quinta-feira, 30 de abril de 2015

É tudo verdade

Quarta-feira 6, os meios cinematográficos do mundo inteiro celebrarão os 100 anos de Orson Welles. Trata-se do reconhecimento definitivo do maior gênio da sétima arte, aquele a quem se deve atribuir, com justeza, as contribuições mais importantes do que se considera a modernidade na cinematografia. E não me refiro ao canônico Cidadão Kane, cujos procedimentos estéticos praticamente dividiram a história do cinema em dois momentos. Estou falando de quase tudo que fez seu diretor desde o clássico de 1941, incluindo o segundo filme, Soberba, severamente modificado por seu produtor sem o consentimento de Welles.
 
A propósito, para os cearenses, o nome de Orson Welles deveria ser objeto das mais elevadas homenagens. Esclareço: em 1942, estando Soberba em processo de montagem, mesmo na ausência do seu diretor, contratado pela RKO para realizar um documentário sobre o carnaval carioca, viajou para o Brasil esse monstro sagrado do cinema. O projeto fazia parte de um amplo programa de aproximação dos Estados Unidos com países da América Latina, embutido aí o jogo de interesses imperialistas que sempre perpassam a política de relações internacionais do grande império para com o resto do mundo, nomeadamente, como à época, os países de terceiro mundo.
 
O tiro sairia pela culatra. Em que pese tratar-se de um nacionalista assumido, Orson Welles era antes de tudo um artista dotado de afiado senso de responsabilidade para com tudo o que fazia em termos profissionais. Da ideia tortuosa de explorar as excentricidades culturais brasileiras pelo viés ideológico, na linha do que sempre se fez sobre o país, carnaval e futebol à frente, Welles já daria às primeiras tomadas um fio condutor honesto e profundamente crítico, o que ensejaria a interrupção do projeto e a inflexível decisão do estúdio americano de sustar o envio dos recursos inicialmente previstos.
 
Entre um contato e outro com os produtores, na empenhada motivação de dar continuidade ao filme, eis que Orson Welles toma conhecimento de um fato pitoresco divulgado nos principais jornais americanos: quatro pescadores cearenses haviam se lançado ao mar, numa simples jangada, de Fortaleza ao Rio de Janeiro, a fim de falar com o presidente Getúlio Vargas e tentar sensibilizá-lo para a difícil realidade dos pescadores nordestinos, desprovidos de quaisquer direitos trabalhistas ou qualquer amparo de ordem legal.
 
Sem dispor de recursos os mais básicos de navegação, num tipo de odisseia moderna, decorridos 61 dias de viagem, Manuel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo) percorreram, debaixo das mais impensáveis peripécias, os 2.381 km que separam Fortaleza do Rio de Janeiro, sem uma bússola ou carta náutica, sendo recebidos festivamente no Rio, e, em palácio, pelo presidente da República.
 
Impressionado com o feito desses heróis anônimos, Orson Welles toma um avião da força aérea brasileira e bate com os pés no Ceará a fim de rodar Four men on a raft, o que pensava vir a ser um dos episódios do filme sobre o Brasil. Aqui, gravou parte do material, e, no Rio de Janeiro, a sequência da chegada dos quatro heróis cearenses à então capital do país. Eis que o destino prepara o pior: nas águas de São Conrado, a lancha que rebocava a jangada dos quatro cearenses, durante as filmagens, numa manobra infeliz, faz virar a embarcação e lança às águas geladas seus tripulantes. Três deles seriam resgatados, mas Jacaré, o líder do grupo, jamais viria a ser encontrado.
 
Muitos anos depois, latas com parte do filme são encontradas num depósito de um estúdio americano, do que resultaria o incompleto mas sublime It's all true, que revi esta semana com meus alunos da cadeira de História do Cinema do curso de Artes do IFCE. A biografia do mais importante nome do cinema de todos os tempos, quase em silêncio, passou pelo Ceará. Até onde sei, é lamentável, nada de considerável se programou para assinalar o seu centenário.
 
 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

A paixão da poesia e a Globo

A semana começou triste. Morreu Eduardo Galeano, o escritor uruguaio amado pelos de minha geração. Sua morte envolve algo de simbólico, quando parece agonizar, também, uma certa esquerda para a qual foi sempre uma referência: aquela que acreditou na possibilidade de realizar sonhos sem abrir mão dos valores morais; que lutou com as armas da poesia e do conhecimento em defesa do ideal de uma sociedade mais justa e mais livre. Deixa-nos, que nem tudo está perdido, textos que alimentam de maneira saudável o espírito de todos nós, a exemplo de A função da Arte, o pequeno-grande conto que lhes reproduzo abaixo. Está em O livro dos abraços.

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
-- Me ajuda a olhar!


 Nunca li este conto sem marejar os olhos, sem um arrepio qualquer dos pelos. Ele me faz reanimar a velha utopia, a minha crença num mundo em que os homens possam finalmente entender que somos todos irmãos, um mundo em que a beleza do mar seja suficiente para nos abrir os olhos, e nos ajudar a olhar a vida sem o embaço da arrogância e do egoísmo. Descansa em paz, poeta.
Dedicado a estudar a construção do discurso, assisto pela tevê à cobertura da Globo News do protesto do dia 12. A câmera, que qualquer manual de jornalismo televisivo recomenda mostrar-se dinâmica em reportagens do gênero, fica estática por 15 minutos num plano que enquadra de frente um caminhão em que se lê a frase "Fora, Dilma". Foi assim por quase toda a manhã.

