sábado, 25 de abril de 2020

Como digno?

 

Moro sai menor do governo de Jair Bolsonaro do que entrou. Seu pronunciamento foi um misto de delação e mea culpa. Traiu-se pelo gogó. Percebendo salários avantajados por mais de 20 anos, abriu mão dos mesmos em troca de um Ministério que lhe apontaria o caminho para o STF, e, na moita, negociou pensão para a família se algo de pior lhe ocorresse. Mas esqueceu de dizer de onde viria o dinheiro espúrio, embora reconheça ter guardado a sete chaves o que, agora, deixava de ser um segredo. Como digno?

Como em briga de casal, a deixar o ex-ministro de cuecas, poucas horas depois de seu depoimento-delação, veio a afirmação do seu ex-chefe de que teria imposto uma condição para cortar numa canetada a cabeça do amigo e então chefe da PF Maurício Valeixo: ser indicado para a vaga no STF a ser aberta em setembro com o afastamento compulsório do decano Celso de Mello.

Pior: se as pressões do presidente no sentido de obter informações sigilosas da PF, como afirmou seguidas vezes ao longo de sua fala, vinham de há muito tempo, por que só agora decidiu romper com Jair Bolsonaro? Para a prática de ilícitos, ignorou Moro, não existem limites, o que equivale a dizer que não existe corrupto pela metade. Como digno?

Moro, que já fora publicamente humilhado por suas falcatruas à frente da Lava Jato, conforme provado pelo Intercep Brasil; que condenou sem provas o ex-presidente Lula com o fito de pavimentar o caminho de Bolsonaro até o Planalto e ganhar por troca um ministério; que se curvou calado diante de crimes de milicianos ligados à família Bolsonaro; que encarnou à perfeição os Três Macacos Sábios do folclore japonês (não ouço, não vejo, não falo) em face do sumiço do Queiroz, sai do governo de Jair Bolsonaro muito menor do que entrou. Como digno?

Em meio às titubeantes acusações que só agora, contrariadas as suas pretensões pessoais nada republicanas, resolveu fazer, chama a atenção o fato de ter finalmente reconhecido que os governos do PT asseguraram sempre a autonomia da Polícia Federal. Do conjunto da ópera, todavia, mais uma desfaçatez se faz perceber: ao declarar-se à disposição do país, idos por terra os sonhos supremos, Moro aproveita o ensejo de sua saída do governo, a que serviu como um cordeirinho acuado  por quase dois anos, para dizer-se sem emprego e lançar-se candidato a presidente. Como digno?

Quanto a Jair Bolsonaro, não vou chutar cachorro morto. A ilustrar o que poderia ser dito, reporto-me a dois casos conhecidos na história política do país. O segundo desses casos, a propósito, relembrado por Fernando Haddad em coluna no jornal Folha de S.Paulo deste sábado, 25.

Nos anos 30, prefeito de Palmeiras dos Índios, Alagoas, Graciliano Ramos foi pressionado pelo pai a adotar, ao arrepio da lei, medidas contra a apreensão de suas vacas por pastarem em praça pública, ferindo o que o velho Graça havia determinado. Ao pai, viria a afirmar: -- "Prefeito não tem pai!"

Em 2007, o petista Tarso Genro à frente do Ministério da Justiça, Lula foi pressionado por militantes do partido a interceder contra operação envolvendo seu irmão Vavá em práticas de crimes jamais comprovados. Nada fez e a operação prosseguiu. Procurado pelo irmão algum tempo depois, para saber se fora informado da referida operação, Lula respondeu: -- "Quem foi informado foi o presidente da República, não seu irmão".

Sem que nada fosse provado contra ele, Vavá morreu, e Lula, preso em Curitiba, foi impedido de ir ao enterro.

Tire o leitor suas conclusões.   

 

 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O último olhar

                  A alma, se quer conhecer a si mesma, deve olhar para a outra alma. (Platão, Alcibíades).

