sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O sol e as trevas

Amanhã será um lindo dia/Da mais louca alegria/Que se possa imaginar//Amanhã, redobrada a força/Pra cima que não cessa/Há de vingar//Amanhã, mais nenhum mistério/Acima do ilusório/O astro rei vai brilhar//Amanhã, a luminosidade/Alheia a qualquer vontade/Há de imperar//Amanhã será toda a esperança/Por menor que pareça//O que existe é para festejar//Amanhã, apesar de hoje/Ser a estrada que surge/Pra se trilhar//Amanhã, mesmo que uns não queiram/Será de outros que esperam/Ver o dia raiar//Amanhã, ódios aplacados/Temores abrandados/Será pleno, será pleno.

Hoje, acordei com essa música do Guilherme Arantes a repercutir, insistentemente, em meus ouvidos. O inconsciente, de que nos falou Freud a inaugurar uma das mais belas ciências humanas? Não sei, mas o fato é que fui à vidraça do quarto olhar o dia a explodir esperança pelos longínquos do horizonte.

Amanhã, o Brasil tem a sua frente mais que uma eleição para presidente. Amanhã, cabe-nos decidir entre dois projetos de país, duas realidades para nós, para as pessoas que amamos e para o nosso povo.

De que lado estaremos? Do Brasil do ódio, do rancor sem cura, da desesperança, da hostilidade às diferenças, do desprezo pela liberdade, pelos povos indígenas, dos maus-tratos aos negros e às mulheres, da indiferença e do desdém para aqueles a quem falta ar nos pulmões na hora da agonia, do negacionismo e da omissão em face das milhares de pessoas às quais se negou a vacina que salva, a ciência que trabalha em favor da vida? De que lado estaremos?

Estaremos do lado dos que respeitam a vida e a dignificam pelo trabalho, pelo salário justo, pelo respeito aos diferentes, pelo altruísmo, que veem o amor maior que o gênero, dos que sabem a dor de perder o ente amado, dos que defendem o meio-ambiente, que sonham com um país menos desigual e mais livre, mais humano, com mais escolas, mais livros, mais universidades? De que lado estaremos?

Estaremos com Paulo Freire, que elevou o prestígio da educação brasileira a níveis impensáveis mundo afora, ou de Olavo de Carvalho, com seus métodos rasteiros e odientos de conduzir os ingênuos e os desavisados? Dos que constroem hospitais, ou dos que os invadem e os apedrejam? Dos que adoram armas, munições, ou dos que exaltam a importância dos livros e da educação? De que lado estaremos?

Dos que se engasgam de revolta ao deparar com pobres no aeroporto, no cinema, nos restaurantes? Ou dos que se emocionam com a formatura da filha do porteiro, da servidora doméstica, dos afrodescendentes, dos que sonham ser reconhecidos pelo que são como gente, não pelo que possuem, pelo tamanho da conta bancária, dos carrões, das mansões compradas a dinheiro vivo? De que lado estaremos?

Dos que se encantam e aprendem com as fábulas literárias, ou dos que se curvam às mentiras de acusações levianas, fúteis, inconfessáveis, a exemplo da ameaça comunista, do "kit gay" e da existência de um "enviado" que mente, bate, professa o ódio e a violência como forma de garantir seus privilégios e suas conveniências sórdidas? De que lado estaremos?

De Chico Buarque, Caetano Veloso, Sebastião Salgado, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, do técnico Tite, do meia Paulinho, Padre Júlio Lancellotti e do Papa Francisco, ou do goleiro Bruno, de Guilherme de Pádua, de Robinho, do sonegador Neymar e do seu conservadorismo interesseiro e vil? De que lado estaremos?

Dos que lutam por seus direitos, dos que compreendem o significado de um país livre e justo, mais igualitário, mais humano, mais sensível às coisas da poesia e da arte como um todo, ou dos que maldizem a democracia e a desvirtuam de forma criminosa, ao som de tiros e explosões de granadas? Dos que caluniam e ofendem, ou dos que pregam a paz, a tolerância, o amor? Dos que dividem, ou dos que só multiplicam? De que lado estaremos?

Como na canção de Guilherme Arantes, amanhã será outro dia e um novo sol vai brilhar.

Ou decidiremos em favor das trevas?

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Uma nação, um povo, um líder

Zoofilia

"Naquele tempo não tinha mulher como tem hoje".

Canibalismo

"Comeria um índio sem problema nenhum'.

Pedofilia

"... menininhas de 14 anos, bonitas, arrumadinhas. Pintou um clima".

Sonegação

"Sonego o que for possível".

Auxílio moradia

"Uso para comer gente".

Pobreza

"Pobre não sabe fazer nada, o pobre só tem uma utilidade nesse país: votar com diploma de burro no bolso".

