segunda-feira, 26 de março de 2012

O Brasil mais pobre e triste

O Brasil começou a semana mais pobre e mais triste. Morreram Chico Anysio, com o verbo assim no plural, porque com ele morreram mais de duzentos outros brasileiros que aprendemos a amar: Azambuja, Tavares, Alberto Roberto, Bozó, Salomé, Bento Carneiro e o seu alterego, professor Raimundo, para ficar nos que me ocorrem no momento em que produzo esta crônica. Morreram porque não existe no Brasil (e nunca mais existirá) comediante capaz de 'fazê-los' como Chico fez. Nenhum, no Brasil de hoje e de amanhã.

Chico Anysio não foi apenas o maior comediante da nossa tevê. Chico Anysio foi o maior de todos os atores que tivemos em todos os tempos. Numa palavra: Chico Anysio foi o único gênio da televisão brasileira. Chico Anysio foi o nosso Charlie Chaplin, porque só no artista inglês encontro um paralelo que faça justiça a Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho. E não vou falar nos quase trinta livros que escreveu, nem nas centenas de telas que pintou. Quero falar do ator, porque Chico foi, como poucos no mundo, um ator excepcional, sublime.

Lido com o teatro, conheço alguma coisa de cinema, atuei como intérprete em palcos, e estudo, por dever de ofício, os procedimentos técnicos que podem levar um homem ou uma mulher a ser convincente na pele de uma personagem. Mas ainda fico boquiaberto diante do talento de Chico como intérprete. De um filme a outro, falemos de Laurence Olivier ou de Kenneth Branagh, impossível não haver um traço que lembre um personagem e outro. Há sempre uma forma de andar, um tom de voz, um esboço de sorriso, uma expressão de dor, um vício gestual que nos causam certo estranhamento, que nos fazem lembrar do ator que está por dentro da personagem. Em Chico, não. Ele era duzentos, duzentos e dez.

Elaborava com tal perfeição as suas personagens, que nos fazia esquecer que ali estava um ator atuando. Na arte de Chico Anysio não havia ilusão de realidade: na hora e meia, duas horas de duração dos seus programas de humor, a diegese dramática (o mundo da ficção), como que numa coisa dos deuses, era realidade. Isso, no entanto, não o impedia de transitar de Stanislávski a Brecht num piscar de olhos, a exemplo do que fazia ao encerrar o quadro da escolinha com o impagável bordão: - "E o salário, ó!" Na sua técnica de interpretar, que ultrapassa os limites do mero rigor estético, havia algo de intraduzível com palavras: não eram as perucas, o figurino, os adereços de composição da personagem. Não eram apenas as vozes (que sabia criar à perfeição), os trejeitos, as diferentes formas de olhar. Era a alma mesma da personagem que Chico Anysio sabia compor como mais ninguém.

Por conta dessa genialidade, dessa capacidade incomparável de "outrar-se", acho mesmo que não é no teatro nem no cinema que vamos encontrar um gênio para cotejar com Chico, a fim de verificar diferenças e semelhanças existentes. Penso que só na literatura haverá um fenômeno que se lhe compare. Falo de Fernando Pessoa, com os seus mais de cem heterônimos. Sim, as mesmas particularidades de individuação que vamos identificar em Alberto Caeiro, Ricardo Reys e Álvaro de Campos, personalidades artísticas tão dessemelhantes, que na poesia de Pessoa os tornavam únicos, vamos encontrar nos muitos seres criados por esse cearense esplêndido, que povoaram e vão povoar sempre o imaginário brasileiro. Morreram Chico, razão por que o Brasil ficou mais pobre e mais triste desde a última sexta-feira.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pra não dizer que falei de flores

Seria engraçado, não fosse revoltante.

Quem não sabe que os processos licitatórios foram, são e continuarão a ser essa maracutaia, esse cambalacho, essa falcatrua, essa marosca que a matéria da TV Globo vem divulgando desde o último domingo? Quem não sabe que denunciar ou não sempre foi a mesma coisa neste império da bandalheira e da impunidade? Quem nunca ouviu falar que as licitações sempre foram de araque, nas prefeituras, nos governos estaduais, nos ministérios? Quem nunca viu 'laranjas' -- envelope debaixo do braço --, adentrando as salas das repartições em que se dão esses processos com a maior cara de pau, como se dentro deles não conduzissem as cartas marcadas de um jogo sujo? Dos acordos, dos vinte por cento das 'comissões'? Quem nunca deparou com esses larápios sentados às mesas de restaurante, diante do melhor uísque, comemorando o êxito de suas tramoias e insídias? Gozando de nossas caras?