Na sua edição de hoje, 23 de abril, o jornal Folha de S. Paulo traz em uma de suas seções o depoimento de quatro profissionais de saúde de diferentes países sobre como enfrentam o cotidiano hospitalar durante a pandemia da Covid-19. Li-os, e recomendo, pelo que trazem de revelador sobre uma experiência que deveria ser conhecida de todos antes de emitir opinião sobre o fim do isolamento social recomendado pela OMS.

Os quatro depoimentos são pontuados por um forte senso de humanidade, e quando falo "humanidade" não estou apenas me referindo ao espírito altruísta e solidário por que se orientam esses profissionais no dia a dia de suas carreiras, a exemplo do que ocorre numa momento tão dramático quanto este que estamos enfrentando. Refiro-me ao fato de que esses depoimentos expõem a realidade humana de médicos, enfermeiros e demais profissionais que fazem o cotidiano dos hospitais, trazendo-os ao nível da realidade de cada um de nós.

Ayesha Sunavala, médica indiana, revela a sua angústia e os pensamentos de morte que povoam sua mente, o medo de contaminar seus parentes e de perdê-los, a frustração de não poder examinar os pacientes como devia, a dificuldade de comunicar-se com eles em trajes de proteção, com óculos embaçados e máscaras que não lhe permitem se fazer ouvir. Assume-se humana, honestamente humana: "Por temperamento, não sou corajosa nem aventureira. Estou constantemente preocupada e imensa aversão ao risco".

Stenio Cavallos, médico equatoriano, diz-se deprimido, depois de ver corpos serem amontoados em frente ao hospital em que atua como chefe de UTI. Salienta que os índices de mortalidade entre os pacientes intubados são assustadores, algo em torno dos 80%. E lamenta ter sido levado a acompanhar a agonia da sogra: "Minha segunda mãe. Ela faleceu. Saiu uma vez só para ir ao mercado. E nunca tossiu, tinha febre, mal-estar, achamos que fosse dengue. Ficou grave, foi intubada e em cinco dias morreu. Sou o chefe da UTI e não pude fazer nada. Isso foi muito forte para mim".

Precious Chikura, médico sul-africano, evidencia que vive em um país em que se misturam primeiro e terceiro mundos, o que torna as decisões políticas extremamente complexas, mas aplaude o isolamento imposto pelo governo, referindo-se ao baixo nível de contaminação e mortes. Dedicado a intubar pacientes graves, com cujas secreções lida muitas vezes ao dia, arremata: "Se eu for contaminado, estarei no grupo dos que morrem ou dos que sobrevivem?".

Dos quatro depoimentos, porém, impressionou-me particularmente o do médico italiano Aurelio Filippini, pelo que traz de imponderável, como a reeditar o Platão da epígrafe desta coluna: "É muita responsabilidade ser a última pessoa que alguém vê antes de morrer. Naquela hora, você vira marido, mulher, filho, neto, todos que o paciente não consegue ver nem se despedir. Isso é muito forte emocionalmente". E desfecha com a forte reflexão: "Os olhares fazem a diferença. E isso me afetou. Nós, com as máscaras, eles, com máscaras ou capacetes, isso permite que a pouca comunicação seja feita com os olhos. Ver alguns daqueles olhares foi muito doloroso".

Objeto de estudo desde a Antiguidade, examinado em trabalhos acadêmicos notáveis, deslindado à minúcia em ensaios incontornáveis de Walter Benjamin, Susan Sontag, Giorgio Agamben, recorrente na pintura de Da Vinci e nos primeiríssimos planos de Ingmar Bergman, o olhar continua a suscitar indagações. Para além do simples espelhamento, da dobra, do movimento para o abismo, o entrecruzar de olhares muito mais que pede de nós o conhecer-se a si mesmo.

O que diz esse último olhar a que se refere Filippini? Que sentimento ou desespero, que saudade insuportável explode da ausência de brilho desse olhar? Que dor (incomunicável) comunica?

 

 

 

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O retratista da tragédia

Era final dos anos 1970.

