segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Ano Novo, Ano Bom

Enquanto aguardávamos o momento da confraternização em família, à mesa do happy hour, ouço a declaração pessimista: - "Quanta hipocrisia!" O amigo fazia alusão aos cumprimentos, não raro mecânicos, com que pessoas às vezes estranhas desejavam-se feliz Natal. Ousei ponderar. Acho que a data, como que em milagre, opera transformações momentâneas nas pessoas. É como se, por instantes, o amor vencesse a desfaçatez. Por isso, em que pese entender o comentário feito meio que em protesto, prefiro crer na beleza desses dias do ano e na possibilidade (utópica?) de que os corações estejam de fato tocados pelos bons sentimentos.

Estamos a poucas horas da virada do ano. Acho que não há melhor oportunidade de fazermos uma reflexão sobre o ano que termina, que, sabemos, não terá sido muito bom para tanta gente. É claro que para muitos 2009 foi o ano em que se perdeu a chance tantas vezes sonhada, que o dinheiro não deu para a viagem que se quis fazer, que houve perdas, desilusões, que choveu em excesso aqui, que faltou chuva acolá, que o amor acabou etc. Mas chorar sobre o leite derramado, sobre o que poderia ter sido e não foi, sobre o que fizemos de errado... interessa tão-somente na medida exata em que puder contribuir para o nosso crescimento como pessoa. Só assim estaremos dando o primeiro passo para o desconhecido que vem com a passagem do ano, e que pode ser bom se nos entregarmos ao movimento das mudanças que se darão para melhor.

Decepções, fracassos, desencantos etc., são coisas naturais, que fazem parte da vida por inteiro, que ela não é só feita de graças. O amigo faltou, a namorada desistiu de tentar, o sonho da viagem não se tornou possível? Fazer o quê? Entregar-se à tristeza, à saudade que dilacera, à frustração que silencia a nossa capacidade de sonhar? Acho que a virada do ano traz consigo a possibilidade de sermos melhores, de darmos o troco ao que não deu certo nutrindo a esperança de que no Ano Novo haverá de dar, de conquistarmos novas amizades, de que o dinheiro, se bem gasto, poderá ser suficiente para aquela viagem com que você sonhou, de que a natureza seja mais generosa, de que surgirá o grande amor, de que poderá se dar o reencontro, de que tanta coisa boa está por acontecer. A vida é bailarina, já nos dizia o poeta, e nenhum ponto inerte anula o eterno viravoltear das coisas.

Que o Ano Novo venha cheio da sabedoria que nos faltou, da fé que não tivemos, da certeza de que Deus é bom e nunca faltará com aqueles que acreditam na eternidade de sua existência. Que o Ano Novo nos renove naquilo que ficou envelhecido, que se desgastou pelos tantos equívocos que cometemos, pelas faltas que poderíamos ter evitado, pela intolerância com que nos tratamos tantas vezes uns aos outros. Que o Ano Novo, de tão bom, seja o ano de nossas vidas!

Feliz 2010!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Natal

Enquanto sento diante do computador para escrever a coluna de hoje, ouço, vinda da tevê, a notícia hedionda: padrasto assume ter introduzido mais de quarenta agulhas em enteado de quatro anos. Queria escrever sobre o tema do Natal, uma vez que esta é a última edição do jornal antes da festa de nascimento do Menino-Jesus. Não saberia fazê-lo mais, é o que me passa pela cabeça neste instante. Numa data que mais alegra o coração das crianças, como será o Natal desse menino a quem se destinou tanto ódio, por que se fez dele o objeto de ação tão diabólica?

A cada Natal, vem com a lembrança da noite abençoada um pouco de crença na possibilidade de um mundo melhor, em que pese ter-se 'industrializado' tanto o que deveria ser a festa do amor desprendido, do amor desinteressado e gratuito. E como nos deixa desesperançado o gesto diabólico desse homem. Que o fez assim tão monstruoso, que força do destino moveu a mão criminosa com tamanha fúria? São perguntas que não querem calar no momento em que pensava poder produzir uma crônica sobre os bons sentimentos de que deveriam estar eivados todos os corações. E a realidade ceifa com um golpe certeiro toda a poesia, todo o encanto, toda a ternura com que viera escrever esta crônica.

Tenho a consciência de que o fato ocorrido com essa criança é apenas um dos muitos casos que parecem negar o significado do Natal. Peço desculpa se manifesto assim tão indignadamente a minha revolta contra tudo isto. A data deixa com efeito o coração da gente mais sensível. A cada ano, por força das transformações que a vida nos impõe, ficamos tristes e nostálgicos, cada vez mais voltados para o tempo que passou, e que nos pareceu melhor. Acontece de acharmos um ou outro Natal o mais sem cor desde muitos anos. Mas não podemos, quando isto acontece, deixar de crer na certeza de novas alegrias, coisas passageiras que chamamos felicidade. Vamos em frente, tirando dos escaninhos da alma as boas recordações.

Sobre o Natal, no que há de silencioso e solitário na vida de algumas pessoas, resolvi escrever o conto que segue:

Natal na Rua do Fogo

Desde que o marido morrera, havia muitos anos, dona Lili vivia na mais absoluta solidão. Dedicava-se, mal raiava o dia, a costurar na velha Singer. A rotina de sempre: receber clientes, cada vez mais raros nestes tempos de griffes, fazer a entrega das encomendas, comprar botão, zíper, tubos de linha, agulha, alfinete - "Se Deus quiser pago tudo depois das festas - dizia ao dono do armarinho, que a coisa melhora véspera do Natal e do Ano-Novo."

Todos os dias, à luz dos primeiros raios de sol, dona Lili arrumava a casa, o quintal e, zelosa, ia ao velho guarda-roupa de jacarandá organizar as gavetas do finado - o dourado da abotoadura esfregado no vestido para conservar o brilho. Com o desvelo das apaixonadas, dobrava cada gravata, cada cueca... E eram vinte e sete anos de viuvez!

No começo, passados os quatro ou cinco primeiros anos, as freguesas diziam que dona Lili haveria de achar um marido novo: - "Quarentona muito da bem-apanhada", brincavam.

Mas o tempo, tão afeito a surpresas, não trouxe surpresas para dona Lili. A vida-vidinha passando sem novidades, e com ela a beleza e o encanto da velha costureira, o verde dos olhos ainda chamando a atenção de todos. Não tivera filhos, e Maria, a empregada vinda das bandas do Quixelô, que fora a companhia de dona Lili anos a fio, voltara para os confins, desde que a catarata roubara-lhe dos olhos os derradeiros fiapos de luz.

Contudo, tendo como amiga a eterna solidão, dona Lili não maldizia a vida: - "É assim mesmo, até que Deus me leve outra vez para os braços de Murilo", que Murilo era como se chamava o marido de dona Lili.

Com a proliferação das butiques, as dificuldades aumentavam, as freguesas escasseando com o passar dos anos.

Hora existia na solidão de dona Lili, que lhe passava pela cabeça largar a velha Singer e tentar recomeçar a vida, balconista de loja de tecido, manicure, vendedora de produtos de beleza... Depois, recomposta a lucidez e a solenidade da velhice, dona Lili via com clareza que já não era tempo de recomeçar. E voltava, alfinete à boca, a dobrar o corte de fazenda de que surgiria o vestido de término de curso da filha de Zenaide, a mulher do tabelião, "tão exigente!", pensava com seus botões.

Dia após dia, a rotina era de tristeza e solidão na velha casa. Varrer, lavar, passar, fazer a comida e arrumar o guarda-roupa de Murilo, o dourado da abotoadura arrastado no vestido de organdi, para retomar o brilho.

Certo dia, véspera do Natal, à tardinha, banho tomado, a travessa azul segurando o penteado simples, o cheiro da alfazema a se espalhar no ar, dona Lili debruçou-se na pedra da janela para admirar o mundo. Ao longo da Rua do Fogo, que era o nome da rua em que dona Lili morava, as barracas de guloseimas, de bugingangas, de brinquedos baratos, fizeram-na lembrar que se comemorava o nascimento de Jesus, dali a poucas horas. E que a vida, no viravoltear das coisas e na repetida utopia dos homens, anunciava-se nova, porque era Natal.

Alforriando o olhar cansado para o além, dona Lili deixou-se transportar para os tempos ao lado de Murilo, a tão esperada missa-do-galo na Matriz, o calçadão da praça - o braço enlaçado à cintura do homem amado - e a sensação há tanto esquecida de que a vida pode ser feliz.

Exausta, que foram muitas as encomendas do fim de ano, dona Lili fechou lentamente a janela, percorreu, passo trôpego e tateando o ar, o corredor que levava ao quarto. Ainda uma vez, antes de deitar, dona Lili abriu a gaveta do guarda-roupa, reorganizou as gravatas, as cuecas, o pente, a navalha de barbear, a aliança de Murilo - "Ainda mando o relojoeiro tirar os riscos!" - o dourado da abotoadura contra o vestido, para reconquistar o brilho.

Sob o domínio da insônia, companheira de toda noite, dona Lili ainda pode escutar o pipocar das bombas, o badalar do sino da Matriz. E, antes de soprar a vela, bruxuleante sobre a mesa de cabeceira, como fazia há vinte e sete anos, antes de dormir beijou o retrato de Murilo.

Dessa vez, no entanto, dos olhos verdes de dona Lili, duas lágrimas, grossas e cristalinas, rolaram serenamente pelas maçãs do rosto.

Na manhã seguinte, a muito custo, conseguiu-se entrar na casa de dona Lili, onde a encontraram sem vida, em decúbito dorsal, o par de abotoaduras preso a uma das mãos, já endurecidas.

Ao enterro, rigorosamente contadas, compareceram dezoito pessoas - onze homens, seis mulheres e um menino.

Dizem que do interior daquela casa enorme e vazia, à meia-noite, por muitos anos, ouviu-se o barulho da velha máquina de costurar.






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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Do amor e outras crônicas - Intervenções

Nas livrarias a partir de hoje, Do amor e outras crônicas circulou por toda a semana passada 'informalmente' pela cidade e chegam comentários sobre o livro por e-mail, alguns dos quais tenho a motivação de responder neste espaço.

Leitora diz ter adorado o livro, mas observa ter "uma atmosfera triste e desencantada sobre o tema", o que afirma poder ser desinteressante para "os amantes mais felizes."

- Agradeço o comentário e concordo em parte. Acho que na nota do autor procurei explicar tal leitura dos relacionamentos, sem deixar de apontar para o lado bom e feliz dos mesmos. As crônicas pretendem explorar a face mais realista da vida amorosa, passada a fase de enamoramento que leva à equivocada impressão de que a felicidade é para sempre.

Uma outra elogia o trabalho e aplaude o que diz ser "o olhar do homem sobre questões tão femininas, algo não muito comum entre eles (sic)." Mas acrescenta: - "As mulheres sofrem muito mais que os homens e seu livro parece não levar isso em conta."

- Não percebi, acredite, que tenha estabelecido perspectivas de olhar sobre a dor decorrente das separações. Sendo mais claro: acho que homens e mulheres passam inevitavelmente por momentos de sofrimento quando o relacionamento acaba. O que é fato, quero crer, é que o rompimento vai doer muito mais em quem se sente preterido, independentemente de ser homem ou mulher. Ademais, cada um reage de forma diferente diante das turbulências, seja ele ou ela. Se você, leitora, exige de mim uma posição sobre ser um ou outro quem mais sofre nessas horas, penso mesmo que a mulher lida com mais equilíbrio com as dificuldades, as perdas, as desilusões passionais. O que não significa dizer que não sofra também. É que antes, antigamente, digamos, a decisão de terminar o relacionamento partia mais do homem. A mulher se submetia a relacionamentos falidos, renunciava ao direito de recomeçar sua vida sozinha e os casamentos, por exemplo, eram duradouros, para sempre, mesmo quando o amor deixara de existir ou mesmo nunca existira . Hoje, posso afirmar sem medo, os rompimentos decorrem em maior escala da decisão da mulher sobre continuar ou não o casamento, os namoros, as relações amorosas de qualquer ordem. Faz parte da sua bagagem de conquistas, da sua liberdade para decidir sobre a sua vida em todos os campos. O amoroso sobremaneira.

