quinta-feira, 29 de março de 2018

Valorizar o silêncio

"E eu que ouvia o que não dizias, apaixonei-me por ti porque calavas!", Stecchetti, poeta italiano.

Tchékhov confiara a segunda montagem da peça A Gaivota a Stanislávski. Espetáculo pronto, chega para o diretor e reclama: - "O que você fez, o espetáculo vai ficar esticado, muito maior do que o previsto?" Ao que Stanislávski responde: - "Nada, apenas observei as pausas, valorizei o silêncio." Que bela lição não apenas de semiótica teatral. Falo de uma outra lição, que pouca gente aprendeu: observar as pausas, valorizar o silêncio.

Na vida, quase sempre, é assim. A gente não observa as pausas, não valoriza o silêncio. E, no entanto, quanta coisa ruim poderia ser evitada. Quantas feridas abertas a menos, quanto sofrimento... É que quase nunca percebemos o momento de calar, de ouvir mais o outro. Nos relacionamentos, não raro, acontece de uma palavra desnecessária pôr por terra o que se ergueu com tanto entusiasmo, o que se fez com tanto amor. Na ânsia de construir, destruímos. Na vontade de fazer valer a nossa vontade, não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio. E o mundo desmorona.

Consta que a primeira montagem de A Gaivota, em 1896, fora um fiasco. De público e de crítica. Uma pena, leve-se em consideração que o texto é maravilhoso, poético, de uma harmonia estética invulgar. O próprio autor dissera sobre ela: - "[...] uma comédia, três papeis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem (vista para o lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um toque de amor." Mas o público a repudiara. Não se observaram as pausas, não se valorizara o silêncio.
Dois anos mais tarde, sob nova direção, marcaria época no teatro universal. Desde então, uma gaivota passou a ser o símbolo do Teatro de Arte de Moscou, uma das mais prestigiadas casas de espetáculo do mundo.

Como se explica que uma mesma peça seja um fracasso hoje, um sucesso estrondoso pouco tempo depois? Simples: Stanislávski, que a dirigiu numa segunda montagem, percebera na obra uma economia de voz, de movimento, uma contenção de gestos, como jamais alguém fizera. Numa palavra: observou as pausas, valorizou o silêncio.

Na vida, como no teatro, a essência das coisas muitas vezes está nas entrelinhas, num gesto que quase não se percebe, numa palavra que não se diz, num sinal que nunca vemos...

Nas pequenas coisas da vida estão os mais fortes sentimentos, as maiores aflições. Todavia, quantas vezes não deixamos de fazer na vida como Stanislávski no teatro? Não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio...

E, no entanto, é em silêncio que fala a eternidade de Deus.

Feliz Páscoa! 

segunda-feira, 26 de março de 2018

O Cão Sem Plumas

A cidade é passada por um rio/como uma rua é passada por um cachorro;/uma fruta/por uma espada.

J.C.M.N.

Fui ver, por ocasião de sua curta temporada em Fortaleza, o espetáculo O Cão Sem Plumas, de Deborah Colker, construído a partir do livro-poema homônimo de João Cabral de Melo Neto.

Há muito, confesso, não deparava com um trabalho tão extraordinário do ponto de vista estético, em que pesem os pequenos defeitos e o fato de tratar-se de uma mistura de cinema, balé, literatura e teatro, bem na linha do que se convencionou classificar como "arte intersemiótica", aquela em que diferentes códigos são utilizados pelo realizador da obra. 

Se o poema em que se apoia o espetáculo, dos mais típicos da lavra do autor pernambucano, inícios da década de 50, notabiliza-se pela linguagem árida de um artista assumidamente avesso ao esteticismo modelar do modernismo e de alguns nomes de sua geração (a Geração de 1945), Murilo Mendes, por exemplo, a coreografia de Deborah Colker ousa lhe fazer acréscimos radicais do ponto de vista formal, indo-se aqui muito além do que se considera uma mera adaptação do objeto artístico, uma releitura ou coisa que o valha. Longe disso. 

No seu O Cão Sem Pluma, entre as muitas interlocuções  de linguagens, Deborah Colker lança mão do filme como contraponto da dança contemporânea, sua praia de origem, à frente de cuja intervenção se encontra ninguém menos que Claudio Assis, um dos grandes nomes do cinema brasileiro contemporâneo. 

De um lado, essa parceria, esse encontro de códigos, para ser mais preciso, produz um resultado extremamente bem sucedido, pois tudo é beleza enquanto expressão artística; de outro, infelizmente, deixa ver a única imperfeição digna de nota: cinema e dança competem durante os setenta minutos de duração do espetáculo. 