Penso na Escola de Frankfurt e crio relações com o que tem feito a nossa "melhor" imprensa ao longo desses muitos meses  --  e sempre! Como guardam atualidade na compreensão e na análise dos acontecimentos contemporâneos os textos de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin. O problema não está na manipulação dos fatos, de resto um ingrediente próprio da mídia, o que faz parte da correlação de forças ideológicas e do jogo de interesses (83% dos entrevistados afirmaram ter votado em Aécio Neves). O que chama a atenção é que não ocorra ao espectador questionar a veracidade do que, como no caso, ouve e vê sobre o que se passa no país hoje, a tal manifestação por exemplo.

Adorno tem para isso uma explicação clara como o sol da manhã: na indústria cultural o espectador é incapaz de separar a ilusão da realidade. O mundo com que depara diante da tela da tevê é por definição verdadeiro, o discurso prodigioso da imagem é a expressão da mais inquestionável verdade: o Brasil grita pela destituição de Dilma. Em estudo seminal sobre o pensador alemão, diz Sergio Paulo Rouanet: "Se substituirmos a expressão 'propaganda fascista' [...], não teríamos dificuldade em usar esse exemplo para mostrar como a indústria cultural condiciona seus destinatários para a credulidade, tornando-os receptivos a mensagens destinadas a produzir ou reforçar consenso".

Confirmados os números, 3 milhões de pessoas foram às ruas pedir o impeachment da presidente: faltam 500 mil para cobrir apenas a diferença, nas eleições, entre ela e seu concorrente, o tucano Aécio Neves (54,5 milhões e 51 milhões, respectivamente). Segundo o Datafolha, 63% querem o impedimento. Desses, um terço não sabe quem ocupará o lugar de Dilma e mais da metade não sabe quem é Michel Temer. Para a câmera da Globo (e os riquinhos do país, claro), contudo, o Brasil inteiro grita "Fora, Dilma!". Risível, não fosse trágico.

 

 
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Hipocrisia é o nome

Considerar a presidente Dilma responsável por todos os males do país parece vir se tornando, cada vez mais, a tendência dos brasileiros. No caso da corrupção, ninguém alardeia, por exemplo, que estão envolvidos nos maiores escândalos alguns dos mais importantes nomes do grande empresariado tupiniquim, aqueles 5% que detêm algo em torno dos 70% de toda a riqueza nacional. Não. Na perspectiva do senso comum, parte expressiva dos que vão às ruas gritar "Fora, Dilma!", é a presidente que deve responder pela roubalheira que, todos sabem, viceja nos quatro cantos do país desde sempre. E a massa, curioso, como na famosa fala de Spencer Tracy, em Fúria, de Fritz Lang, "não pensa" e se deixa enredar nas malhas golpistas de nossa melhor elite.
 
Por falar em elite, corre na internet uma campanha dos riquinhos desse imenso Brasil (Fortaleza, por exemplo) contra o beijo de Fernanda Montenegro em Babilônia, bem como o meio repleto de 'maldades' que circunda a personagem já nos primeiros capítulos da novela da Globo. Essa gente, que se alimentou através dos tempos do jornalismo tendencioso da emissora, que cresceu em sintonia com a principal empresa de um dos grupos de comunicação mais corruptos da história, agora se indigna contra o que considera "baixaria e um desserviço à família brasileira"  --  homossexualismo da personagem de nossa maior atriz, por exemplo.
 
E pensar que tal indignação parte das mesmas vozes que, sem nenhum prurido, mandam, em praça pública, a presidente "tomar no c...", seria engraçado não fosse ridículo. Gente que faz da palavra "democracia" um dos seus gritos de guerra, mas que na maior sem-cerimônia pede a volta dos militares ao poder. Gente que, com raríssimas exceções, construiu sua riqueza espoliando a dignidade humana, agora posa de indignada contra os malfeitos da classe política, e, ato-contínuo, restaura suas energias com salgados e doces na mais elegante pâtisserie da cidade e vai embora sem pagar a conta, como divulgado Brasil afora pouco depois do evento do dia 15.
 
Para essa gente, ocorre-me sugerir a leitura do livro sexto das Confissões, não as de Santo Agostinho, que seria cruel, mas as de Jean-Jacques Rousseau, que, ao imaginar-se com uma doença mortal, quis saber o que poderia realizar de melhor no intervalo que lhe restava até à morte  --  e dedicou-se a ler a grande literatura, como a do democrata Voltaire. Talvez Victor Hugo, e seu maravilhoso O último dia de um condenado.
 
Para os que fingem não entender o que estou dizendo, lá está uma advertência contra a estupidez da arrogância e da prepotência: Les hommes sont tous condamnés à mort avec des sursis indefinis. Quem sabe a leitura do romântico francês, lembrando que somos todos mortais, ajude a lhes diminuir a distância entre o que apregoam em praça pública e o que praticam na sequência do seu apregoar.