Ainda uma leitora diz que o livro é "pessimista e muito pra baixo, embora bem escrito e bonito (sic)."

- Com efeito o livro trata enfaticamente dos desencontros, o que me parece ser coisa recorrente em nossos dias. É ver por qual perspectiva é o amor cantado em prosa e verso na literatura, no cinema, no teatro, na música popular etc. Sem falar que poucas vezes dispensei ao tema a realidade da traição, do adultério, que, está no belíssimo "História do amor no Ocidente", de Denis Rougemont, confunde-se com a própria história do amor na cultura ocidental.

Por último, quero me referir a um comentário sobre o texto propriamente dito. Diz uma leitora: - "Embora já conhecesse suas crônicas do blog, li o seu livro e gostei muito. Tenho recomendado para as amigas. Como fazer para adquiri-lo.

- Que bom que você gosta do meu texto. É uma coletânea de crônicas tiradas do blog, de fato, o que dá ao livro um jeito de coisa mal alinhavada e, como digo na nota do autor, canhestra. É uma tendência que vem se afirmando na literatura de hoje, textos ligeiros, um tanto 'marginais', destituídos do bom acabamento da literatura 'maior'. Quanto ao que fazer para comprá-lo, está a partir de hoje na livraria Siciliano do Shopping Deo Passeo" e, na semana que vem, na Saraiva do Iguatemi. E, em meados desta semana, na Sicialiano da Santos Dumont. Obrigado pela divulgação.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Almodóvar

Não tive tempo de assistir ao último filme de Almodóvar, em cartaz há dois ou três dias em Fortaleza. Entre amigos, comentava com entusiasmo: - "Vou ver Almodóvar amanhã." E M., respeitado amante da sétima arte, dispara: - "Um chato!" Como quisesse que justificasse o rótulo peremptório, tergiversou: - "Muito mexicano para o meu gosto." Referia-se, depreciativo, à linhagem mais cult do cinema espanhol, um tanto preso à realidade de um povo marcado culturalmente, o que se faz notar nos perfis psicológicos das personagens de Almodóvar. Visão de superfície. Penso que o cineasta espanhol está para além dessas delimitações. Aliás, considero-o um dos artistas da hora mais universais na abordagem dos grandes conflitos de nosso tempo. Arrisco afirmar que existe em Almodóvar algo de Bergman, guardadas as diferenças da análise psicológica que move um e outro.

Explico-me: acho que Bergman sobressai pela abordagem quase existencialista dos dramas humanos, da consciência de que estamos todos condenados ao pesadelo da desesperança, onde a morte põe em relevo o não sentido das coisas. É aí, quero crer, que me parece possível a comparação entre artistas tão 'pessoais'. Talvez essa proximidade esteja nas diferenças já conhecidas da vida de um e outro. Bergman teve uma vida 'sueca', tome-se o adjetivo pela condição social que lhe assegurou tranquilidade para estudar a sua arte e compreendê-la intelectualment desde os primeiros passos. Privilégio que não teve Almodóvar, filho de uma família extremamente pobre, que sequer pode ser um frequentador assíduo dos cinemas.

Que os aproxima, então? O fato de que as grandes dores, se por um lado estão sempre associadas às condições sociais em que vive o homem, por outro independem dessa realidade, são consequências naturais do próprio existir de cada um de nós. Como não perceber isto em filmes como Fale com ela ou Volver, para me reportar a dois grandes momentos de Almodóvar? Quem, além de Bergman (ou Antonioni) fixou com tamanha atenção as grandes indagações existenciais que permeiam a história dos homens? Acho que não é atrevido defender essa depreensão dos conflitos do homem, da mulher, notadamente, nas obras gigantescas do sueco e do espanhol. Por isso me fascinam os filmes de Almodóvar, pelo que revelam, exploram, discutem sobre dramas tão rotineiros de nossas vidas. De forma visceral, verossímil, assumidamente real.

Que seja muito 'mexicano' para seu gosto, amigo M., admito. Mas vou ver Almodóvar amanhã.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

As time goes by

Leitor comenta crônica que publiquei sobre Casablanca e discorda de que a cena final do filme seja a mais bonita. Gosto à parte, faz referência à cena em que Laszlo, ao ver soldados cantarem o hino da Alemanha, manda que a orquestra do Rick's Bar execute a Marselhesa, que, a uma só voz, é entoada pelos franceses que ali se encontram. De fato emocionante, esta cena é o outro grande momento do filme Michael Curtiz.

Acho, contudo, que a cena final de Casablanca diz mais do enredo do filme, a história de amor que envolve Ilsa, Rick e Laszlo. A propósito, uma outra cena é particularmente tocante. Refiro-me ao encontro de Ilsa e Rick, quando fica evidenciado que os ex-namorados continuam apaixonados. Ao deparar com Ilsa, Rick manda que o pianista Sam toque a belíssima As Time Goes By, música que marcara o seu romance com Ilsa em Paris:

Você precisa lembrar disso:
Um beijo é sempre um beijo
Um gesto de emoção.
Coisas marcantes acontecem
Enquanto o tempo passa.

E quando dois amantes
Declaram que se amam
Esteja certo
Que o futuro não importa
Enquanto o tempo passa.

Os luares e as canções de amor,
O ciúme e o ódio
Que movem os corações apaixonados.
Tudo tem seu tempo.
A verdade é que
O homem e a mulher
São partes um do outro.

Esta história é a mesma velha história:
Na luta pelo amor e pela glória
Se ganha aqui, se perde ali.
O mundo sempre vai censurar os amantes
Enquanto o tempo passa.

A licenciosa tradução que apresento acima para As Time Goes By dá uma demonstração da força poética de Casablanca. Um filme inesquecível sobre o amor e seus desencontros. Vale rever.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Casablanca

A cena final de Casablanca é sem dúvida uma das mais bonitas do cinema. Como nem todo leitor desta coluna terá visto o filme - e os que o viram talvez não recordem dele amiúde -, sinto-me motivado a (re)contar o que me parece essencial na história, que se passa nos anos 40 do século passado.

Vencedor do Oscar de 1943 como melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro, Casablanca se passa no Marrocos, à época uma possessão francesa em que aportavam aqueles que queriam fugir dos horrores da Grande Guerra rumo à América. Era uma travessia complicada: em sua grande maioria, os refugiados partiam de Paris, seguiam para Oran, na Argélia, e de lá para Lisboa, de onde era possível o sonho de chegar à América. O sucesso dessa empreitada, como é comum em tais circunstâncias, envolvia corrupção da polícia. O clima era terrificante e os que não tinham dinheiro esperavam meses até obter seus vistos de saída.

Nesse cenário de angústia e medo, pois, se passa essa belíssima história de amor, um triângulo entre Ilsa (interpretada pela estonteante Ingrid Bergman em momento culminante de sua carreira), Rick, seu ex-namorado, e seu marido Victor Laszlo. O filme, em flashback, dá-nos a conhecer o romance de Ilsa e Rick. Os dois têm de deixar Paris com a invasão dos alemães, mas Ilsa, na hora do embarque, não aparece, enviando para Rick um bilhete de despedida. Algum tempo depois, já casada com Laszlo, Ilsa chega a Casablanca e depara com seu ex-namorado Rick. A cena transcorre no Rick's Bar. O filme coloca, assim, as primeiras reflexões sobre o amor: pode-se amar duas vezes a mesma pessoa? Ou o amor de Ilsa jamais morrera? O que justifica, então, não ter partido com Rick de Paris? Já existira Laszlo em sua vida? Que bela trama, tão simples e ao mesmo tempo tão complexa.

É antológica a fala de Rick na cena em que Ilsa apresenta-o a seu marido dizendo conhecê-lo de Paris. Na contramão do que se diz sempre sobre os homens, que nada lembram dos encontros amorosos, Rick diz: - "Eu me lembro de todos os detalhes. Os alemães vestiam cinza e você azul." Noutra cena emocionante, Ilsa pede a Rick os vistos de saída para que possa salvar Laszlo. Num rompante da paixão, Ilsa e Rick abraçam-se e decidem partir juntos. A proxima-se a cena final de Casablanca, que disse considerar uma das mais bonitas do cinema.

No aeroporto, minutos antes da partida, encontram-se Ilsa, Lazslo e Rick. São dois os vistos e alguém terá de ceder. Numa atitude estóica, que arrebata os espectadores dessa obra grandiosa, Rick abre mão do seu amor por Ilsa em favor de Laszlo. Tomada de paixão pelo ex-namorado, Ilsa indaga: - "E nós, Rick?" E ele, do alto de sua dignidade, desfecha: - "Nós sempre teremos Paris." Arrepiante.

Acho que esta cena, na simplicidade de seus recursos, reedita de forma tocantemente poética a história de tantos amantes. Quantas vezes na vida temos de renunciar a um grande amor. Na dilacerante dor de tantas decisões, quantas vezes temos de sacrificar um grande amor. O amor de Rick transforma-se, na gratuidade de um instante, na memória dolorosa dos momentos felizes. Na vida de todos nós, aqui e além, o amor está condenado a ser apenas uma bela recordação. Mas como dói!






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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ainda sobre tempo e paixão

A propósito da crônica Tempo e paixão chegam-me inúmeros e-mails de leitores. Leitoras, sobremodo. Como este é um tema recorrente neste espaço, passo a impressão, não intencional, de ser um especialista no assunto. Ledo engano. Com efeito, tenho procurado estudar sobre relacionamentos, passionalidade, amor, embora viva, como todo mundo, os mesmos conflitos que, por vezes, têm levado a desfechos jamais desejados. Um desses e-mails levanta a seguinte questão: - "Você descarta a possibilidade do reencontro, passada a crise que levara à separação?"

Ah, não creio ter sido afirmativo neste sentido ou mesmo ter insinuado isto. Conheço casais que se reencontraram depois de um longo período de separação e vivem felizes hoje. Nesse caso não creio que a paixão tivesse desaparecido. Ela se recolhera por força das crises recorrentes, hibernara por um tempo que é muitas vezes indispensável para que os amantes possam ter uma nova chance. Quando isto ocorre, e não é raro que ocorra, acho que a tendência natural é que a relação volte fortalecida.

No livro Homens são de marte, mulheres são de vênus John Gray defende uma tese que me parece extremamente feliz: os homens são como elástico, as mulheres como ondas. Os homens sentem uma necessidade de se afastar, de ir até à extremidade de sua fuga para sentir o desejo de estar perto. A mulher tem movimentos que se assemelham ao ir e vir das ondas. Quando atinge a plenitude de seus desejos de ser amada, quando ela se percebe objeto do amor incondicional do homem amado, curiosamente tende a mudar seu estado de ânimo e a tendência natural é mudar também os seus sentimentos, a quebrar abruptamente a sua onda. Acho que o famoso terapeuta compreendeu à perfeição o que, nos casos em que a paixão, existindo ainda, não é suficiente para sustentar a relação, explica às claras o motivo por que se dão os rompimentos que não raro se tornam defintivos.