Constantemente, por isso mesmo, o espectador se perde na tentativa de eleger o código estético "dominante" no desenrolar de cada sequência dramática, o que resulta lamentavelmente confuso para uma construção narrativa estruturada com a participação uníssona de dois artistas de enorme talento. Não existe a perfeição.

Mas há outro aspecto, ainda, que me parece merecedor de consideração: se Claudio Assis foi muitíssimo feliz na escolha do preto e branco fílmico, ampliando com isso a beleza e a força poética das imagens projetadas na tela, todas elas alusivas à contingência humana que é mesmo o eixo dramático do poema de João Cabral de Melo Neto, o mangue e os homens-caranguejos interpretados à perfeição pelos treze bailarinos em cena, o mesmo não se pode dizer da luz amarela que cobre o palco. Se este é, no pacto ilusório estabelecido com o espectador, a continuidade do campo fílmico, como sugere a abertura do espetáculo na tela (uma criança caminha ao encontro da câmera até o enquadramento em primeiríssimo plano sugerir sua entrada na cena teatral), o preto e branco do filme choca-se com o amarelo que ilumina a dança; criam-se, por consequência, dois espaços cênicos, e isso estabelece, inevitavelmente, a briga indesejável entre o cinema e a dança. O diálogo entre essas duas linguagens é rompido --- ou nem se estabelece, o que é mais comprometedor. 

Se não fui capaz de resistir à tentação de explorar esses detalhes, para mim, no entanto, importantes para o espetáculo como um todo, é preciso dizer que O Cão Sem Plumas, de Deborah Colker e Claudio Assis, constitui uma leitura intersemiótica que reascende a presença de João Cabral de Melo Neto no cenário da grande arte nacional como um dos nossos três maiores poetas de todos os tempos. 

Ao lado de ser um espetáculo novo, exuberante como experiência criativa, O Cão Sem Plumas é forte e belo, para o que contribuem com louvor o cenário ao mesmo tempo despojado e profundamente expressivo de Gringo Cardia (gaiolas que numa cena representam armadilhas e noutra as palafitas do rio Capibaribe) e a trilha sonora assinada por Jorge Du Peixe, do Nação Zumbi, embora claudicante aqui e além na intenção de reproduzir a dicção regional do poema.

A coreografia propriamente dita, necessário frisar, é soberba, reeditando as grandes montagens da Companhia. Os bailarinos, irrepreensíveis tecnicamente falando, e os efeitos cênicos, de levantar pelos. O uso tremendamente inventivo de adereços simples, como as faixas que já constituem uma marca de Colker, como na passagem em que simbolizam o canavial submetido aos ventos, entre cuja folhagem entreveem-se os trabalhadores do eito, força motriz do poema, é inesquecível de tão bela. Além de conferir uma mudança positiva no ritmo dramático da narrativa, um tanto monocórdico.  

Em linhas conclusivas, este virá a ser, supostamente, o momento mais elevado do ano em termos de arte no Ceará. Uma pena ter sido tão curta a sua temporada entre nós.

 

sábado, 24 de março de 2018

Os livros e as Mulheres

A minha relação com os livros tem sempre um componente passional, assumo! Via de regra, começa com um flerte, a uma certa distância, quase sempre na vitrine da loja.

Como em se tratando das mulheres, me chama a atenção a forma como se vestem. Adoro as discretas, que sabem com aparente desleixo compor o traje, combinando bem a textura dos tecidos com a expressividade das cores. As que exibem sua beleza com discrição e charme. As que sugerem displicência e, sob a capa, revelam-se antenadíssimas, e tudo sabem. Enciclopédicas.

No caso deles, os livros, há os que, já de longe, impressionam pela encadernação, o look da capa, o colorido da gravura (quando têm gravura!), a elegância com que se apresentam, sem afetação.

Assim, é comum que me apaixone por um desses como por uma mulher, meio sorrateiro, como quem finge não querer e quer. Mas, de perto, e mal disfarçando, é preciso checar antes o volume do corpo, a maciez da pele, e, importante!, quais as intenções com que veio parar à sua frente.

Curioso: logo se estabelece a comunicação. Entre intimidados e desejosos, aproximamo-nos, um tanto sorrateiros e desconfiados, ainda.

Aí, vem a primeira troca de informações, a primeira sugestão de intimidade; a mão no dorso, ligeiramente arredondado, nunca esquelético, e gostoso de pegar.

Em pouco tempo, se a atração se confirma, a entrega é mútua. Os primeiros afagos, os toques sutis e o cheiro bom, que provoca um ligeiro arrepio de pelos. E a gente vai sentindo uma vontade de levar para casa, de se entregar horas a fio no bem-bom, agarradinhos e afáveis. Detalhe: quase sempre na cama.