Mal ingressara eu no curso de Letras da UFC, quando me caiu nas mãos, presente de uma amiga, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, publicado dois anos antes. Poucas horas depois, impactado com a leitura do livro, corri eu à biblioteca da faculdade à procura de novos títulos do autor.

E numa sequência de leitura compulsiva, vieram, nesta ordem, "Lúcia MaCartney" (1967), "O Cobrador" (1979) e "O Caso Morel" (1973).

Nascia, assim, para o então jovem estudante de literatura, uma verdadeira paixão pela obra deste autor absolutamente extraordinário, cuja arte original e desmedida passaria a ser objeto de debates informais nos intervalos das aulas, ou, quase sempre, no Quina Azul, um barzinho localizado nas proximidades do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará.

Ali, entre uma cerveja e outra, os comentários eram marcados por um entusiasmo próprio de quem passara a trabalhar o gosto pela literatura a partir de uma fundamentação teórica que tornava nossas conversas algo ao mesmo tempo envolvente e imaturamente arrogante.

Lá pelas tantas, a discussão já pontuada pela ingestão da bebida, não raro ouvia-se alguém dizer de cor passagens de contos do escritor carioca (em verdade nascido em 1925, em Juiz de Fora – MG): --- "Quero comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes...", exatamente como a personagem central de O Cobrador se volta indômito para a sociedade burguesa que se tornaria desde a estreia do escritor alvo de sua crítica mordaz, ácida e intencionalmente deselegante.

Brutalismo, é como definiria Alfredo Bosi a tendência neo-nauralista com que Rubem Fonseca dava corpo a sua narrativa sombria, algo noir e assumidamente cínica, vocacionada a transitar com uma força dramática de tirar o fôlego do descuidado para o exemplarmente rebuscado do ponto de vista estético.

Sob este aspecto, nada se compara à cena de "Feliz Ano Novo" em que assaltantes invadem o Réveillon de ricaços para dar vazão a sua revolta, matando e divertindo-se como num ritual selvagem ante o desespero de uma elite não menos desumana e cruel.

Já aí, num procedimento estilístico que perpassaria o conjunto da obra, não à toa a prosa enxuta e descarnada de Fonseca como que abandona a sua essência ficcional em favor de um relato próprio do jornalismo policial mais desabrido.

Num momento em que a sociedade brasileira, por força de um vírus incontrolável, vê projetada sobre suas brutais contradições o facho de luz que dá a ver, como nunca antes, o quanto são grandes suas desigualdades sociais, sua miséria e sua deteriorização política e moral, soa como uma dura ironia a notícia da morte de um dos seus escritores mais lúcidos e talentosos, retratista implacável da face hedionda do país.

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 14 de abril de 2020

Quarentena

Ao abrir a minha caixa de mensagens, dou com Paulo Elpídio, como sempre, escorreito, loquaz, elegante: --- Por aqui capino as minhas estantes: colho coisas desaparecidas e dou-lhes atenção. Refugo alguns guardados indevidos, mergulhei em textos antigos, arranquei o Eça e Machado da sua injustificável prisão entre livros calados  --- e dou-lhes voz.

A liberdade é relativa. Só sentimos a sua importância quando a perdemos. Perdê-la voluntariamente é ainda pior.

Também eu tenho procurado nos livros o alento de que necessitamos decorridos quarenta dias de reclusão. Terminei, ontem à noite, os Diários de Josué Montello. Se foi um homem de posições polêmicas (e foi), isso não desmerece o escritor. Quando falta-lhe o fôlego de Nava, sobra-lhe o estilo luminoso Cony, a força do espírito poético. Como romancista, é notável. Os Tambores de São Luiz, uma obra-prima.

Há dias, alternando com Montello, releio A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Lembro que o encarei nas leituras de juventude, curvando-me, então, ao peso de sua grandiosidade. Hoje, como é próprio da literatura em sua função sinfrônica ou sintonizadora, o livro se ressignifica, e ganham relevo, aos olhos do leitor de agora, a arte sublime de Thomas Mann, a beleza, o amor, a humanidade, a natureza que se impõe entre a vida e a morte desses seres condenados à incerteza e à solidão.