Acho que é o tempo a que me refiro na crônica Tempo e paixão, o que não ficou evidenciado no texto, a concluir pelo que questiona a referida leitora no seu e-mail. A nova paixão, embora não sendo esta uma situação muito comum, pode ser o despertar da paixão que se recolhera, que hibernara por um tempo necessário para que se dê o reencontro mais amadurecido dos amantes. É a reflexão que levanta Gray: "Quando não está se sentindo tão bem consigo mesma, ela [a mulher] não pode ser tão acolhedora e apreciar tanto o seu parceiro. [...] Quando sua onda atinge o fundo, ela fica mais vulnerável e precisa de mais amor. É crucial que seu parceiro entenda o que ela precisa nesses momentos, do contrário ela pode fazer exigências irracionais." Perfeito. O mesmo, na perspectiva de sua elasticidade, quero crer, se dá com o homem. E aí, não sendo definitiva, a separação será inevitável. E o tempo, que afirmo em minha crônica ser o único remédio capaz de curar a paixão, que adoeceu pela incompreensão das diferenças existentes entre o marciano e a venusiana de que nos fala Gray, tem uma outra configuração. É o tempo da reorganização dos sentimentos, da avaliação menos emocional das qualidades e defeitos de cada um. De pesar o que houve de positivo e negativo na relação, e de decidir ou não pela chance de recomeçar.

Se defendo a opinião de que o tempo é remédio mesmo para as paixões que jamais se reencontrarão, não fecho os olhos para a triste realidade de que nem sempre é um remédio infalível. E os amantes que nasceram um para o outro e tomaram rumos diferentes estarão condenados a carregar no peito a ideia fixa, a obsessão que jamais desaparecerá. Como diz Martha Medeiros em O centro das atenções, a pessoa amada "Acomoda-se dentro da gente e de vez em quando cutuca, se mexe, nos faz lembrar de sua existência."

Talvez seja o momento de perceber que o que se chama paixão devesse ter um outro nome, que, na falta da explicação exata, pode-se chamar de amor.





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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Tempo e paixão

Leio numa crônica de Martha Medeiros: - "Estar só, totalmente só, é um direito e um dever. Não todo o tempo, mas por um breve tempo, o tempo que a gente precisa para reencontrar a si mesma." Bárbaro, Martha. O grande equívoco dos que se separam, notadamente os homens, sempre mais apressados sob este aspecto, é sair à caça, querendo a custo substituir a pessoa amada. A leitura machista, retrógrada, de que só se cura uma paixão com outra paixão. E o cara se entrega na busca insana, conquista Maria e Joana, mas o abismo só aumenta. É que para curar a velha paixão só existe um remédio, e esse remédio é o tempo. Ademais, a paixão é felicidade, mas não é a felicidade.

Fazer o quê?, o leitor há de querer saber. Não há fórmulas, receitas prontas. Entendo que o segredo está em lidar bem com a solidão e aproveitá-la construtivamente. É hora dos bons livros, de rever alguns filmes de que você mais gostou, de retomar projetos esquecidos, de reencontrar velhos amigos, e, coisa importante, deixar-se ficar só, sem fazer nada previamente pensado. Sim, esse ócio que nos permite sentir o corpo, educar a respiração, deixar os olhos passearem pelos cantinhos nunca visitados do nosso espaço. Ocupar o tempo com ações menos produtivas, mas revigorantes para a alma. E rever um pouco do que fomos, num tipo de autocrítica que possa nos fazer mudar para melhor.

Descrença no amor, na linha do que escrevi em outra crônica sobre um amigo que foge de uma nova paixão? Não, bem longe disso. Acho que uma nova paixão é um tipo de contemplação para o espírito que se fortaleceu no processo de reencontro consigo mesmo. A paixão é prêmio para a alma resolvida, nunca o recheio para o vazio que se instala em nós com o fim de um relacionamento. Uma nova paixão não é algo que se procure de lupa na mão, agulha no palheiro.

A paixão vem do inusitado, daquilo que você nunca previu. A paixão é sorrateira, moleca, brinca de esconde-esconde, de pega-pega. Mas vem de repente, não tolera festa de recepção, por isso nunca avisa quando vai chegar. Está na canção de Dusek: "Quem será que me chega / na toca da noite / Vem nos braços de um sonho / que eu não desvendei / Eu conheço o teu beijo / mas não vejo o teu rosto / Quem será que eu amo / e ainda não encontrei." Bravíssimo.

Se está acontecendo com você o mesmo, se ainda não reorganizou por inteiro sua vida e seu coração, não abra mão de um tempo sozinho, esse tempo que não tem preço, que é, na mesma medida e proporção, um direito e um dever. Deixe que a novidade aconteça assim, como uma novidade, não como um filme em que você atuou. E que não teve um final feliz.





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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Nunca mais

Quando era menino, num seriado de tevê chamado Ratos do deserto, sem razão aparente, a fala de uma personagem me tocou profundamente: - "Nunca mais! Que coisa triste é ouvir nunca mais!" Até então não me ocorrera pensar sobre isso, pensar que algumas experiências, um dia, jamais serão revividas por você. Com o passar dos tempos, como na vida de todo mundo, a frase inclemente tem-me voltado à cabeça. A morte de uma pessoa amiga, a morte do pai, da mãe, de um sobrinho, o fim de um relacionamento de amor, a partida de alguém para um paradeiro que você desconhece etc., e a afirmação retorna, implacável, desumana, cruel: "Nunca mais!"

A expressão, assim, vai adquirindo na vida da gente quase sempre essa conotação pesada, agressiva, sombria, normalmente associada ao sofrimento e à dor. De uns dias para cá, no entanto, com a proximidade do final do ano, que é sempre a nova chance de você recomeçar a vida, a impassível expressão tem assumido um significado novo, positivo, para cima, sugerindo possibilidades de mudanças para melhor. Nunca mais vou ser indelicado com quem quer que seja; nunca mais vou fumar; nunca mais vou exagerar no uísque; nunca mais vou protagonizar uma cena de ciúme; nunca mais vou me deixar dominar pela emoção; nunca mais vou emitir julgamentos prévios; nunca mais vou amar tanto a ponto de me perder de mim. De uns dias para cá, como disse, venho desfiando um rosário de "nunca mais" que haverá de me fazer melhorar como gente, de me aperfeiçoar como homem.

Estou convencido de que os "nunca mais" podem ser muito úteis na vida das pessoas, tornando-as mais humanas, mais bonitas por dentro, mais solidárias, mais sensíveis, mais humildes, compreensivas, tolerantes. Estou convencido de que o mundo, a vida de todos, podem ser transformados para o bem: nunca mais vou ser insincero; nunca mais vou amar sem amor; nunca mais vou valorizar as pequenas tolices que vinha valorizando tanto; nunca mais vou abrir mão do essencial em favor do supérfluo; nunca mais vou esquecer de que as coisas mais belas podem estar nas coisas mais simples; nunca mais vou alimentar sentimento de culpa; nunca mais vou me torturar porque o amor não foi para sempre; nunca mais vou fechar os olhos para as virtudes e abri-los para os defeitos; nunca mais vou deixar de perdoar; nunca mais vou deixar de dar a última chance; nunca mais vou cometer os mesmos erros; nunca mais vou pisar na bola e perder o gol da felicidade, a chance de virar o jogo que parecia perdido. Nunca mais!



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Saudade

Com rigor, não existe em outro idioma equivalente para a palavra portuguesa saudade. Ela traduz o mais comovente sentimento humano, o mais dilacerante, o mais doloroso, a lástima da ausência, a tristeza das perdas e das separações. Só em língua portuguesa existe um vocábulo capaz de definir com exatidão o que sentimos na ausência da coisa amada. Em nenhum outro idioma haverá um vocábulo que possa dizer precisamente o que dói no fundo da alma quando desejamos conosco aquilo que se foi, que ficou enquanto partimos, que nos deixou ou foi deixado por alguma razão. Está na pedra dos túmulos, no coração dos viajantes, dos exilados, dos solitários e dos esquecidos. Serve para definir a mais íntima tortura, a pior das emoções.

Em Canção de Amor, um dos clássicos do cancioneiro popular, Elano Paula diz: "Saudade torrente de paixão, / emoção diferente, que aniquila a vida da gente, / uma dor que não sei de onde vem." Chico Buarque, em Pedaço de Mim, criou a mais completa tradução, a metáfora desconcertante: "A saudade é o revés do parto / a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu." Fausto Nilo, em Asa Partida, traz o verso antológico: "E continua o teu sorriso no meu peito, / esta saudade, o cigarro, a luz acesa, /e esta noite posta sobre a mesa." É que a poesia pode dizer figuradamente o sentimento, transferindo para o outro o que parece ser incomunicável. É a força da poesia, o prodigioso milagre da arte. Que dizer de Brant? - "Amigo é coisa pra se guardar / do lado esquerdo do peito, / dentro do coração / mesmo que o tempo e a distância / digam não." Ou Duran: "Ah, a rua escura, o vento frio / esta saudade, este vazio, esta vontade de chorar."

Dia desses, conversando com amigos, o tema veio à baila: - "É o dolorido gozo!", alguém falou. Perfeito, que não existe saudade que seja, por completo, uma experiência agradável, mesmo quando a sentimos daqueles que amamos, da viagem inesquecível, da boa infância, dos dias idos que foram felizes. Não há saudade que não seja dor, ferro em brasa no coração, golpe bárbaro no mais íntimo do ser. Se vem acompanhada da cruel sentença, então, escalpela, maltrata como o ácido na ferida aberta: "Nunca mais!"





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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Samba do avião

Sobrevoando o Rio, leio uma matéria curiosa na Isto é sobre infidelidade feminina. As mulheres, segundo pesquisa, assumem que estão traindo mais. Na cadeira ao lado, uma mulher que apanhara o avião em Fortaleza olha de soslaio para a revista, discreta, apenas correndo o olhar para mim, vez e outra. Finjo não ver, mas diante de sua curiosidade convidativa, retribuo o olhar e só então constato. É bonita, 40 anos, pouco mais ou menos. Previdente, certifico-me de que esteja só, e pergunto se concorda com o teor da reportagem. Sem titubear, diz ela: - "... mais e melhor!" Risos.

Entre curioso e intrigado, indago-lhe por que "melhor". Ela, que me parece de um bom nível cultural, larga um Saramago de que iniciara a leitura e voltando-se na cadeira, esbanja convicção: - "Porque as mulheres aprenderam a diferença entre sexo e amor." Fecho a revista e fico em silêncio, até que me vem a resposta que é mais uma pergunta. Por que então manter uma relação que já não a satisfaz? Por que não romper o casamento falido e sair de vez para a liberdade lá fora? A moça ajeita o cabelo, no que dá a ver um charme que envolve e desfia afirmações peremptórias sobre o assunto, que agora vai tomando um rumo que já conheço de 'outras viagens'.

Fala que nem sempre separar é o caminho, que o casamento não se limita a sexo, que manter uma relação às vezes é o melhor para os dois, que isto e aquilo. Sem vacilar, com a serenidade de quem traz no currículo um histórico de causar inveja a qualquer Luana Piovani. E não espera mais que lhe pergunte. Vai sem-cerimônia, dando exemplos. Referindo-se a uma amiga: - "A Fabíola vive bem com o marido e tem um amante que a realiza sexualmente." Tento questionar o "vive bem com o marido", mas não me deixa falar. E prossegue, desenvolta: - "A Roberta, uma amiga gaúcha de 32 anos, é casada há seis e já teve três homens na vida dela, mas o marido é o mesmo."

Depois de desfiar outros casos de infidelidade entre amigas, Carla, que enfim se apresenta, decorridos dez, quinze minutos de conversa, só então pergunta o que penso sobre o assunto. Digo-lhe que entendo a infidelidade como algo às vezes compreensível, nunca aceitável. Falo-lhe das razões que podem levar a tal experiência. Que, não sendo um crime, poderia ser evitada se os casais fossem mais tolerantes, se buscassem compreender melhor os motivos que levam duas pessoas a decidir pela vida juntos. Quando acho ter contribuído com suas análises, tão pessoais, tão independentes, posto que me escuta atentamente, desconcerta-me: "Fica no Rio até quando?" Digo-lhe que estou indo a São Paulo, onde minha namorada me espera e que estamos ansiosos pelo reencontro, depois de um mês separados. Diz ela, taxativa: - "Ah... Se fosse ficar no Rio, meu marido está viajando e poderíamos nos encontrar para um chope à noite, no Leblon, perto de casa."