Mas há que se tomar cuidado, posto que existem os enganosos, os que vendem gato por lebre e são mal intencionados.

Há os surpreendentes, os que decepcionam, os reticentes, os vulgares, os indecentes.

Os passageiros.

Um grande livro, como uma grande mulher, tem poderes para transformar sua vida, de operar milagres...

Como as mulheres, há os rebuscados, os artificiosos, os superficiais.

Há os tímidos, que vão se revelando aos poucos. A esses, deve-se abandonar por uns tempos, dando-lhes, quando muito, uma chance aqui, outra acolá, alimentando possibilidades. Não raro, valem a pena, e, dia desses, sem que você espere, são capazes de lhe deixar nas nuvens. Delícia.

Há, no entanto, aqueles que você mal larga vem um outro e...

Vulgarizam-se, e, para seu desencanto, andam logo de mão em mão. Banalizam as relações.

Como entre elas, há os invejosos, os sem originalidade, que querem ser o que não são.

Não se surpreenda. Há os demasiado formais, os levianos, os que preferem a meia-luz, outros, a plena claridade. Há os lentos, cheios de rodeios, os apressados, que vão direto ao assunto. Falta-lhes uma pitada de poesia.

Há os que adoram as preliminares, os que deixam você em êxtase, mas logo perdem a graça.

Um bom livro, é que nem a mulher amada: você não dá, não troca, não empresta.

A esses, como à mulher que tenho, sou fiel, tenho sempre ao alcance da mão, e, dedos em cruz, posso afirmar: --- "Nunca traio, e sou incapaz de uma ingratidão". 

quinta-feira, 15 de março de 2018

De Shakespeare a Hawking

Poucas vezes a grande literatura terá alcançado a dimensão do Hamlet, de Shakespeare. Essa a razão por que, para o leitor apaixonado, a exemplo do que assumidamente sou, em se tratando do dramaturgo inglês, torna-se difícil decidir que cena da peça mais nos impressiona. 

Tudo no texto shakespeariano é perfeição, mesmo quando o leitor mais atento pode, sem grande esforço, identificar equívocos, que a meus olhos mais refletem o domínio do autor sobre a matéria explorada que desleixo, desatenção ou pressa em produzir uma obra tão grandiosa. 

Licença poética, desde sempre, faz parte da invenção artística e é quase improvável que uma exista sem a outra. A propósito, é conhecida a análise de Harold Bloom, especialista em Shakespeare, em que aponta erro do autor quanto a idade atribuída a Hamlet na famosa cena do cemitério, na altura do quinto ato da peça. Pouco importa.

Se se costuma ressaltar a cena do solilóquio como momento mais elevado do texto, bastando para isso lembrar a famosa fala "ser ou não ser, eis a questão", de Hamlet, no terceiro ato, já incorporada ao discurso coloquial para expressar o conflito fundamental do homem entre aceitar aquilo de que discorda, a injustiça, o ultraje, a miséria absoluta a que se condena o outro e lutar pelo restabelecimento do bem e da verdade, por um mundo de justiça, não é menos verdadeiro afirmar que a todo instante o texto pulsa, incontido, por sua força de sentido e beleza poética raramente atingidos com tamanha profundidade.

Quanto a mim, não me furtaria a considerar a cena do cemitério, referida acima, como uma das passagens mais sublimes da literatura mundial, já não bastassem suas qualidades estilísticas, pelo que traz de contundente em termos reflexivos num momento em que parece imperar, no Brasil e o no mundo, a intolerância, o ódio, a soberba de parte significativa de nossa elite. O texto ressignifica-se. 

Impactado diante da cova em que conversam dois coveiros, diz ele: --- "Aí está outra [caveira]; por que não poderá ser a caveira de um jurista? Onde agora as suas cavilações, os seus processos, as suas sutilezas, os seus truques, as suas trapaças? [...] Hum! Esse camarada pode ter sido, por seu tempo, grande comprador de terras, com seus títulos e contratos, com suas obrigações a solver, suas multas, suas testemunhas, suas cobranças. Será este o cobro de suas cobranças, a paga de seus contratos, ficar com seu belo crânio cheio do mais fino pó?" 

É impagável a passagem em que, recebendo-a de um coveiro, Hamlet toma nas mãos a caveira de Yorick: --- "Ai, ai, pobre Yorick. Eu o conheci, Horário, um tipo de infinita graça e da mais excelente fantasia. Carregou-me nas costas mais de mil vezes, e agora  ---  agora como é horrível imaginar essas coisas! Onde estão agora os teus gracejos?" 