Tão vergonhoso e indigno quanto essas práticas delinquentes, banalizadas através dos tempos pela indiferença de uma Justiça, em parte, também corrupta, é ver o cabotinismo de algumas de nossas mais altas autoridades, juízes, deputados, senadores, posando de sérios e fingindo estupefação e revolta diante da matéria divulgada pela maior rede de televisão do país... Como se não soubessem que é essa a realidade dos bastidores da administração pública brasileira, em seus diferentes níveis, desde épocas remotas. Como se nunca tivessem, alguns deles, participado dessa pouca vergonha, desse roubo institucionalizado que só agora parece ganhar foro de coisa séria. Grande novidade!

Como faço todas as manhãs, sento diante do computador para bater os olhos nos principais jornais do país. Em todos, todos os dias, notícias de escândalos e escândalos, roubalheira de toda ordem, malversação do dinheiro público, quadrilhas de paletó e gravata agindo às claras, sem que se faça contra os seus atores nada além do teatro diante das câmeras, espetáculos logo esquecidos em face de liminares e outros instrumentos de amparo à indecência que campeia Brasil afora.

Em São Paulo, está na Folha, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, que iniciara investigação contra 70 juízes, diante das evidências é condicionada a ampliar o alcance de suas ações aos 354 desembagadores da corte e a um sem-número de juízes de primeira instância. Naquele Estado, um ex-presidente do Tribunal de Justiça, só entre 2008 e 2009, liberou para si próprio R$ 1,5 milhão quando presidente da instituição. Roberto Bellocchi (é como se chama), defendeu-se com uma emenda que lhe saiu pior que o soneto: - "Isso acontece em todo tribunal!" Excrescência.

E o mais duro é saber que a soma com que Bellocchi aumenta a sua renda, é café pequeno comparada aos parâmetros com que hoje se estipula o preço da indecência nas câmaras de vereadores, nas assembleias legislativas, nos tribunais...

Como afirmou uma das empresárias mostradas pela câmeras da Globo, "é a ética do mercado!" Vergonha.




terça-feira, 13 de março de 2012

Ainda sobre a Semana de 22

Braz de Almeida, cronista e bom intérprete da MPB, lê coluna sobre a Semana de Arte Moderna e discorre acerca da presença de Mário e Oswald de Andrade no modernismo brasileiro, para ele menos importante do que a de outros nomes da segunda e terceira fases. Polêmica à parte, considero consistentes algumas questões levantadas pelo leitor: de fato, a segunda fase do modernismo brasileiro representa um amadurecimento estético e crítico em face das questões centrais que nortearam os autores da fase inaugural. Nada, contudo, que justifique fechar os olhos para o que fizeram de significativo para a inteligência do país Mário e Oswald de Andrade.

Enquanto Mário foi, à época, o mais completo estudioso da brasilidade, ao lado de ter escrito algumas obras indispensáveis para o entendimento do caráter nacional brasileiro, Macunaíma à frente, Oswald de Andrade foi um intelectual transgressor, um Caetano Veloso do seu tempo, dono de uma verve crítica inquietante para um Brasil que dormia em berço esplêndido, entregue às importações artísticas raras vezes capazes de separar o joio do trigo. É rever os fatos que marcaram a vida de São Paulo na década de 20 e inícios de 30 para constatar: Oswald foi um intelectual delirante no sentido bom da palavra. Um revolucionário em termos estéticos e (como deixar de ver?) políticos, na medida em que pensou um Brasil atento às grandes transformações do mundo. Como, aliás, está emblematicamente registrado no último longa-metragem do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, à venda em qualquer boa livraria do país, em reedição extremamente bem cuidada.

Assim, quando o leitor exalta as fases posteriores do modernismo, referindo-se textualmente aos anos 40, terceira fase, portanto, comete, no meu humilde juízo, um equívoco. Em que pese ter entre os seus 'quadros' nomes sagrados, da estatura de um Guimarães Rosa, por exemplo, a terceira fase representou um recuo em relação às conquistas de 22 e 30. Essa geração constituiu em termos estéticos uma tentativa de retomada da literatura paletó-e-gravata que os dois Andrade haviam combatido com seus estilos transgressores e profundamente originais. Nesses termos, leitor, fazendo minhas as palavras de Mário, a Semana de Arte Moderna foi, antes de tudo, uma atualização do pensamento intelectual brasileiro e uma tomada de consciência dos avanços estéticos ocorridos na Europa, sem o que a nossa arte haveria de continuar pobre e acanhada. Nesse sentido, os dois escritores, a que você se referiu um tanto depreciativamente, são os grandes responsáveis pelo Brasil artístico de hoje, muito mais rico e expressivo nos campos da literatura, das artes plásticas e do cinema -- o mesmo, infelizmente, não se podendo dizer da música (o que temos de melhor!), que atravessa uma fase de pobreza jamais ocorrida entre nós.