Agradeço-lhe a gentileza, olho através da janela do avião e, discretamente, baixinho, canto o samba de Jobim: "Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, estou morrendo de saudade..."



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Paris, Texas

Não sou um bom conhecedor de cinema, mas sou apaixonado por filmes. Quando gosto, quando um e outro me tocam fundo, vejo-os vezes sem conta. Há filmes que vejo sempre que posso, dez, quinze vezes. Não é nada, se comparado ao que declarou o jornalista Lúcio Brasileiro acerca de Casablanca, a que já assistiu mais de mil vezes. Pasmem, mil vezes. Fico nos meus números modestos. Cinema Paradiso é um vício e me emociona sempre que revejo esta verdadeira obra-prima de Giuseppe Tornatore. Esta semana revi Paris, Texas, de Wuim Wenders, de uma simplicidade desconcertante. Quase não há cenário, efeitos especiais ou qualquer sofisticação técnica. Apenas fala, à perfeição, das grandes dores humanas, da solidão, das perdas. Essas coisas que, cedo ou tarde, movem as nossas vidas. A grande arte, na minha modesta opinião, é isto.

O roteiro, escrito por Sam Shepard, retoma um tema recorrente na filmografia de Wenders, um artista obcecado pelo sofrimento do homem marginalizado por alguma razão. Travis, a personagem que aparece caminhando no início do filme, jeans e boné de beisebol, barba por fazer e aparentemente sujo, foi casado um dia, teve mulher, teve filho e uma vida normal. Mas tudo deu errado para esse homem amargurado que caminha como que em busca da identidade perdida. É o tema desse clássico do novo cinema alemão.

Exausto, Travis chega a um posto de gasolina e desmaia, mas é localizado por um irmão, a quem se recusa falar sobre o que se passa com sua vida. Quando, enfim, decide contar sua história, compreende-se o seu drama, a sua crise existencial. Na contramão do que esperamos nas primeiras cenas de Paris, Texas, Travis não é um louco, apenas um homem devastado pela solidão. Tão despojado e tão intenso o filme de Wim Wenders.

Como é recorrente na obra desse cineasta fenomenal, Paris, Texas mostra-nos o que já sabemos da vida, mas o faz com a sensibilidade do gênio. Os filmes de Wenders deslizam à nossa frente, mostram os grandes conflitos do homem, vai fundo no que há de mais complexo nas suas emoções, incertezas, angústias e esperanças. Não trazem surpresa, não empolgam pela força de qualquer imagem ou pelo futurismo de suas abordagens. E, no entanto, fazem o que deve fazer toda arte verdadeira, proporcionam-nos um tipo de catarse dos nossos dramas, das nossas perdas e eternas buscas. Encontros, desencontros, perdas e ganhos compõem a matéria de que se vale o cineasta para embelezar o homem, aperfeiçoando-o. A vida, contada a partir do olhar de um grande artista. A vida, cercada de medos e de solidão.



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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O sapato

Enfim chegara a hora da partida, que aquele pouco mais de dois meses parecera-lhe uma eternidade. A sogra, como fazia todos os anos, desde que o marido morrera, viera visitá-los. Na primeira semana, reconhecia, era uma convivência de certo modo agradável. Gentileza de ambos os lados e, a bem da verdade, de manifestações veladas de carinho e recíproca atenção. Com o passar dos dias, contudo, a coisa ia ficando pesada e o relacionamento quase insuportável, as intromissões na vida íntima do casal uma constante, razão por que, vez e outra, era inevitável tratá-la com rispidez.

A filha indignada.

Prestimoso, conduz nas duas mãos a bagagem da sogra.

- Chumbo!, murmura até o portão, onde deixara o carro estacionado. Aloja-a com desenvoltura no portamalas. Só mais um pouquinho, pensa, e vejo-me livre dessa velha metida.

A filha enxugando as lágrimas com discrição.

A caminho do aeroporto, insincero, uma palavra ou outra gentil. Dizia que os dias haviam passado rápido, que as crianças iam sentir muito a falta da avó...

A mulher olhando de soslaio: - "Um falso, isso sim!", sem dizer palavra.

De repente, numa curva mais acentuada, toca-lhe o calcanhar um sapato alto, que, a custo, consegue esconder sob o banco do carro, sem que a mulher perceba. Lembra, então, da noite passada, quando, doses a mais no happy hour, saíra para um programa com uma colega de trabalho, a consciência ainda pesando-lhe pelo espetáculo num quarto de motel.

- O que há, Marcelo, por que corre tanto?

Finge não escutar, os pingos de suor escorrendo-lhe pela face. E, novamente, o sapato, insistente, confundindo-se com o acelerador do carro, inconveniente, atrevido, denunciador. Empurra-o, outra vez, sem que a mulher acompanhe o movimento do pé, habilidoso em ocultar o que lhe parecia a prova do crime.

- Marcelo, você está esquisito. O que é?

- Eu, imagina! Está tudo bem.

Esboça um sorriso amarelo pelo retrovisor.

- E aí, dona Sílvia, deixando saudade, hein?

Hipócrita! A mulher balbucia por entre os dentes.

A poucos minutos do aeroporto, aproveitando-se da pouca luz do Rebouças, o túnel que começavam a atravessar, a pretexto de fechar a porta do automóvel, como em milagre, consegue livrar-se do objeto incomôdo e ameaçador.

- O que foi, agora, Marcelo?

- A porta, estava aberta.

Atenta à conversa, a sogra levanta as mãos em agradecimento, o olhar no teto do carro, como se fora o céu.

Pára no terminal de embarque, contorna o automóvel, solícito, para abrir-lhe a porta. Só então se dá conta de que a sogra ocupa-se na procura inútil.

- Meu sapato, não estou achando! - diz, tateando o chão.

- O quê? Que sapato?

Aquele de que se livrara minutos antes.



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Ainda sobre a paixão

Certa vez escrevi uma crônica sobre um amigo que corre léguas da paixão. E choveram e-mails sobre o que escrevi, que pensava raro. Não é. Pude ver que o contingente dos que fogem de novas relações é imenso: - "Tenho medo de sofrer!"
 
Proust termina um dos romances de Em busca do tempo perdido, No caminho com Swann, com uma reflexão desconcertante: - "E dizer que desperdicei anos da minha vida, que quis morrer, que tive o meu maior amor por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo." É o expediente de que se vale Marcel, o narrador, para vasculhar sua mais funda subjetividade sobre a complexidade desse sentimento a que chamamos amor. A força do romance reside aí: o que é amar? Para Swann, "amar é desejar amar, é sofrer, é ser escravo de um sentimento, é projetar no outro qualidades estéticas e eróticas mentirosas."
 
A Odette que Swann ama é irreal, é a fantasia que ele mesmo desenhou. Mais que a paixão pelo outro, a personagem ama a si mesma, numa busca de fundir o sujeito com o objeto, matriz das vontades mais incontidas de quem se deixa dominar por essa loucura (maravilhosa!) que é a paixão. Sob o efeito dessa embriaguez, o que se quer é a fusão impossível das individualidades. A bela Odette é, em realidade, um ser comum, quase vulgar. Mente, e levara uma vida bem diferente daquela com que sonhou Swann na sua idealização do amor. Sob a suspeita de que está sendo traído, ele se deixa devastar pelo ciúme. A trágica passagem da ventura para a desventura, que povoa as mais brilhantes páginas da grande literatura.
 
Ocorre a Swann, como a Bento Santiago e Otelo, como a Eulálio e Assumpção, o mais corrosivo dos sentimentos, o maior de todos os males. Lembremos Shakespeare: - "Bagatelas leves como o ar parecem, a um ciumento, provas fortes como as que se encontram nas promessas do Evangelho."
 
Quando se ama, diz Sthendal, "a cada novo objeto que surge aos olhos ou à memória, encerrado numa tribuna e atento a ouvir o que se discute no parlamento, ou indo a galope para a guarda, sob o fogo do inimigo, sempre se acrescenta uma nova perfeição à ideia que se tem da amada ou descobre-se um novo meio, que a princípio parece excelente, de ser ainda mais amado por ela."
 
Penso que não é o que se dá com os que se desiludem e se sentem incapazes de recomeçar suas vidas. Para muitos desses, como o amigo a quem dediquei minha crônica, a possibilidade de um novo relacionamento é sempre um movimento para o abismo. Vê-se no outro a ameça de uma nova desilusão. Aos seus olhos, as incertezas de um novo amor se torna algo muito pesado, quase insuportável. Para o coração que sangra, é o mal que se avizinha, é a dor que se anuncia, de mil formas, a cada novo encontro.        


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Natal com você

Se há uma demonstração de amor que me convence, é alguém prescindir da família para passar o Natal com você. Amigo, namorada, noiva, não importa. É alguém que veio ficar ao seu lado na mais significativa das festas. Veio porque considera você alguém especial, seja o que isso for. Li numa crônica de Medeiros, com que dialogo neste texto, que a dispersão é aceitável no Ano-Novo, não no Natal. Perfeito. A pressão é grande e todos vão querer contar com você na ceia natalina, momento de confraternização que torna os corações mais gelatinosos, mais vocacionados para o perdão e mais propensos a facilitar o reencontro das almas, que, por alguma razão, desentenderam-se num momento qualquer do ano.

É preciso muito carinho para alguém estar com você, muitas vezes sacrificando o convívio dos familiares diretos. Quando se mora na mesma cidade, sobretudo se essa cidade não é grande a ponto de tornar inviáveis os deslocamentos, pode-se ir de uma casa a outra: - "A gente fica na casa de seus pais até perto da meia-noite e o resto do tempo com os meus." E o que parecia um problema sem solução, é, de repente, algo contornável. Claro que há os casos de intolerância, quando o esgoísmo explode e a pessoa, arvorando-se merecedora de todas as renúncias, não é capaz de abrir mão de suas vontades. - "Longe da mamãe, nem pensar!" Você cedendo, mesmo quando isso abre o seu peito em metades.

Conheço alguém que rompeu um relacionamento de muitos anos por conta da estóica decisão: - "Com seus pais ou com os meus?" Desapontado, e insensível, e deselegante, precipitou sobre a mulher aqueles adjetivos que ninguém suporta ouvir. Foi a gota-d'água para a separação, que, pelo visto, veio tarde antes que nunca. É claro que o casamento buscava um pretexto para despencar de vez. E o espírito natalino passou ao largo daquele coração, que não foi capaz de entender que a lembrança da manjedoura deve trazer a cada um a oportunidade de viver os mais sagrados valores: a renúncia, a humildade, a compreensão...

Quando alguém, morando distante, abre mão do peru em família a fim de estar com você na noite milagrosa, isso quer dizer amor. É em nome desse amor que vai estar ali, ao seu lado, compartilhando muitas vezes com pessoas estranhas a mais bela experiência: o nascimento do Menino-Jesus. Se você, dia desses, for objeto desse amor, lembre-se de agradecer aos céus. - "Vou passar com você." Que sincera declaração de amor.



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Curtir a dor

Dia desses, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase incisiva: - "Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem." Falei com meus botões: aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.

A dor de um amor não-correspondido é um desses casos. Aliás, acho que essa dor, em essência, é igual a dor de qualquer grande perda, guardadas algumas particularidades. A morte de uma pessoa querida é muito próxima disso - sobre o que já se tem dito muito, mas o assunto continua em pauta, como um desses temas que, vira e mexe, voltam como uma eterna novidade.

A propósito, reli há pouco uma crônica de Nelson Rodrigues que é uma pérola sobre o assunto. Está em O óbvio ululante. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um mero pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. - "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)."

O amigo lhe abria o coração: - "A morte do meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de perdir-lhe: - "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação: sofrer menos, menos, até esquecer."

