quinta-feira, 16 de abril de 2020

O retratista da tragédia

Era final dos anos 1970.

Mal ingressara eu no curso de Letras da UFC, quando me caiu nas mãos, presente de uma amiga, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, publicado dois anos antes. Poucas horas depois, impactado com a leitura do livro, corri eu à biblioteca da faculdade à procura de novos títulos do autor.

E numa sequência de leitura compulsiva, vieram, nesta ordem, "Lúcia MaCartney" (1967), "O Cobrador" (1979) e "O Caso Morel" (1973).

Nascia, assim, para o então jovem estudante de literatura, uma verdadeira paixão pela obra deste autor absolutamente extraordinário, cuja arte original e desmedida passaria a ser objeto de debates informais nos intervalos das aulas, ou, quase sempre, no Quina Azul, um barzinho localizado nas proximidades do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará.

Ali, entre uma cerveja e outra, os comentários eram marcados por um entusiasmo próprio de quem passara a trabalhar o gosto pela literatura a partir de uma fundamentação teórica que tornava nossas conversas algo ao mesmo tempo envolvente e imaturamente arrogante.

Lá pelas tantas, a discussão já pontuada pela ingestão da bebida, não raro ouvia-se alguém dizer de cor passagens de contos do escritor carioca (em verdade nascido em 1925, em Juiz de Fora – MG): --- "Quero comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes...", exatamente como a personagem central de O Cobrador se volta indômito para a sociedade burguesa que se tornaria desde a estreia do escritor alvo de sua crítica mordaz, ácida e intencionalmente deselegante.

Brutalismo, é como definiria Alfredo Bosi a tendência neo-nauralista com que Rubem Fonseca dava corpo a sua narrativa sombria, algo noir e assumidamente cínica, vocacionada a transitar com uma força dramática de tirar o fôlego do descuidado para o exemplarmente rebuscado do ponto de vista estético.

Sob este aspecto, nada se compara à cena de "Feliz Ano Novo" em que assaltantes invadem o Réveillon de ricaços para dar vazão a sua revolta, matando e divertindo-se como num ritual selvagem ante o desespero de uma elite não menos desumana e cruel.

Já aí, num procedimento estilístico que perpassaria o conjunto da obra, não à toa a prosa enxuta e descarnada de Fonseca como que abandona a sua essência ficcional em favor de um relato próprio do jornalismo policial mais desabrido.

Num momento em que a sociedade brasileira, por força de um vírus incontrolável, vê projetada sobre suas brutais contradições o facho de luz que dá a ver, como nunca antes, o quanto são grandes suas desigualdades sociais, sua miséria e sua deteriorização política e moral, soa como uma dura ironia a notícia da morte de um dos seus escritores mais lúcidos e talentosos, retratista implacável da face hedionda do país.

 

 

 

 

 

 

 

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