E Hamlet, voltando-se para Horácio, quer saber se o mesmo terá ocorrido a Alexandre, O Grande, que quis conquistar o mundo: --- "Acreditas que o próprio Alexandre tenha esse aspecto, dentro da terra?"

Ao que o amigo responde: --- "Esse mesmo."

E a César, o imperador romano, tão poderoso? O mesmo. 

Coube a Stephen Hawking, o gênio que nos deixou ontem, provar que nada neste universo é eterno. Nem mesmo os buracos negros.

Entre as mais de 100 milhões de galáxias, brilham as estrelas. Seu brilho, que inspirou dos amantes de Shakespeare às obras mais encantadoras de Van Gogh, levam milhões, talvez milhares de milhões de anos para chegar até nós. De que valemos nós? Quem somos, afinal? Grãos de areia no deserto imenso...

Os buracos negros, segundo M. L. von Franz, como a alma fora do "horizonte de acontecimentos" do espaço e do tempo, existiriam para além da morte. 

Ledo engano. A vida termina em pó. 

 

  

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 9 de março de 2018

A voz inconfundível das ruas

Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto.

                                    (João, 12, 24)

 

Numa passagem memorável de Cervantes, no inigualável Dom Quixote, pode-se ler: --- "É de gente bem nascida agradecer os benefícios recebidos, e um dos pecados que mais ofendem a Deus é a ingratidão".

Ato contínuo, que as guardo de cor, foram essas palavras que me ocorreram tão logo recebi, das mãos gentis do amigo Paulo de Tarso, o vídeo em que pude acompanhar a despedida do povo de Iguatu a João Elmo Moreno.

Na vida da gente, é curioso, há momentos, assim, como esses, em que a sensação que sentimos diante dos fatos traz em si algo de paradoxal. Confesso que vivi nessa sexta-feira 8, essa experiência a um só tempo pontuada de tristeza e de incontida alegria. Explico-me.

Perdíamos, com a morte de Elmo Moreno, um homem por inteiro, dentro de cujo coração pulsava um tal senso de responsabilidade, de altruísmo, de fina compreensão dos valores fundamentais da vida, que custou-me, ali, diante daquelas imagens, mensurar com precisão o vazio que fica no espaço que Elmo ocupou com galhardia, e soube exercer, exemplarmente bem, como cidadão, como chefe de família, como empresário e como político, os papéis que lhe couberam numa existência longa e coberta de tanta luz, de um brilho tão intenso e tão invulgar, como só é dado possuir às estrelas.

Mas, onde é possível existir alegria, na mínima porção que seja, agora que nos deixou e que advém disso dor, sofrimento, saudade?

Pois bem. Havia naquele vídeo imagens impressionantes, de admiração, de carinho, de respeito pela figura incomensurável de João Elmo Moreno. Havia ali, como no verso de um poeta, na manifestação espontânea dos iguatuenses, "gratidão, essa palavra-tudo!"

E isso, num tempo de homens pequenos, de valores retorcidos, de motivações inconfessáveis, de interesses amesquinhados, de pobreza em todos os sentidos..., fez explodir de dentro, do mais fundo da alma, um grito de esperança, de confiança no porvir, de fé na força que vem dessa gente simples da qual, cedo ou tarde, haverá de brotar uma flor, a "rosa do povo", de que nos falou Drummond, em metáfora de um país mais humano, mais livre e mais justo!

Conheci-o de perto, amigo que sempre fui de sua família, Francisco Alberto à frente, meu querido Bertinho.

Tanto quanto ao prefeito do século XX, em Elmo Moreno admirei uma qualidade que poucos, talvez, saibam ter tido, para além da inteligência notável, da capacidade de trabalho invulgar, da correção moral e da nobreza de caráter: o amor pelos livros, pela poesia, pela grande literatura.

Não raras vezes, sentado à cadeira de balanço da varanda de sua casa, ouvi dele verdadeiras aulas sobre a poesia do Brasil e de Portugal.

Quantas vezes, como lhe fazendo a segunda voz, disse com Elmo fragmentos de poemas antológicos, modulando a dicção, dramatizando com gestos e meneios o conteúdo dramático do texto?!

Tempos bons, ao lado de outro imenso filho da terra, Roberto Costa, com quem Elmo Moreno praticamente transformou uma cidade inteira. A mesma cidade que, agora, reedita o que já fizera a Roberto, rendendo-lhe inapagável preito de gratidão.

A voz inconfundível das ruas.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 2 de março de 2018

O Jovem Marx

O Jovem Karl Marx. Direção: Raoul Peck. Elenco: August Diehl (Marx), Vicky Krieps (Jenny), Stefan Konarske (Engels). Produção: Alemanha, França Bélgica, 2017.