As palavras não valem quando a dor aflora nas grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre a mão, o afago sincero, valem muito. As palavras não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo é capaz de curar.

Sobre isso, vêm-me à mente as palavras de Rubem Alves, que leio na Folha: - "Todos os amigos querem diminuir o sofrimento da mãe. Carcam-na com palavras que, pensam elas, trarão algum consolo. Mas que palavra ou poema poderá substituir o seu filho? E a chamam ao telefone para dizer-lhe palavras doces e cheias das intenções mais puras. Mas a pureza das suas intenções não garante a sua sabedoria. E aí, à dor da morte do filho, acrescenta-se uma outra dor: a mãe é obrigada a ouvir os consoladores delicada e pacientemente, com sorrisos de agradecimento... Mas são tantos os consoladores e eles cansam tanto."

De Nelson é a sábia afirmação: - "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incubir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase a loucura.

"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda. Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam ao ouvido me fazem recordar o poeta chileno. E, no entanto, como desconhecem o que é perder alguém que se ama...



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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Valorizar o que é seu

"Quando nossos olhos ficam embaçados, nada como usar os olhos dos outros para voltar a valorizar o que é nosso." Bingo. A frase é de Martha Medeiros e, se não me engano, está em Montanha Russa ou Non-Stop.

Você babava toda vez que passava em frente à revendedora de automóveis e via, ainda que à distância, aquele carro 'irado'. Um dia, a custo, conseguiu adquiri-lo e se sentiu o homem mais feliz do mundo. Com o passar do tempo, a novidade foi perdendo a graça e, se pudesse, trocaria pelo modelo do Roberto, muito mais bonito, econômico e com maior valor de revenda. Com a roupa nova, com o sofá da sala, com o fogão, a geladeira que foi amor à primeira vista, cedo ou tarde vai ser assim. O brinco de ouro, o anel de brilhante, a pulseira de prata. O que um dia foi seu sonho de consumo, depois de conquistado, vai aos poucos perdendo o encanto. E você passa a achar desinteressante aquilo que fazia brilhar seus olhos, que o deixava de boca aberta, morrendo de vontade...

Na paixão é assim. A primeira vez que você a viu ficou deslumbrado. No dia em que reparou bem, ele lhe pareceu o homem dos sonhos. Ela tinha um jeito irresistível de recompor o cabelo. Ele usava um perfume que a deixou maluca. Ela era culta, além de bela. Ele era bem-humorado, roubava a cena à mesa do happy hour. Ela era inteligente. Ele falava de um jeito impressionantemente sedutor. E assim, sob a magia do enamoramento, um dia o destino fez com que ele ou ela cruzasse o seu caminho. Namoraram, ficaram apaixonados, casaram.

E o tempo foi passando. Com a convivência, o que era deslumbrante foi se tornando apenas de certo modo interessante. Ele, que lhe pareceu o homem dos sonhos, foi dando a ver seus defeitos. O charme com que ela recompunha o cabelo foi ficando uma mania irritante. A cultura e a beleza dela, tranformaram-se em coisa comum, não a fazendo tão diferente de tantas outras que você conhece. Ele, que roubava a cena com seu bom-humor, foi se tornando um chato. Ela, cuja inteligência lhe causou tanta admiração, agora o aborrece com suas reflexões rebuscadas sobre as coisas mais banais. A sedução dele fez desmoronar sua confiança, e o ciúme tornou a sua vida insuportável.

É que os olhos, com o tempo, vão deixando de ver que além do detalhe que o deslumbrou, ela tinha outras qualidades. Vão deixando de ver que além dos defeitos que só agora você percebeu, é um cara generoso, companheiro, sensível. Vão deixando de ver que, se a forma como recompõe o cabelo agora o incomoda, o sorriso é sincero, o carinho gostoso. Que muito mais que cultura e beleza, ela possui uma virtude sem preço, é família, recebe amorosamente seus filhos, que não nasceram dela. Vão deixando de ver que o que lhe parece chatice, é espontaneidade, é a alegria de viver. Que ela, apesar da conversa sempre séria, que lhe desagrada hoje, está sempre do seu lado, faça chuva ou faça sol. Vão deixando de ver que a sedução dele é natural e não uma arma de traição.

E você, sem que nem perceba, não a valoriza mais, não o admira como antes. E, se é bonita, a namorada do Paulo é muito mais que ela. Se ele é atraente, não tem o approach do marido da Carla. Se ela tem, com efeito, um certo charme, não tem as pernas da Juliana. Se é culta, falta-lhe a sensualidade da mulher do João. Se ele é bem-humorado, não gosta de viajar como o marido da Luiza. Se ela é culta, a Jô tem um corpo... Se ele tem poder de seduzir que a fez ficar nas nuvens de felicidade, um dia, o Marcelo está sarado, tem barriga de tanquinho e se veste irresistivelmente bem. A grama do vizinho...

E, no entanto, se você soubesse o que comentam dela os melhores amigos; se soubesse como as amigas a invejam pelo marido que tem. Se soubesse como admiram o bom-humor com que ele vai tocando a vida; se soubesse... se soubesse...

Se seus olhos estão começando a embaçar, que tal ver um pouco com os olhos dos outros para valorizar mais o que é seu?









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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Danuza

Gosto da Danuza Leão. Pasmem: gosto da cronista, do texto enxuto, ligeiro, das posições corajosas, da autenticidade com que expõe sua opinião sobre o que quer que seja. Leio sua coluna na Folha como leio, por exemplo, Cony. Nada de comparações. Apenas leio e gosto do que escreve, como escreve. Seus textos são inteligentes, bem-humorados. Com todas as letras, gosto. Danuza está de bem com a vida e soube envelhecer com dignidade, o que sabe transmitir de forma agradável nas suas crônicas. Aliás, ocorre-me uma passagem de um dos seus livros em que narra ter comemorado sozinha, num hotel de Paris, seu aniversário de 70, 72 anos, não me recordo. Sabe o que é, para uma pessoa como ela, com todo aquele glamour, estar sozinha, num país distante, e afirmar ter sido esse o seu melhor aniversário? Ela e a companhia de uma garrafa de vinho. Mesmo, importante, estando no Ritz. É isso, creio, estar de bem com a vida. Saber lidar com a solidão, que quase sempre está ou não dentro de nós, na multidão ou no silêncio do quarto.

Dia desses, estando num consultório médico, tiro daquela cestinha em que a revista mais nova é de três anos pelo menos, uma Claudia de julho de 2005 e deparo com uma crônica dela que me chamou de tal modo a atenção, que pedi à atendente, na maior sem-cerimônia, para trazer comigo. Intitula-se Não me contem. O texto discute a infidelidade e Danuza, corajosamente, sai com esta pérola: "Pois eu espero que o homem que me trair tenha a delicadeza de negar sempre. Não me interessa que ele seja sincero e verdadeiro; quero achar que ele nunca me traiu, e para isso ele pode (e deve) mentir descaradamente, dizer que estou pirada, que caia um raio em sua cabeça se estiver mentindo. Como nenhum raio vai cair mesmo, ele pode falar à vontade; eu vou acreditar em tudo e ficar bem feliz." Polêmica à parte, é ou não é uma mulher autêntica?

Não se trata de estar defendendo aqui a condenável tese masculina de que negar sempre é a única forma de contornar a situação em casa, quando as evidências apontam para a consumação do fato, ou seja, a traição. Acho a ideia uma babaquice. Até porque, não-raro, a verdade se confunde com a mentira aos ouvidos inseguros de uma mulher. O que me impressiona na colunista é a forma como torna público um pensamento tão questionável, sobretudo na ótica feminina. Estou falando da honestidade do seu olhar, da sinceridade atrevida com que sabe lidar com temas assim delicados. Principalmente, diga-se, quando esse pensamento vem de uma mulher que protaganizou um dos mais escandalosos casos de infidelidade do Rio de Janeiro da época. Como sabem, Danuza foi casada com Samuel Wainer, um dos mais renomados jornalistas brasileiros do século passado, um homem de um prestígio imenso, rico e elegante. Wainer era dono do A última hora e contratara, como redator, Antonio Maria, cronista e compositor que se tornaria célebre pelo inexplicável poder de sedução que exercia sobre as mulheres. Justifico o 'inexplicável': Maria, segundo a própria Danuza afirma em um dos seus livros, que li outro dia no folhear vespertino das livrarias, era gordo, feio e desajeitado. Menos para o coração das mulheres, que conquistou aos montes. Apenas com aquilo com que os sedutores fazem a diferença na hora do jogo do acasalamento. Uma coisa que trazem do berço e, infelizmente, guardam a sete chaves.

Dando um desconto (e meio na contramão), como cronista considero Danuza o Nelson Rodrigues de saia. Escancarada, mesmo para o desconforto de muitos.

Mas, ainda sobre Maria, ao lado de não possuir dotes físicos - digamos -, apolíneos, era presunçoso e chegou a afirmar certa vez, num tipo de esnobismo ainda mais desinteressante, não existir mulher que resistisse a alguns minutos de sua conversa. Dizem que Balzac, o homem de La comèdie humaine, era assim. Vai ver, no caso do compositor nordestino, terá sido isso que levou aos seus braços mulheres encantadoras. Danuza Leão, para ficar num exemplo.







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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O medo vencerá o amor?

Como estivesse discretamente triste, perguntei: mas, não foi você...? Acabara de romper uma relação que tinha tudo para dar certo. Sabe aquele casal bonito, que faz planos, que nos deixa a sensação de que é possível sonhar? Era assim o que nos passava esse casal de amigos. Mas ela disse "acabou". Insisti: mas foi você que rompeu, que não quis mais. Por que ficar assim? Ao que, vacilante, respondeu: - "Porque ainda o amo, mas tenho medo." Num lampejo de memória, ocorreu-me Shakespeare: "De todas as paixões baixas, o medo é a mais amaldiçoada." E ocorreu-me Herculano: "O medo é o pior dos conselheiros." E pensar que esse sentimento maldito vem tomando conta da gente...

A maior parte das pessoas subtrai a vida assim. Tem medo, medo, medo. A minha amiga tinha medo de tudo, quase. Medo de sofrer, de fazer sofrer, medo de ser traída, medo de ser infeliz, medo de ser feliz, disto e daquilo outro. Preferiu permanecer na margem a tentar atravessar o rio e deparar com o desconhecido, que podia ser belo.

A propósito, li outro dia um livro desconcertante. Simples, leve, desses que parecem dizer o óbvio que a gente não percebe, uma propriedade do gênero. Eckhart Tolle, é o nome do autor. Mostra como o medo, que considera uma doença psicológica, não se prende a qualquer ameaça concreta, verdadeira. É fruto da imaginação negativa, e se manifesta com suas diferentes máscaras: preocupação, tensão, nervosismo, pavor, fobia. Esse tipo de medo psicológico, diz ele, "é sempre de alguma coisa que poderá acontecer, não de alguma coisa que está acontecendo neste momento. Você está aqui e agora, mas sua mente está no futuro." Perfeito Tolle, perfeito.

A vida da gente vai se transformando nesta negatividade. Temos medo de tentar, de falhar, de perdoar, de errar, de dar a última chance. É um tipo de defesa do ego que se deixou perturbar. A gente anda com medo da sombra e se vê a si mesma como se vivesse sob ameaça constante. E tudo é tão ilusório. Ah, lembrei o título do livro: O poder do agora, um dos fenômenos da 'literatura espiritual'. Nele o autor desfere o tiro certeiro nesse fantasma da falta de coragem, da covardia que, para a maior parte das pessoas, faz da vida um dois-pra-lá-dois-pra-cá irritante. E, no entanto, a vida é bailarina, já nos dizia Drummond. Tentemos o rodopio, o passo novo, o ritmo do frevo, se preciso for.