Afrodescendentes

"O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas. Não fazem nada".

Nordestinos

"Só tá faltando crescer um pouquinho a cabeça".

Trabalho feminino

"Mulher deve ganhar salário menor porque engravida".

Estupro

"Só não te estupro porque não merece".

Brasil

"Quem quiser vir fazer sexo com mulher, fique à vontade".

Homossexualidade

"... começa a ficar meio gayzinho, dá coro que ele melhora". "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro morto".

Minorias

"... minorias se adequam ou desaparecem".

Direitos

"Devem ser rasgados e jogados na latrina".

Indígenas

A cavalaria brasileira foi incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios".

Asfixia por covid

"... urr urr urr, tô com covid"(risos).

Mortos por covid

"Minha especialidade é matar". "Não sou coveiro".

Desobediência civil

"A culpa não é minha".

Nazismo

(Ein Volk, ein Reich, ein Führer) "Uma nação, um povo, um líder".

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Sobre política e perversão

Há artigos que valem por livros inteiros e são capazes de esclarecer com objetividade e concisão o que parece ser um problema complexo demais para ser examinado à luz de poucas palavras. A edição da Folha de S. Paulo desta sexta-feira traz um exemplo disso. Refiro-me ao incontornável artigo do advogado e professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, Silvio Almeida, intitulado Bolsonarismo, política e perversão. O tema, como o próprio título deixa ver, é o da ascensão global do fascismo e sua versão brasileira cujo substantivo deriva do atual presidente e candidato à reeleição.

Embasando-se em trabalhos de maior fôlego, o que é mesmo natural em artigos exemplarmente consistentes como o dele, Silvio Almeida traça um perfil do eleitor bolsonarista sem incorrer em categorizações repetitivas do que se pode definir como fascista, na linha do que mesmo livros clássicos sobre a matéria fizeram, a exemplo do aclamado O fascismo eterno, de Umberto Eco, no qual o autor de O Nome da Rosa e O pêndulo de Foucault estabelece 14 lições para identificar o neofascismo e o que define como fascismo eterno.

Intertextualizando o livro Crítica do Fascismo (Ed. Boitempo, 2022), Silvio Almeida  trabalha o conceito do fascismo à brasileira, numa perspectiva crítica, pelo viés da psicanálise e da economia política, e o resultado do artigo surpreende pela nitidez que dá a um fenômeno político que vem constituindo um desafio para diferentes campos da ciência política: como entender que uma liderança que sustenta sua ação no desprezo pelos pobres, manipulação da crença religiosa, mentiras, desapreço pela mulher, homofobia, racismo, ojeriza aos fundamentos da democracia, incentivo ao ódio e à violência, pode aliciar de forma impressionante quase metade dos eleitores brasileiros?

A explicação, que demanda obviamente outras vertentes de análise, concentra-se no fato de que o 'mito' "é a realização do desejo do homem médio, espremido pela miséria material e espiritual do capitalismo em crise". "O mito, diz ele, é o gozo sangrento, é o prazer espetacular com a morte". Nessa linha de interpretação, pois, é que Silvio Almeida nos faz entender por que o discurso bolsonarista centraliza-se num conceito de "liberdade ilimitada", que, em essência, é a própria negação da liberdade democrática, aquela que deita raízes no respeito à Constituição e aos valores de um Estado democrático de Direito: "ele é presidente e não trabalha, ofende as pessoas e as deixa morrer, anda de moto sem capacete durante o expediente, faz turismo em funerais, mente descaradamente, deixa os filhos fazerem o que quiserem e nada, absolutamente nada acontece com ele". Ele não é punido, sequer objeto de julgamentos por parte das instituições às quais caberia lhe impor limites, uma evidência na omissão desavergonhada do Procurador Geral da República e no silêncio servil de órgãos da grande imprensa.

O artigo de Silvio Almeida, a essa altura, vai ao cerne do que se tem, quase sempre em vão, procurado compreender sobre o fascismo brasileiro: "O bolsonarismo é o gozo perverso", pois prescinde do que é indispensável ao candidato adversário, a necessidade de mostrar-se melhor para presidir o país, pautando-se pelas regras do Estado democrático de Direito, a atenção cuidadosa com os que passam fome, os que precisam de emprego para sustentar suas famílias, os que são diferentes e fazem de suas vidas um bem precioso a ser respeitado, as mulheres, os indígenas, os negros e os desassistidos de toda ordem.

Na lógica dessa liberdade ilimitada, é que se sustenta quase metade dos brasileiros aptos a votar em 30 de outubro. Para esses, que se lixem as instituições, pois que Jair Messias Bolsonaro é o mito que representa "o triunfo do que de pior habita em cada um de nós. É o fracasso orgulhoso, o fracasso triunfante da dor".