👍👍👍 

É claro que a crítica especializada não gostou. Tradicionalmente voltada para o feijão com arroz do cinema americano, que lhe dá suporte e lhe garante leitores, invariavelmente tende a ver a produção cinematográfica de outros países com olhos preconceituosos. A menos que a obra explore questões que passem ao largo da dimensão político-ideológica, num tipo de concessão aparentemente despretensiosa a garantir a manutenção do seu prestígio e a equivocada ideia de que julga com imparcialidade. Aí, sem problema, vamos de Abbas Kiarostami ou Guillermo del Toro, que tanto faz.

Este ano, a exemplo do que se tornou uma praxe, escolheu como bola da vez O Jovem Marx (2017), de Raoul Peck. E haja abordagem típica do cabotinismo dominante na grande imprensa, bem na linha do que fez, no Brasil, um prestigiado colunista da Folha de S. Paulo, para quem, entre outras coisas, foi "embaraçoso" o filme mostrar que Marx fazia sexo.

E olha que estamos falando de Inácio Araújo, inatingível no alto de sua inquestionável posição de mais renomado crítico brasileiro de cinema da atualidade.

O certo é que se trata de um filme de grandes qualidades estéticas e conteudísticas, em que pese resultar de um recorte histórico ousado (pouco mais ou menos de quatro anos) o que, em se tratando de cinebiografia, comumente tem levado a verdadeiros desastres.

Não é o que se verifica em relação ao longa O Jovem Marx, exemplarmente bem sucedido em sua beleza como cinema e seu didatismo oportuno, pois lançado quando se comemoram os 200 anos de nascimento de Karl Marx. Mesmo na cena que tanto incomodou ao crítico da Folha, quando a câmera mostra o pensador revolucionário fazendo amor com a mulher. Ao crítico, é lamentável, nada despertou interesse, nem a suavidade do movimento de câmera, nem a composição do quadro, nem a luz, a merecer a atenção pelo rigor técnico e notável poesia visual alcançada, nem a textura da imagem, que nos dá a sensação de estarmos diante de um óleo sobre tela de Rembrandt, ou a beleza da trilha sonora. Não, para ele, há nisso um pecado imperdoável: revelar que Marx, além de produzir uma obra imorredoura, fazia sexo com a mulher Jenny.

A despeito disso, oportuno frisar, merece atenção a importância que Peck dá à figura de Jenny, para além de apenas fazer sexo com Karl Marx, aspecto pouco explorado em biografias do pensador alemão.

Se o biografado é muito maior que o filme, no que me parece uma conclusão de consenso, nada desmerece a obra de Raoul Peck, cineasta afrodescendente, nascido no Haiti, que já se notabilizara pelo inquietante Eu não sou seu negro (2016), documentário com que levanta debate profundo sobre direitos civis, movimento Black Power e o assassinato de mitos da resistência racial americana, como Malcolm X e Martin Luther King.

No mais, é ver O Jovem Marx para entender do que (e de que perspectiva) nos fala  ---  plena Revolução Industrial e seus desdobramentos perversos: desemprego, salários infames, exploração do trabalho infantil e, essencial, o surgimento de teorias que viriam a constituir o Materialismo Histórico pouco depois. Faz isso, no entanto, sem ser leviano sob qualquer aspecto e com fundamentação e domínio de informações desejáveis.

As relações pessoais entre Marx e Proudhon, um dos esteios dramáticos do filme, na segunda metade de 1844, quando o autor de A Miséria da Filosofia chega a Paris e o filme começa, eram de fato boas. Não é muito lembrar que Marx nutria pelo autor de O que é a propriedade?, publicado quatro anos antes, assumida admiração, ao ponto de considerá-lo o "maior socialista de então", segundo Auguste Cornu em livro importante sobre Marx e Engels.

Quanto a este, fique claro, recebe no filme o tratamento que lhe é devido, licenças "poéticas" à parte. Ocorre-me lembrar, aqui, que o pai de Engels, cuja presença no filme é explorada pelo viés metafórico (representa O Capital), em verdade jamais possuiu indústria têxtil na cidade de Londres. Irrelevante, para o conjunto da obra.

Enquanto obra de arte, deve ser ressaltado, por exemplo, que o filme termine com a voz de Marx lendo trechos do Manifesto Comunista (1848), uma solução simples e extremamente bem sucedida do ponto de vista cinematográfico. Em medida não desprezível, pelo que pude observar ao final do filme, essa escolha narrativa, quando menos, torna visível o que existe de atual no texto de Marx e Engels.