Para quem se deixa dominar pelo medo, para quem diz não ao homem que ama mas não é capaz de dizer não à negatividade, errar é morrer. E este sentimento ardiloso está associado sempre ao medo da própria morte. A troco disso, quantos já não morreram ou mataram. Quantas guerras no front do nosso eu interior. Quantas lágrimas rolaram ou vão rolar. Quanta coisa não fica por realizar. Quantos relacionamentos não foram ou serão destruídos.

Falei não, que em certas coisas não se deve meter. Mas deu vontade. "Vai lá, se você ama como diz amar. Vai lá, que o tempo não faz concessões e você pode um dia se arrepender por não ter tido a coragem de tentar de novo. Vai lá, troca o não pelo sim. O ruim é não ter tentado. E se tiverem nascido um para o outro?" Vai ver, está aí o caminho da felicidade. E o medo quedará, rendido, diante da grandeza do amor. Quem sabe.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Nota do autor sobre o livro "Do amor e outras crônicas", com publicação prevista para dezembro


Este livro não tem a pretensão de constituir literatura, na rigorosa acepção da palavra. Antes pelo contrário. Reúne textos escritos, um a um, de uma "sentada", por isso, canhestros. Intencionalmente canhestros. Se alguma qualidade tem, que nem tudo que tornamos público há de ser sempre inútil e desnecessário, quem sabe resida aí a sua validade. É a revelação de percepções várias, subjetivas, nitidamente pessoais, e se, não-raro, parecem ter um tom professoral, de quem entende da matéria com que lida, o mais das vezes podem ser lidos como 'ficção', palavra que me ocorre e de que lanço mão um tanto inapropriadamente, na falta de outra que traduza com maior exatidão o que intenciono esclarecer nesta nota.

O tema central aqui focalizado, a paixão e o amor, não resulta, assim, de um 'especialista', mas de um curioso, que procura, sem encontrar, a explicação possível para o mistério dessa experiência a um tempo realizadora e dolorosa do encontro com a outra parte do 'eu' incompleto de cada um. É isso que defino por relacionamento, sobremaneira o relacionamento amoroso. Como leitor, sempre me fascinaram os escritores mais verticais, que se dedicaram ao mergulho desafiador nas águas do que existe de mais profundo no homem. Refiro-me a canônicos, a exemplo de Proust e Dostoiévski, sem desprezar outros tais, menores, mas igualmente tentados a compreender as contradições que marcam a vida a dois. Do primeiro, a análise envolvente do amor e do ciúme através da relação de Charles Swann e Odette, para ficar num exemplo, na segunda parte do livro-monumento que é Em busca do tempo perdido. Do segundo, a criação de tipos psiquiátricos pelos quais explora a possibilidade da 'iluminação', como em Crime e castigo e O idiota. Mas é o olhar atento para a vida dos apaixonados, entre os quais me incluo com compreensível destaque, o outro instrumento com que teço os meus escritos já assumidamente canhestros, aos quais me recuso oferecer o direito ao retoque, à correção de qualquer ordem.

Que complexa matéria são os relacionamentos, os mais íntimos, os amorosos, que constituem o ingrediente seminal dessas despretensiosas crônicas. Exceção parece não existir: durante algum tempo são perfeitos e proporcionam aos amantes a enganosa impressão da mais completa felicidade. Com o passar do tempo vão deslizando para a 'realidade', transformando-se numa relação de amor e ódio. O segredo para torná-los consistentes e duradouros, com a voz de quem é apenas um curioso, um observador atento, talvez esteja em saber dosar as polaridades com que são construídos, a dimensão física e psicológica que estabelece a necessidade do outro para nos sentirmos completos. E na percepção de que todos somos imperfeitos. A utópica perfeição, quase nunca alcançada, vai ver, está no enamoramento de duas imperfeições. Assim como as diferenças do yan e do ying, de que nos fala a sabedoria chinesa. Quando isso não ocorre, estamos fartos de saber, o fim é inevitável. Este livro, para concluir, tem a coragem de discutir por que isso acontece, e o que deixa na contramão da felicidade aparente de cada começo: a dor e o sofrimento. Sem esquecer, contudo, de olhar para a transitoriedade dessa experiência amarga e afirmar que, depois de cada 'fracasso', a vida surpreende com novos milagres do encontro. Que seja agradável já é em si um desenho de que terá valido a pena passar-lhe às mãos esta coletânea, leitor.


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A vida é coisa delicada

Acho, se não me prega a memória uma peça, que foi Montaigne quem disse: - "A vida é coisa delicada e fácil de se perturbar." Dúvida à parte, sobre estar nos ensaios do pensador, é uma máxima que me ocorre desde a conversa que tive ontem com uma amiga. O tema do happy hour era de um barroquismo chato para a hora das conversas amenas, das anedotas que nos fazem querer levá-las adiante, de tão boas, do atualizar da agenda. Mas, esta fuga de propósitos é comum quando, à mesa, sentam-se amantes das reflexões. Gente que escreve, que gosta de cinema, de poesia e que vive a dimensão lúdica e prazerosa dessas experiências.

É claro que falávamos das mudanças bruscas por que, aqui e além, todos temos de passar. Penso que essa é sempre uma circunstância difícil porque temos uma tendência irrefreável para idealizar os momentos e as pessoas com quem nos envolvemos. Quando tocam de forma tão acariciadora em lugarzinhos tenros da alma, nós os queremos para sempre. No amor é assim. Quando estamos apaixonados e dividimos com alguém o milagre da felicidade, da alegria do estar juntos, esquecemo-nos de que o amor-menino vai crescer, envelhecer e morrer um dia. Não raro, de golpe, sem aviso prévio, como começou. Quase sempre, entre soluços e, como disse Gullar em crônica antológica sobre o tema, "querendo e não querendo que acabe."

E, no entanto, doeria tão menos se soubéssemos viver um dia de cada vez, sem projetos sonhadores, sem expectativas invariavelmente otimistas nas relações... Não necessariamente deixando de crer, romanticamente, na possibilidade enganosa do 'até-que-a-morte-nos-separe', mas nos empenhando em não permitir que o dia, assim, no singular, passe inutilmente. Explorando, com a máxima intensidade de que somos capazes, o que existe de incomunicável naquele instante, quando os corações enamorados veem a beleza nas coisas mais banais. O por do sol onde quer que estejam os corpos unidos, as mãos cruzadas. Falo do filme na sessão da tarde, do chope no barzinho simples em que resolvemos saciar a sede, das gargalhadas quando a chuvinha fina nos surpreendeu e tornou transparente a camiseta dela. Falo do beijo inesperado, da transa rapidinha nos lugares mais inusitados. Falo da furada no trabalho para que pudéssemos estar juntos, do chocolate mordido a dois etc. Num sortilégio do inconsciente, acho que reproduzo sem intenção algo parecido com o que li certa vez num texto de Paulo Mendes Campos, Quando o amor acaba.

Mas não. Por uma questão cultural ou algo que o valha, como a compreensível utopia dos apaixonados, nunca nos lembramos de que o amor-menino, de que falei há pouco, vai crescer, envelhecer, perder o encanto, morrer. Como todas as coisas da vida 'delicada e fácil de se perturbar'. Nunca nos lembramos de que o sonho vai se tornar rotina, a necessidade do supermercado, os meninos no colégio, as incompatibilidades que estavam silenciadas, sufocadas na subjetividade de cada um. Nunca nos lembramos de que a realidade ensombreada pela paixão ressurgirá um dia, de repente, não mais que de repente, como imortalizou o poeta, ou lentamente, traiçoeira como o ladrão da madrugada.

E aí, o que poderia ser apenas uma leve saudade ou uma recordação alegre, corta rente na carne, anunciando a difícil travessia. Por isso, por um tempo sem tamanho, é tão doída a volta às coisas comuns da vida real, por momentos esquecida. O trabalho, o burburinho irritante da rua, o ir-e-vir do cotidiano, a máquina de lavar, as compras por fazer, a porção única no microondas, a monotonia de cada manhã, de cada entardecer. E tudo poderia ser tão mais fácil, se antevíssemos que tudo terá um fim, que o para sempre quase nunca é para sempre.

Lembrando Medeiros, no amor, "já que não podemos evitar o final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações."

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A bela lição de Antonia

No Brasil o filme foi exibido com o título A excêntrica família de Antonia, mas no original é apenas Antonia, uma verdadeira obra-prima do cinema. Não o vi à época no circuito comercial, mas só agora, em DVD, presente de um aluno. Havia anos não ficava impressionado com uma obra a um tempo tão despojada e tão profunda. Foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1995, para não falar de incontáveis outros prêmios mundo afora. Produção holandesa, é assinado e dirigido por Marleen Gorris, cuja concepção cinematográfica fez-me lembrar os filmes de Eric Rohmer, guardadas as características extremamente originais de um e outro.

Situa-se historicamente no final da Segunda Guerra Mundial, e está ambientado numa pequena cidade do interior da Holanda. Uma mulher, que exemplifica à perfeição aquilo que só se encontra nas grandes mulheres, em inícios do que se convencionou atualmente chamar de terceira idade, decide voltar à província em que nascera para começar uma vida nova, ladeada por Danielle, a filha adolescente. É o começo de uma história comovente e sedutora de cinco gerações, da família excêntrica de Antonia e, por extensão, de uma comunidade marcada por injunções aqui grotescas, extremamente poéticas acolá.

O filme traz a lição que raramente as pessoas conseguem aprender, eu para ficar num exemplo 'clássico': a Beleza, assim, em maiúsculas, como no campo da Estética, lembrando de Platão, Plotino, Kant e outros teóricos que se completam ou se excluem, está nas coisas mais simples e na força das emoções menos elaboradas. Uma verdadeira declaração de amor aos prazeres 'banais', aos olhos de uma sociedade como a nossa, que tem uma incontida vocação para buscar a felicidade no artifício e na 'forçação de barra', longe da paciência e do sossego que são a energia que movem, Antonia à frente, as personagens desse filme encantador.

Se me recorda o diretor de Conto de inverno, a quem me referi acima, nada pelo roteiro, despojado e assustadoramente simples, o filme holandês desconserta e reedita Eric Rohmer pela competente construção dos tipos humanos que movem a ação da obra. Assim como no elegante romântico da nouvelle vague francesa, em Antonia deparamos com personagens densos e profundos, cujas trajetórias vão constituindo ritmadamente ensinamentos de que a vida se constrói a cada dia, sem os projetos visionários com que pensamos o futuro e delineamos os nossos sonhos. Num tempo em que estamos condicionados a antever o amanhã, que quase sempre se frustra, seres imperfeitos que somos, a narratologia de Antonia é como um despertar. De que vale planejar no escuro do abismo de nossas vidas, se o belo do agora vai sendo esquecido em função dos tantos planos. As paixões de Antonia são tecidas com os fios da simplicidade, ainda que a memória guarde registros inapagáveis de um passado que, sabiamente, o tempo recolocou em seu devido lugar.

É consenso entre os amantes da grande arte, que, a cada contemplação do Belo artístico, a leitura de um livro ou a assistência de um filme, como no caso, a vida se transforma em nós, dá maior densidade aos nossos valores (quando positivos) e remodela-os, quando defeituosos. Para não me estender na avaliação estética da obra, sinto-me inclinado a afirmar que A excêntrica família de Antonia ainda salienta-se pela percepção de que a grandeza de uma obra reside mais na verticalidade com que analisa o comportamento humano, o que não significa negar a importância do enredo. No que, também, com a poesia de um amanhecer, Marleen Gorris fez a tessitura desse filme exemplar.

