segunda-feira, 26 de março de 2018

O Cão Sem Plumas

A cidade é passada por um rio/como uma rua é passada por um cachorro;/uma fruta/por uma espada.

J.C.M.N.

Fui ver, por ocasião de sua curta temporada em Fortaleza, o espetáculo O Cão Sem Plumas, de Deborah Colker, construído a partir do livro-poema homônimo de João Cabral de Melo Neto.

Há muito, confesso, não deparava com um trabalho tão extraordinário do ponto de vista estético, em que pesem os pequenos defeitos e o fato de tratar-se de uma mistura de cinema, balé, literatura e teatro, bem na linha do que se convencionou classificar como "arte intersemiótica", aquela em que diferentes códigos são utilizados pelo realizador da obra. 

Se o poema em que se apoia o espetáculo, dos mais típicos da lavra do autor pernambucano, inícios da década de 50, notabiliza-se pela linguagem árida de um artista assumidamente avesso ao esteticismo modelar do modernismo e de alguns nomes de sua geração (a Geração de 1945), Murilo Mendes, por exemplo, a coreografia de Deborah Colker ousa lhe fazer acréscimos radicais do ponto de vista formal, indo-se aqui muito além do que se considera uma mera adaptação do objeto artístico, uma releitura ou coisa que o valha. Longe disso. 

No seu O Cão Sem Pluma, entre as muitas interlocuções  de linguagens, Deborah Colker lança mão do filme como contraponto da dança contemporânea, sua praia de origem, à frente de cuja intervenção se encontra ninguém menos que Claudio Assis, um dos grandes nomes do cinema brasileiro contemporâneo. 

De um lado, essa parceria, esse encontro de códigos, para ser mais preciso, produz um resultado extremamente bem sucedido, pois tudo é beleza enquanto expressão artística; de outro, infelizmente, deixa ver a única imperfeição digna de nota: cinema e dança competem durante os setenta minutos de duração do espetáculo. 

Constantemente, por isso mesmo, o espectador se perde na tentativa de eleger o código estético "dominante" no desenrolar de cada sequência dramática, o que resulta lamentavelmente confuso para uma construção narrativa estruturada com a participação uníssona de dois artistas de enorme talento. Não existe a perfeição.

Mas há outro aspecto, ainda, que me parece merecedor de consideração: se Claudio Assis foi muitíssimo feliz na escolha do preto e branco fílmico, ampliando com isso a beleza e a força poética das imagens projetadas na tela, todas elas alusivas à contingência humana que é mesmo o eixo dramático do poema de João Cabral de Melo Neto, o mangue e os homens-caranguejos interpretados à perfeição pelos treze bailarinos em cena, o mesmo não se pode dizer da luz amarela que cobre o palco. Se este é, no pacto ilusório estabelecido com o espectador, a continuidade do campo fílmico, como sugere a abertura do espetáculo na tela (uma criança caminha ao encontro da câmera até o enquadramento em primeiríssimo plano sugerir sua entrada na cena teatral), o preto e branco do filme choca-se com o amarelo que ilumina a dança; criam-se, por consequência, dois espaços cênicos, e isso estabelece, inevitavelmente, a briga indesejável entre o cinema e a dança. O diálogo entre essas duas linguagens é rompido --- ou nem se estabelece, o que é mais comprometedor. 

Se não fui capaz de resistir à tentação de explorar esses detalhes, para mim, no entanto, importantes para o espetáculo como um todo, é preciso dizer que O Cão Sem Plumas, de Deborah Colker e Claudio Assis, constitui uma leitura intersemiótica que reascende a presença de João Cabral de Melo Neto no cenário da grande arte nacional como um dos nossos três maiores poetas de todos os tempos. 

Ao lado de ser um espetáculo novo, exuberante como experiência criativa, O Cão Sem Plumas é forte e belo, para o que contribuem com louvor o cenário ao mesmo tempo despojado e profundamente expressivo de Gringo Cardia (gaiolas que numa cena representam armadilhas e noutra as palafitas do rio Capibaribe) e a trilha sonora assinada por Jorge Du Peixe, do Nação Zumbi, embora claudicante aqui e além na intenção de reproduzir a dicção regional do poema.

A coreografia propriamente dita, necessário frisar, é soberba, reeditando as grandes montagens da Companhia. Os bailarinos, irrepreensíveis tecnicamente falando, e os efeitos cênicos, de levantar pelos. O uso tremendamente inventivo de adereços simples, como as faixas que já constituem uma marca de Colker, como na passagem em que simbolizam o canavial submetido aos ventos, entre cuja folhagem entreveem-se os trabalhadores do eito, força motriz do poema, é inesquecível de tão bela. Além de conferir uma mudança positiva no ritmo dramático da narrativa, um tanto monocórdico.  

Em linhas conclusivas, este virá a ser, supostamente, o momento mais elevado do ano em termos de arte no Ceará. Uma pena ter sido tão curta a sua temporada entre nós.

 

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