Livros são o bálsamo com que mitigamos o desconforto advindo da solidão desses tempos trágicos. Assim se passam os dias, enquanto a luz da normalidade não (re)brilhar.

Graças à literatura, o sanatório de Davos, nos Alpes suíços, é a serra de Guaramiranga de onde escrevo essas linhas, território encantado por que transita um jovem engenheiro que se chama Hans Castorp, personagem central da bela história do escritor alemão.

Entre as obras-primas da literatura universal, na minha humilde opinião, ombreando com outros livros imortais, Dom Quixote à frente, nas estantes mais exigentes dos leitores do mundo inteiro, haverá de estar A Montanha Mágica.

Como afirmou Mário Vargas Llosa, poucos dias atrás, ler bons livros é outra maneira de viver, mais livre, mais bela, mais autêntica.

Da literatura para a música, ouço na tevê a notícia da morte de Moraes Moreira. Perde o Brasil um dos nomes mais importantes de sua cultura popular. Não tivesse feito tanto pelo cancioneiro brasileiro (e fez como poucos de sua geração!), assina com destaque pessoal um dos álbuns mais notáveis de nossa música, Acabou Chorare (1972), um disco obrigatório para qualquer amante da alta MPB. Poeta e pesquisador de raízes musicais, violonista extraordinário, Moreira deixa para a posteridade uma contribuição só comparada à dos tropicalistas. Com vantagem, talvez.

 

 

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Na solidão da mata

>>> Parente remoto, pela parte do meu pai, entrou para o folclore da família pela fragilidade com que, aos 80 anos, assumia seu compreensível desamparo: — Sou sozinho neste mundo, não tenho nem pai e nem mãe!, dizia, mal disfarçando seu quixotismo, sempre que algum problema o afligia.
>>> Nesses dias de horror em face da pandemia do coronavírus, quando a maioria de nós se recolhe em quarentena que não sabemos o quanto durará, lembrei dessa personagem atormentada com um misto de saudade e um certo desconforto, como que compreendendo o desamparo e abandono a que se dizia condenado. A psicanálise explica.
> A bem da verdade, é bucolicamente privilegiado o meu isolamento, em meio à mata que circunda o sítio de uma forma a um só tempo bela e ameaçadora. Não seria na floresta que habitam os espíritos do improvável?, ocorre-me lembrar, outra vez, a leitura psicanalítica dos contos de fada, à maneira do que fez, exemplarmente bem, diga-se em tempo, Bruno Bettelheim em livro incontornável no gênero.
> O certo é que diante das grandes crises todos nós desenterramos, das profundezas do nosso mundo interior, quase sempre carregado de fantasmas, as narrativas mais reveladoras, os mitos mais indisfarçáveis pelos quais desenhamos o que pensamos ser a realidade.
> E eis-me aqui, buscando nos livros que leio e nos filmes a que assisto, se não a explicação para o inexplicável, um pouco de alívio para a solidão a que me vejo condenado. Assim, na companhia de seres mágicos que ressignificaram a vida, gente da estirpe de Cervantes, Jorge Luis Borges, Shakespeare, tenho tocado os dias sob o efeito da indisfarçável angústia que assola o país e o mundo, menos, claro, o super-homem chamado Bolsonaro.
> Ironia à parte, a casa por varrer e a louça por lavar (o segredo é "sujou, lavou"), de uma vez por todas, tenho de reconhecer, compreendo o que quer dizer a máxima tola de que a ocasião faz o ladrão.
> E me surpreendo capaz de tocar a vida de mim para comigo mesmo, enquanto, lá fora —- da alta copa das árvores frondosas já posso ouvir o farfalhar das folhas! —-, chove uma chuvinha fina a me lembrar que tenho de recolher a roupa do varal.