- " No próximo Natal estaremos juntos!", - " A viagem de outubro a Paris vai ser inesquecível!", - "Em janeiro voltaremos a esta praia, com as crianças!", - "Compraremos um apartamento maior no ano que vem!", essas e outras afirmações do gênero, se nos fascinam enquanto construção de sonhos, não-raro nascem condenadas ao fracasso e à frustração. Antonia ensina-nos que devemos viver intensamente o presente, agradecendo ardentemente o milagre de cada amanhecer, retirando a beleza das coisas mais simples do hoje. Como na máxima popular, 'o futuro a Deus pertence'. E nem sempre é o melhor que nos aguarda. Sem pessimismo, mas embriagado dessa generosa lição de Antonia. A felicidade pode vir, nós é que dificultamos a sua chegada.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O fogo passageiro da paixão

Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para o jovem Totó uma singela estória de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor. Mas a princesa pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não. Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, a qualquer momento, apareceria no balcão do palácio. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, à fome e à sede. Espera heroicamente, contando os dias que passam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse, o soldado abandona o posto e parte. Prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada pudesse surgir no centésimo dia. Antes a dúvida que a desilusão. Que bela cena sobre a utopia da paixão.

Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta a sua caixa de e-mail, mas o bilhete não está lá. Ele olha a cada minuto para o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não vem. E os dias vão passando sem a novidade tão esperada. Como na estória do soldado no belo filme de Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida de todo ou toda amante, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia, enfrentar a realidade e a dor do sentimento não correspondido ou sair em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia do esquecimento, a necessidade insuportável de apagar da cabeça o que insiste em ficar no coração?

Para Nietzsche, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo do sofrimento e da dor. Em parte fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E invariavelmente, cedo ou tarde, tem. A felicidade vem, silenciosa e sorrateira. Fugaz.

Um dia, como disse em crônica intitulada O Ciclo vicioso da paixão, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre. O jeito charmoso com que ela atravessa a rua. A elegância com que ele se veste. A forma como ela atende o telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom. A textura da pele, a penugem dourada do bumbum dela, quando, displicente na areia da praia, passa o protetor. Os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol. A voz ligeiramente rouca com que ela se dirigiu ao garçom. A sensibilidade dele, o jeito como ela movimenta as mãos. E, sem avisar ou pedir licença, o coração vai batucar, os olhos brilhar. O fogo passageiro da paixão.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sobre entrevista acerca do relacionamento amoroso

O que seria apenas a divulgação de trechos de uma entrevista despretensiosa, neste espaço, acabou suscitando opiniões declaradas de alguns leitores, leitoras, para ser mais preciso. Como essas opiniões foram-me enviadas por e-mail, numa evidência de que suas autoras supostamente não queriam torná-las públicas, num gesto de elegância ou pretensão de preservar sua intimidade, reservo-me o direito de comentá-las sem identificar sua autoria.

A primeira quer saber: - "Você bateu a cabeça ou mudou de opinião sobre a infidelidade?" Não, querida leitora, não bati a cabeça nem mudei de opinião sobre o que quer que seja, muito embora lembre aqui do chavão de que "só não muda de opinião quem não as tem." Sobre o tema faço a mesma leitura de sempre e, não é muito observar, tão-somente reproduzo na entrevista o que tornara público havia tempos na coluna que escrevo semanalmente para o jornal A Praça. A crônica intitula-se Quando o desejo acaba. Uma referência aos relacionamentos que, mesmo falidos, são mantidos por um tipo qualquer de dependência, financeira ou pela conveniência de criar 'juntos' os filhos, quando existem. Se considero a palavra infidelidade, nesses casos, dura ou pesada demais, longe estou de fazer a sua apologia, como entende a leitora.

A segunda indaga sobre o que penso dos "relacionamentos abertos", uma tendência típica da modernidade que não pode ser apreciada na perspectiva do modelo de relacionamento que me pareceu ser o objeto da entrevista no contexto de sua 'encomenda', um trabalho de faculdade que tinha por intenção pesquisar sobre como homens e mulheres da cidade pensam a vida a dois na atualidade. Não se trata, pois, da forma como se deve encarar a vida sexual de cada um, que, como a expressão deixa a ver, é uma questão de cada um.

Uma outra tem uma curiosidade mais rebuscada, digamos, e pergunta por que cito tanto naquilo que escrevo o cineasta Ingmar Bergman, notadamente o filme Cenas de um casamento. Em princípio, leitora, pelo fato de que a tessitura da obra aplicava-se à perfeição ao contexto da entrevista, uma vez que a película explora em profundidade o drama que vivem os casais quando o relacionamento faz a dolorosa curvatura da falência. Se não viu o filme, recomendo, pois se trata de um exemplo irrepreensível de reflexão sobre o amor. Mas, embora esse me pareça o filme mais consistente do cineasta sueco, se for o caso, não deixe de ver Gritos e sussurros, de inícios da década de setenta. Como é recorrente em Bergman, por sinal, é estrelado por Erland Josephson e Liv Ullmann, os mesmos de Cenas de um casamento.

O fato é que, não sendo nenhum bom conhecedor de cinema, nutro uma admiração incontida pelo conjunto da obra de Bergman. São filmes dolorosos, que trazem um já reconhecido componente autobiográfico do cineasta, um homem visceralmente marcado por um sofrimento pessoal assumido e jamais superado. Impossível, contudo, não fazer alusão a pelo menos duas outras grandes realizações deste artista genial. Gosto muito, particularmente, de Persona, cujo título no Brasil, se não me falha a memória, é Quando duas mulheres pecam, e de um filme mais recente, Infiel, de inícios desta década, com a direção competente de Ullmann a partir de um roteiro de Bergman. Uma obra, enfim, que me impressiona demais, pela densidade dramática e pela compreensão tão vertical da complexidade da alma humana, sobretudo no que respeita aos relacionamentos.

Às três, indistintamente, agradeço o privilégio que é tê-las como leitoras.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Entrevista

Final de tarde, sou cercado por um grupo de alunas de Psicologia que me pedem uma entrevista para um trabalho da faculdade. Como não raro isso ocorre, penso tratar-se de uma entrevista sobre literatura, um Machado de Assis, um Drummond, um Ibsen etc. Que nada, querem que eu fale sobre relacionamentos hoje. - "Há um engano, o professor deve ser outro!", digo-lhes. - "Não, é com o senhor mesmo. Não é o prof. Álder Teixeira?". Uma das integrantes da equipe se diz frequentadora do meu blog e sugeriu o meu nome para falar sobre o tema. Aceito o desafio e as convido a virem ao meu edifício, onde as recebo no hall de entrada para a entrevista que segue. Presentearam-me com uma 'cópia' do texto final.

Alunas - Como você vê os relacionamentos hoje?
Álder - Vejo-os, hoje, mais desafiadores. As mulheres estão mais independentes, mais conscientes de que num relacionamento ninguém é dono da situação. Ocuparam o seu espaço, foram além disso e os homens, via de regra, não estão sabendo lidar equilibradamente com isso. Desse descompasso, quero crer, nascem os primeiros conflitos, que, mal resolvidos, terminam por gerar as grandes crises, o que quase sempre leva aos rompimentos. Mas não há só o lado negativo, felizmente. Essas conquistas da mulher, se bem compreendidas pelos homens, são decisivas para o fortalecimento de relações mais sólidas, também. Quando isso ocorre, o casal vive melhor e mais intensamente o relacionamento e ele tende a ser mais feliz e duradouro.
Alunas - Não acha que os relacionamentos, com esse formato, tendem a desaparecer?
Álder - Não sou tão pessimista quanto a isso. Talvez seja admissível considerar-se que o casamento tende a desaparecer, com esse 'formato' a que você se refere, e que não sei bem o que significa (risos). Os relacionamentos, não. Eles fazem parte da vida de homens e mulheres e continuam sendo um objetivo quase indispensável para a felicidade plena. Discordo daqueles que afirmam que as pessoas podem ser completamente felizes vivendo solitariamente.
Alunas - Não é melhor ser feliz sozinho que infeliz ao lado de alguém?
Álder - Esse me parece ser outro caso. Não falo que se devam manter os relacionamentos infelizes pelo simples medo da solidão. A solidão às vezes é necessária e saudável. Mas o relacionamento não deixa de ser uma meta. Não é 'o relacionamento' que leva à infelicidade, mas a forma como o casal conduz a sua realidade, sabendo lidar com os momentos difíceis, com as idiossincrasias, as diferenças, nunca esquecendo que o relacionamento não significa a morte das individualidades nele envolvidas.
Alunas - Posso fazer uma pergunta mais pessoal? Ou serei indelicada?
Álder - Sinta-se à vontade, mesmo que me diga respeito, como concluo.
Alunas - Você casou duas vezes, soube através de uma colega... viu no blog, não sei. Por que seus relacionamentos não deram certo?
Álder - Não pensei que esse assunto pudesse ajudar em alguma coisa para o trabalho de vocês. Mas vou responder, sim. Os meus casamentos deram muito certo. Guardo (e minhas ex-companheiras, por certo) as melhores recordações. Sou muito seletivo no que diz respeito a relacionamentos, razão por que não os tive em grande número. Mas, esteja certa, foram grandes relacionamentos. Costumo dizer que tive poucas paixões, mas todas muito intensas, sinceras, realizadoras. Um relacionamento nunca é feliz pelo simples fato de ter sido infinito. Lembro-me de Vinicius: "Que seja eterno enquanto dure!" (risos).
Alunas - Acredita no amor, quando hoje em dia as pessoas 'ficam' aqui e acolá. Mudam de parceiros, parceiras...
Álder - Isso é próprio de uma fase da vida, talvez da fase que algumas de vocês estão vivendo. Mas, com o passar do tempo, com o amadurecimento, os sentimentos vão sendo melhor trabalhados, as emoções deixam de ser a busca do improvável em favor do encontro das almas. Perdoem-me se lhes falo com essa linguagem tão antiquada, mas é assim que compreendo o bom relacionamento. Ele ainda existe e você haverá de descobri-lo em algum momento de sua vida, ainda jovem e entusiasmada com a beleza das coisas, com o milagre da vida! Por isso, acredito no amor e não vejo mudanças de comportamento que possam minimamente feri-lo. Sem amor, não há vida, portanto, não haverá relacionamentos, porque o individualismo terá imperado entre os homens. É como se fosse possível o surgimento de um mundo de solitários e infelizes.
Alunas - Mas os relacionamentos, hoje, terminam muito cedo...
Álder - É verdade. Isto faz parte de um mundo intolerante. Nos relacionamentos, a meu ver, tem faltado tolerância. Não há final de relacionamento que se dê por decisão rigorosamente equilibrada das duas partes, o que não haveria de ferir este bem precioso que chamo de tolerância. Há sempre uma iniciativa unilateral, porque alguém deixou de tolerar alguma coisa do outro. Por isso não há separação sem sofrimento; por isso quase sempre a amizade depois dos rompimentos torna-se difícil, pelo menos enquanto durar o sentimento que um dia levou ao encontro, à expectativa tão frequentemente frustrada de que "nascemos um para o outro." Ou porque de fato não existia amor, mas uma atração que, na falta de outra expressão, poderíamos chamar de paixão. Nas mulheres isso é mais comum: apaixonam-se perdidamente, mas esse sentimento não tem profundidade, prende-se há alguns fatores, como a carência, por exemplo.
Alunas - Discordo. Acho que o homem é muito mais volúvel...
Álder - Não disponho de elementos concretos, estatísticos, resultantes de uma pesquisa ou algo que o valha. Falo pelo meu senso de observação, pela minha percepção de como os relacionamentos começam e terminam hoje. Esta a razão por que considero o sentimento de amor mais intenso, mais enraizado no homem. Talvez por isso a mulher tenha uma capacidade de superação maior, quando o relacionamento termina. O homem tende a 'ruminar' por mais tempo. Numa sociedade, numa cultura em que não se aceita bem que o homem sofra por amor, porque isso não condiz com os valores machistas com que normalmente foi educado, a coisa torna-se ainda mais complicada. Ele interioriza a dor, esconde o machucado e o problema supostamente vai se prolongar por um tempo muito maior.
Alunas - Há segredos para o sucesso do relacionamento?
Álder - Se houvesse e eu os conhecesse não lhe daria, mas venderia caro (risos). Mas acho que existem atitudes, alguns substantivos que de certo modo equivalem ao que você chama de segredo. Aliás, escrevi uma crônica em que cito a fala de uma personagem de "Cenas de um casamento", de Bergman, um cineasta que adoro. A personagem é perguntada, também numa entrevista, sobre o sucesso do seu casamento, ao que ela responde mais ou menos assim: se há compreensão, cumplicidade, respeito, planos sensatos, admiração, o amor não é necessário.
Alunas - O sexo pesa nisso?
Álder - Evidente. O sexo é a coroação de todos esse elementos que unem o casal, que torna sua vida uma experiência agradável, prazerosa. O sexo é a revelação mais íntima da individualidade, por isso é sempre vazio quando a entrega não se dá por força dos sentimentos que envolvem as pessoas, isso a que chamamos de relacionamento.
Alunas - Professor, queremos agradecer pela entrevista.
Álder - Mas outros homens, outras pessoas serão também ouvidas no trabalho, não?
Alunas - Sim. Queremos tirar conclusões sobre como as pessoas veem o relacionamento hoje. A propósito, uma última pergunta. Como você vê a infidelidade.
Álder - Ih, amiga. Agora você tocou numa questão delicadíssima na perspectiva do relacionamento. Não compactuo com a ideia de que a infidelidade possa ser algo positivo para o restabelecimento de qualquer relação. Estou sendo sincero, embora nunca crônica pareça dizer o contrário. Lá, no texto, refiro-me aos relacionamentos que, embora falidos em sua essência, quando o desejo acaba, são mantidos por algum tipo de dependência. Nesses casos, afirmo, cedo ou tarde a infidelidade acontecerá. E considero a palavra demasiado forte, pesada para definir o que é apenas a busca de um prazer, de uma realização, que já não é possível em casa.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O morcego

