gil, em que pese a sua maior visibilidade como cantor e compositor, sugiro que se leia o seu Todas as Letras (1996), conjunto de letras produzidas por ele, que, mesmo se submetidos ao exame teórico mais especializado, constitui poesia da maior qualidade.

Aos 79 anos, ex-ministro da Cultura e um dos expoentes do movimento tropicalista, surgido em São Paulo no final da década de 60, Gilberto Gil ocupará a cadeira de número 20 da ABL, deixada pelo jornalista Murilo Melo Filho e, ironicamente, ocupada antes, frise-se, pelo general e ex-ministro do Exército Lyra Tavares. Deste, até onde sei, deve-se em parte a autoria do AI-5 e a condenação do compositor baiano, agora imortal, ao degredo nos tempos sombrios da ditadura implantada no país com o golpe de 1964.

 

 

 

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Para Clarice, com candura: estilo e engenho do contista

Leitora tece generosas considerações à coluna da semana sobre livro de Chico Buarque ---, e lamenta que não tenha feito referência ao conto Para Clarice Lispector com candura, que diz ser "o melhor de todos".

De fato, cara leitora, foi imperdoável de minha parte. Ou, quem sabe, percepção inconsciente de que não se deve explorar uma obra-prima no espaço exíguo de uma crônica de jornal. Vá lá, ao fim e ao cabo, dou-me ao comentário que você, com a propriedade de uma amante de Clarice, cobra deste escriba desatento.

Um dos dois contos em terceira pessoa, entre oito do livro, Para Clarice, com candura mistura ficção e realidade em proporções quase indistinguíveis, exceto pelo desfecho em que Chico Buarque dá asas à imaginação e joga com o elemento cômico que descontrói a leve tensão dramática de todo o conto: a história de aficionado leitor de Clarice Lispector pouco antes da escritora publicar o seu transgressor Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de 1969, cujo enredo, em certa medida, converge para a experiência vivida pelo pretenso poeta que confiara à escritora uma avaliação de seus escritos. Ocorre, aqui, algo como um "mise-en-abîme" estilizado que torna a narrativa profundamente sedutora. O conto, insisto, é de uma beleza sem nome, como de resto o livro inteiro com que Chico Buarque presenteia seus leitores na antevéspera do fim de ano.

Não seria muito dizer que o contista fez, nas contadas vinte páginas com que tece a sua narrativa, um tipo de biografia ficcional da autora de Perto do coração selvagem, não discorrendo sobre vida e obra de Clarice Lispector, claro, na linha do que foi possível a Benjamin Moser no seu incontornável Clarice, 2009, em que cobre a trajetória de Clarice Lispector da infância miserável na Ucrânia ao reconhecimento no Brasil e no mundo. Seria um despropósito em face do conto de Chico Buarque uma vez que estamos falando de ficção, e ficção, como vai dito, da melhor qualidade. Mas, como é próprio de um especialista em sutilezas, a matéria essencial do conto, a exemplo do ficcionista Chico Buarque de Holanda, dissecando o espírito de Clarice, indo aos traços mais anímicos de uma mulher de personalidade tão complexa e tão surpreendente, malgrado o rótulo de tímida, para desvendar seus mistérios, suas inconfessáveis pulsões, como a penetrar no seu indevassável mundo interior.

É o que ocorre, por exemplo, nas primeiras linhas do conto, quando dá a ver uma das marcas de caráter mais desconcertante de Clarice Lispector: o intimismo da dama inacessível que se contradiz num piscar de olhos, como no convite inesperado a um jovem desconhecido para um café de segunda-feira. Ou, noutra passagem, reeditando um caso ocorrido ao próprio Chico Buarque, quando desaparece do convidado sem lhe dar qualquer satisfação, até que esse conclua, pelo perfume renovado e o cabelo molhado, que se ausentara em meio à conversa para um banho rápido, como a se equilibrar no fio delicado que separa a informalidade da má educação. É Clarice Lispector com suas excentricidades, seu jeito inusitado de tocar a vida.

No entanto, é na passagem em que faz alusão ao incêndio de que foi vítima a escritora, porém, que a narração mais ainda entrelaça elementos da realidade e da ficção. Aqui Chico Buarque invade um território poucas vezes explorado de forma tão cristalina, e traz à tona o drama vivido por uma mulher extremamente vaidosa que vê seu corpo da noite para o dia (a mão direita, sobretudo) parcialmente deformado no desastre: "Tinha certeza de que a qualquer momento, quando ela estivesse distraída,  ele não resistiria a espiar de relance aquela mão. Ela talvez o pressentisse, porque de repente levantou o braço esquerdo e consultou ostensivamente seu relógio, fazendo questão de que ele também o visse, como a indicar que o tempo da visita estava esgotado".

A habilidade do contista é tanta, que o leitor, com uma clareza quase cinematográfica, extrai dos gestos e titubeios da personagem, a própria Clarice Lispector, a nítida conclusão do quanto o acidente teria repercussão para o resto de sua vida: "E agora levava o cigarro à boca com tal naturalidade, que afinal a mão direita lhe parecera tão sã e elegante  quanto a outra, com a diferença de uns dedos um pouco mais magros e ossudos. E a pele da região parecia apenas ligeiramente escurecida, como se ela costumasse viajar de carro com um braço para fora da janela".

Contudo, onde a sugestão de que estamos diante de um exemplo clássico de intertextualidade com relação a Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres?

Como neste que é o mais autoral dos livros de Clarice Lispector, Para Clarice, com candura tem como fio condutor a expectativa amorosa de um leitor contumaz da escritora cuja paixão, como sugere com refinada sutileza o narrador, parece correspondida: "Veja lá, disse a mãe com ironia, veja lá se você não está se apaixonando. [...] Veja lá, filho, veja lá porque ela tem uma queda por rapazes frágeis, disse caindo na risada". Sob este aspecto, aliás, não é sem razão que se pode destacar uma fala de Clarice quando da primeira visita do rapaz a sua casa: "O que você acha do amor?" E, mais adiante, de forma ainda mais insinuante, "queria mesmo era ouvir a sua voz, saber de sua vida, se ele ainda tinha namorada firme, se de vez em quando também se sentia só".

Como a confirmar as expectativas da mãe, o rapaz,a essa altura já conhecido entre os estudantes de Letras como o amante secreto de Clarice Lispector, passa dias e noites à espera de um novo "convite para o jantar romântico".

Sustentando-se, pois, em sutilezas e situações intencionalmente eivadas de ambiguidade, e vazado num estilo elegante e profundamente expressivo, que é mesmo uma das marcas do artista como escritor, Para Clarice Lispector, com candura, ao lado de ser literatura da mais alta qualidade, constitui, como o título do conto explicita, uma belíssima homenagem de Chico Buarque a uma de suas autoras prediletas.

Obra-prima o livro de contos de Chico Buarque de Holanda.