A propósito, participando de um grupo de cinéfilos da mais alta qualidade, que tem como comandante o querido médico e amigo Cesar Lincoln, ouço de um profundo conhecedor da sétima arte comentário um tanto depreciativo ao cinema brasileiro. Discordo: temos um cinema de boa qualidade, e não me refiro aos blockbusters da atualidade, na linha de Cidade de Deus e Tropa de Elite, cujas produções os colocam em níveis mais hollywoodianos -- e os torna merecedores de análises mais identificadas com os padrões do 'grande cinema'. Falo do cinema novo e das produções de mesmo calibre, a exemplo do sublime São Bernardo, de Leon Hirsman, uma narrativa fílmica seca e sem artifícios tanto quanto o livro em que foi plasmado. Obra-prima com que fui presenteado, esta semana, pelo cineasta e crítico de cinema Regis Frota. Mas, sobre isso, volto a falar depois.


quinta-feira, 1 de março de 2012

O poder da simplicidade

À saída do cinema, uma amiga me aborda: - "Ainda prefere O Artista, depois desse show do Scorsese?" Tínhamos acabado de assistir ao belíssimo A invenção de Hugo Cabret, que, no dia seguinte, viria a ser premiado com cinco estatuetas do Oscar. Não titubeei. Sim, acho o filme de Michel Hazanavicius muito superior, o que não é o mesmo que fechar os olhos para a beleza cinematográfica dessa extraordinária homenagem a George Méliès. São filmes diferentes, embora tenham pontos comuns entre si. Aquele, mais elaborado enquanto linguagem, mais sofisticado em sua produção. Este, mais poético, mais sensível e mais bem construído dramaticamente falando. Duas pérolas.

Enquanto tomamos um café, ainda nos espaços do shopping, minha amiga, que tem um senso crítico bastante aguçado do ponto de vista estético, ainda comenta o filme de Scorsese: - "A fotografia, a música, o ritmo do filme é coisa de louco!" (sic), afirmava. De fato, mas continuo seduzido, perdidamente seduzido, pelo filme de Azanavicius. A propósito, retomo uma afirmação de José Wilker, durante a cerimônia de entrega do Oscar, que achei muito curiosa: "Os filmes vencedores [O Artista e Hugo Cabret] farão com que cineastas e produtores repensem a maneira de fazer filmes a partir de agora..." Bate.

Acho mesmo que é este o grande recado da Academia. O monumentalismo das últimas produções, a demasiada preocupação com os efeitos especiais, as 'viagens adolescentes' da maior parte dos realizadores, mesmo os muito talentosos, vinham roubando do cinema aquilo que lhe é próprio, ser uma arte do tempo e da sua articulação com o espaço através da imagem. O grande filme é aquele capaz de contar com simplicidade uma história, explorando as possibilidades de uma linguagem que traz em si o diálogo de muitas outras, pois o cinema, como quis Sergei Eisenstein, é de certo modo "as síntese de todas as artes." O requinte da produção do filme de Scorsese, atente-se, não tirou dele o que chamo aqui de simplicidade. Pelo contrário, a lógica da narrativa foi observada com um rigor estético poucas vezes alcançado nos últimos anos. Nesse aspecto, contudo, ainda uma vez é O Artista o exemplo mais completo, como fenômeno de significação artística e como expressão do "belo" desinteressado de que nos falou Kant.

Esteticismos à parte, os premiados deste ano, pela Academia, voltam-se para o passado e encontram nesse passado as raízes do que se pode fazer de melhor em termos cinematográficos. Os diretores parecem ceder, finalmente, ao que lhes parecia um impróprio convite, o retorno à ausência de complicação, ao natural e ao espontâneo, pois o grande filme (não importa se a tecnologia lhes colocou nas mãos as possibilidades que se conhecem hoje) é resultado da criteriosa articulação entre direção, roteiro, cinematografia. É isso que nos faz ir ao cinema e sair dele, como minha amiga e eu, absolutamente convencidos pela força e pelo sortilégio da arte de Martin Scorsese.