"Meia-noite. Ao meu quarto me recolho./Meu Deus! E este morcego. E, agora, vede:/Na bruta ardência orgânica da sede./Morde-me a goela ígneo e escaldante molho./"Vou mandar levantar outra parede..."/- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho./E olho o teto. E vejo-o igualmente a um olho/Circularmente sobre a nossa rede!/Pego de um pau. Esforços faço. Chego/A tocá-lo. Minha alma se concentra./Que ventre produziu tão feio parto?!/A consciência humana é este morcego!/Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/Imperceptivelmente em nosso quarto!

Não sou amante da obra de Augusto dos Anjos, muito embora, intelectualmente, reconheça a inquestionável qualidade de sua poesia. Não me agrada o negativismo com que vê a realidade humana, sua descrença na bondade originária dos homens. Vai na contramão do que nos professou com tanta sabedoria o iluminista Rousseau, no belo entendimento de que o homem nasce bom e a sociedade o perverte. Os tempos modernos, contudo, com a sua competitividade desenfreada, a sua inversão de valores, favorece a validação do pessimismo augustiano, o que ainda não é bastante para me fazer descrer das pessoas, em todos os sentidos, inclusive no campo das amizades e dos relacionamentos amorosos.

Aqui e além, no entanto, vamos dando demonstração de nossa vocação para tirar algum proveito de certas circunstâncias de nossa vida. Não raro, transferimos para o outro a responsabilidade de nossas ações, procuramos dar sentido às nossas decisões, projetamos nossas fragilidades e lançamos mão de pretextos para justificar o que, em essência, é injustificável. É aí, por certo, que me ocorre pensar eventualmente no que o poeta paraibano chama de "o morcego", numa feliz metáfora para definir a consciência humana. Se somos capazes de revelar nossos segredos para o melhor amigo ou amiga, num canto de sala ou num toalete de barzinho, nessas experiências de cumplicidade que vão tornando inconfessáveis certas passagens de nossa caminhada, na solidão do recolhimento há sempre o travesseiro a esperar o despontar de nossa consciência. E por mais que façamos, ela entra em nosso quarto, como o morcego amedrontador do poema de Augusto dos Anjos.

domingo, 4 de outubro de 2009

Jamais vou esquecer

Meu filho e eu somos antes de tudo grandes amigos. Apenas uma vez, repreendi-o com mais veemência. Caminhávamos na praia, linda manhã de sol, quando alguém pôs na pauta das conversas amenas o tema da violência. Meu filho, que é uma unanimidade entre os que o conhecem, pela ternura que é mesmo a maior marca do rapaz inteligente e cativante que é, faz uma afirmação em nada condizente com a generosidade do seu coração singular, e de tudo o que tenho ouvido desde ele quase menino: - "Bandido morto é um bandido a menos." Havia sido assaltado a mãos armadas, ameaçaram-no de matar, quase o fizeram, quando, no nervosismo das circunstâncias, encontrara dificuldades para tirar o cinto de segurança: - "Vai morrer, está demorando muito!", dissera-lhe um dos assaltantes, o revólver no ouvido. O desfecho, felizmente, não foi este. Levaram-lhe o carro, todos os pertences, chamaram-no de 'vagabundo'. Meu filho tem 21 anos e vai para o terceiro ano do curso de medicina. Destaca-se entre os colegas, pelas notas e pelo desempenho geral como acadêmico de um curso prestigiado, para cujo ingresso tivera de 'vencer' tantos concorrentes. Mas, nas circunstâncias aqui referidas, era apenas "um vagabundo". Repreendi-o, como disse: - "Filho, que está dizendo? E Deus, por que não está no seu coração neste instante?" Fui áspero com o meu filho, pela primeira vez.

Há poucos dias, mal começava a manhã, saía para o trabalho e presenciei uma cena que ainda repercute em mim. A poucos metros de onde me encontrava, por ambas as portas da frente, um carro de luxo era abordado por dois assaltantes. Não tive tempo, sequer, para acompanhar os detalhes de como as coisas se davam naquele instante. Apenas ouvi estampidos, dois, três, não sei dizer com precisão. Mas os tiros, na contramão do que pressupõe o leitor, vinham de dentro para fora do carro. O segurança do proprietário daquele carro elegante, atirara com uma precisão dos clássicos dos policiais americanos. E vi, a poucos passos de onde me achava, que um dos assaltantes correra com a rapidez de um velocista olímpico. Com a agilidade de um atleta de corrida com obstáculos, saltava tudo o que encontrava pela frente. Em segundos, desapareceu, tal qual um mágico de circo.

Só então pude ver, em estertores que levaram não mais que cinco, dez segundos, que um dos rapazes, quase adolescente, fechava em sangue e gemidos o livro da sua história. Na quase meninice dos seus dezenove anos, afirmariam os jornais na manhã seguinte ser esta a sua idade, morria com o abandono de um solitário, com a insignificância de um ser absolutamente desprezível para uma sociedade indiferente e fria, que não percebe o abismo de diferenças que separa a vida da morte. Lembrei do assalto de que fora vítima meu filho, lembrei do drama que vivera naquele instante, lembrei da dor incomunicável que teria de carregar se tivesse demorado um pouco mais para liberar o cinto de segurança do seu carro. Pensei, em segundos que me pareciam a eternidade, a aflição por que tivéramos de passar havia poucos dias.

Mas, já a caminho do trabalho, não conseguia deixar de pensar no que tivera de presenciar naquela manhã de sol, tão bonita como todas as manhãs desses meses de sol em Fortaleza. Havia em mim, num tipo de obsessão que me doía por dentro, perguntas que não se permitiam calar. Ali, na gratuidade de um instante, morrera um jovem de dezenove anos. Qual a realidade de sua existência em casa, se casa tivesse? Que educação recebera dos pais, se os tinha? Como fora a sua infância, com que brinquedos pudera brincar? Em que escola estudara, se houvera para ele uma escola? Meu filho, vai iniciar o terceiro ano de faculdade, estou certo de que será um grande médico. Mora bem, possui seu automóvel, veste roupas de griffe, namora uma moça linda, que também estuda para ser médica em pouco tempo. E aquele quase menino que morrera a poucos passos de mim? Por que o fado reservara-lhe o protagonismo de uma cena tão dramática, tão trágica, tão triste, de que jamais vou esquecer?





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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O que é o Amor?

Durante happy hour, amigos conversamos sobre cinema e um deles levanta a questão: - "Que cena do cinema lhes é inesquecível?" Cito uma cena de Cinema Paradiso que me leva às lágrimas. Alguém cita a cena de despedida, no aeroporto, em Casablanca. Um outro, desconcerta-nos ao lembrar o encontro de Dean Stanton e Nastassja Kinski em Paris, Texas. Mas, curiosamente, lembram de Love Story, um filme xaroposo que conquistou a todos nós em tempos remotos. Citam a cena em que Ali McGraw diz para Ryan O'Neal: - "Amar é ter jamais que pedir perdão!" A conversa toma agora um outro rumo. Discute-se o complexo tema do perdão. Na perspectiva do amor, claro, como contextualiza o filme de Arthur Hiller.

Polemista, considero a fala uma compreensão ingênua e bem-comportada do amor, bem condizente com o clássico adolescente dos anos 70. Acho que o amor vai mudando com as mudanças que os tempos nos impõe. O amor que não recebe e não dá o perdão não é amor. É paixão linear, apolínea, demasiado plana para ser considerada amor. O amor é ciclotímico, esférico, dionisíaco. O amor é o irmão da loucura, como quis Drummond. Por isso amar, tal como compreendo hoje o amor, é ter sempre que dar e pedir o perdão. Se não há perdão e a necessidade de sua existência, aqui e além, é que outra coisa é, foi, será. Jamais o amor, com seu barroquismo, suas contradições, com a dialética milagrosa que leva à síntese do verdadeiro encontro.

A Filosofia, desde que passou a ser uma forma de interpretação racional da realidade, oferece-nos diferentes conceitos do amor, razão por que atenho-me a pensar o amor numa perspectiva menos idealizada, menos cristã. Para Platão, não é muito lembrar, o amor (ou paixão, se assim preferirmos) era uma enfermidade do coração. O amor Eros, que é o desejo, que leva o amante a cometer equívocos, a desejar a maravilha de uma quase posse do objeto amado: - "Quero tê-la perto, quero protegê-la, quero cuidá-la." Daí advém o ciúme, que muitas vezes, na ânsia da proteção, resulta no conflito. Eis a necessidade do perdão.

A conversa enche-se de entusiasmo, acalora-se, afloram as 'convicções' mais enraizadas da subjetividade de cada um. E num exercício um tanto excêntrico do filosofar, deslizamos para a definição de um dos mais desafiadores temas, que é o perdão. Um amigo defende que perdoar é esquecer, é apagar aquilo que de alguma forma nos feriu ou feriu ao outro. Novamente discordo. Agarro-me à Hannah Arendt: - "O perdão não é sinônimo de esquecimento. O perdão é a lembrança." Não merece perdão aquilo de que somos capazes de esquecer. Terá sido 'beicinho', jogo passional, um tipo de charme ardiloso. O perdão é necessário para aquilo que, permanecendo vivo na memória, cicatriza pela força do amor, pelo desejo da reconciliação.

E tentamos, esses contendores do bom combate, dar espaço às amenidades, mais propícias, talvez, para o fim da boa hora, quando os telefonemas das mulheres formalizam a irrecusável convocação. Não sem antes, quando chega a 'saideira', lembrar a antológica fala de Liv Ulmann, em Cenas de um Casamento: - "... ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas se quiser uma descrição detalhada, vá à Bíblia. Lá Paulo descreve o amor. Se Paulo estiver certo sobre o que é o amor, acho que ninguém o vivencia. Mas em discursos de casamento e outras situações sociais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário." Antes de nos despedirmos, reconsidero a minha cena inesquecível. Está em Bergman.



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