O Jovem Karl Marx. Direção: Raoul Peck. Elenco: August Diehl (Marx), Vicky Krieps (Jenny), Stefan Konarske (Engels). Produção: Alemanha, França Bélgica, 2017.
👍👍👍
É claro que a crítica especializada não gostou. Tradicionalmente voltada para o feijão com arroz do cinema americano, que lhe dá suporte e lhe garante leitores, invariavelmente tende a ver a produção cinematográfica de outros países com olhos preconceituosos. A menos que a obra explore questões que passem ao largo da dimensão político-ideológica, num tipo de concessão aparentemente despretensiosa a garantir a manutenção do seu prestígio e a equivocada ideia de que julga com imparcialidade. Aí, sem problema, vamos de Abbas Kiarostami ou Guillermo del Toro, que tanto faz.
Este ano, a exemplo do que se tornou uma praxe, escolheu como bola da vez O Jovem Marx (2017), de Raoul Peck. E haja abordagem típica do cabotinismo dominante na grande imprensa, bem na linha do que fez, no Brasil, um prestigiado colunista da Folha de S. Paulo, para quem, entre outras coisas, foi "embaraçoso" o filme mostrar que Marx fazia sexo.
E olha que estamos falando de Inácio Araújo, inatingível no alto de sua inquestionável posição de mais renomado crítico brasileiro de cinema da atualidade.
O certo é que se trata de um filme de grandes qualidades estéticas e conteudísticas, em que pese resultar de um recorte histórico ousado (pouco mais ou menos de quatro anos) o que, em se tratando de cinebiografia, comumente tem levado a verdadeiros desastres.
Não é o que se verifica em relação ao longa O Jovem Marx, exemplarmente bem sucedido em sua beleza como cinema e seu didatismo oportuno, pois lançado quando se comemoram os 200 anos de nascimento de Karl Marx. Mesmo na cena que tanto incomodou ao crítico da Folha, quando a câmera mostra o pensador revolucionário fazendo amor com a mulher. Ao crítico, é lamentável, nada despertou interesse, nem a suavidade do movimento de câmera, nem a composição do quadro, nem a luz, a merecer a atenção pelo rigor técnico e notável poesia visual alcançada, nem a textura da imagem, que nos dá a sensação de estarmos diante de um óleo sobre tela de Rembrandt, ou a beleza da trilha sonora. Não, para ele, há nisso um pecado imperdoável: revelar que Marx, além de produzir uma obra imorredoura, fazia sexo com a mulher Jenny.
A despeito disso, oportuno frisar, merece atenção a importância que Peck dá à figura de Jenny, para além de apenas fazer sexo com Karl Marx, aspecto pouco explorado em biografias do pensador alemão.
Se o biografado é muito maior que o filme, no que me parece uma conclusão de consenso, nada desmerece a obra de Raoul Peck, cineasta afrodescendente, nascido no Haiti, que já se notabilizara pelo inquietante Eu não sou seu negro (2016), documentário com que levanta debate profundo sobre direitos civis, movimento Black Power e o assassinato de mitos da resistência racial americana, como Malcolm X e Martin Luther King.
No mais, é ver O Jovem Marx para entender do que (e de que perspectiva) nos fala --- plena Revolução Industrial e seus desdobramentos perversos: desemprego, salários infames, exploração do trabalho infantil e, essencial, o surgimento de teorias que viriam a constituir o Materialismo Histórico pouco depois. Faz isso, no entanto, sem ser leviano sob qualquer aspecto e com fundamentação e domínio de informações desejáveis.
As relações pessoais entre Marx e Proudhon, um dos esteios dramáticos do filme, na segunda metade de 1844, quando o autor de A Miséria da Filosofia chega a Paris e o filme começa, eram de fato boas. Não é muito lembrar que Marx nutria pelo autor de O que é a propriedade?, publicado quatro anos antes, assumida admiração, ao ponto de considerá-lo o "maior socialista de então", segundo Auguste Cornu em livro importante sobre Marx e Engels.
Quanto a este, fique claro, recebe no filme o tratamento que lhe é devido, licenças "poéticas" à parte. Ocorre-me lembrar, aqui, que o pai de Engels, cuja presença no filme é explorada pelo viés metafórico (representa O Capital), em verdade jamais possuiu indústria têxtil na cidade de Londres. Irrelevante, para o conjunto da obra.
Enquanto obra de arte, deve ser ressaltado, por exemplo, que o filme termine com a voz de Marx lendo trechos do Manifesto Comunista (1848), uma solução simples e extremamente bem sucedida do ponto de vista cinematográfico. Em medida não desprezível, pelo que pude observar ao final do filme, essa escolha narrativa, quando menos, torna visível o que existe de atual no texto de Marx e Engels.
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