Não à toa, pois, é que seus seguidores invertem o sentido do prazer, alimentam-se do ódio, fazem a apologia do sofrimento alheio como forma de alcançar seus objetivos malignos, projetando-se nas falas e ações de seu guia.

A duas semanas da mais importante eleição para presidente, é como desfecha seu artigo Silvio Almeida, resta aos brasileiros um único caminho: "... desarmar o fascismo e suas expressões passa por reorientar politicamente o desejo para formas de viver não alimentadas pela morte".

Sem medo de ser feliz.

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

As urnas dirão o que somos

Se, no primeiro turno, o otimismo bolsonarista não tinha fundamento; no segundo, a preocupação dos lulistas é pertinente. O dia seguinte para o atual presidente não poderia ser melhor: se já contava com o governador do Rio de Janeiro, seu companheiro de partido, passou a contar com o apoio escancarado de Romeu Zema, de Minas Gerais, e de Rodrigo Garcia, de São Paulo.

O primeiro, poderosamente instalado no Palácio da Liberdade, é sério candidato a presidente em 2026, e, pelo perfil liberal que encarna à perfeição, sabe que suas chances seriam pequenas na hipótese de uma vitória de Lula. Ademais, é filhote do capital e legítimo representante do que existe mais à direita em termos ideológicos. O segundo, antevendo o ocaso do PSDB, prepara voo para o que deverá surgir da fusão do PSL com o DEM, berço de sua aparição no cenário político de São Paulo. Sem contar que se move ao sabor de ressentimentos contra Haddad, que provocara, como prefeito de São Paulo, investigação de malfeitos de seu irmão Marco Aurélio Garcia, envolvido em escândalo na máfia dos fiscais.

O certo é que a situação fragiliza a percepção de que Lula chegara ao segundo turno em vantagem. Agora, queira-se ou não, é uma outra eleição, na qual o movimento das peças passa a obedecer a uma lógica diferente, e é sob essa perspectiva que a "turma do Gerson" (aquela que quer sempre levar vantagem) lança-se no mercado com seu apetite insaciável. Sem contar que estamos falando de um país com nítida identificação com o conservadorismo mais tacanho, mais equivocado e mais hipócrita, com práticas igrejeiras que negam o objeto que dizem venerar.

O caso de São Paulo, a rigor, não deveria surpreender. O estado foi, é e continuará sendo o retrato de um Brasil elitista, conservador e não raro delinquente em sua tradição política. É o estado de Ademar de Barros, de Maluf, entre tantos outros, ao que se soma, nesta eleição, um erro tático do PT ao considerar o candidato de Jair Bolsonaro um adversário mais frágil na hipótese de um segundo turno, confirmado no domingo.

Ao empenhar-se na desconstrução do candidato do PSDB, para quem direcionou suas baterias em debates, Haddad acabou por contribuir para o fortalecimento do seu, agora favorito nas pesquisas de intenção de voto, oponente, o que mais ainda traz para Lula o risco de que Bolsonaro alargue sua vantagem em São Paulo, o que será muito ruim para o candidato do PT.

Com o apoio do PDT, já esboçado desde o primeiro turno, de Simone Tebet, que fez nessa quarta-feira um pronunciamento histórico no plano da forma e do conteúdo, e dos tucanos de plumagem clássica (FHC, Tasso Jereissati e José Serra, entre outros), mais a suposta adesão de empresários, ancorados em nomes que lhes garantam a inexistência de um plano econômico mais à esquerda, a exemplo de Henrique Meirelles, Pérsio Arida e Armínio Fraga, Lula passa a depender dos humores do eleitorado de Minas Gerais e da esperança de que Zema não consiga desfazer os resultados obtidos por ele no Norte do estado.

Sem isso, mesmo que amplie sua vantagem no Nordeste, a situação do ex-presidente torna-se muito difícil, muito embora estejamos falando da maior, mais surpreendente e mais brilhante liderança política popular do país. Os últimos movimentos, no entanto, indicam uma retomada da dianteira petista, o que os números da pesquisa do Ipec (a primeira do segundo turno) confirmam: Lula aparece com 55% do votos válidos (descontados os votos brancos e nulos), contra 45% de Bolsonaro.

Os tempos são outros, mas o antipetismo é uma realidade que ainda impera em todas as regiões do país, exceto o Nordeste, onde o projeto de governo do PT deita suas raízes de forma incontrastável. E não adianta tentar ignorar o que os governos do PT fizeram em benefício de um povo pobre, mas digno e exemplarmente consciente do que é de fato melhor para ele.

Aí, se capaz de manter algo próximo do que conquistou a dois de outubro, mesmo sob o peso de uma correlação de forças profundamente desigual a partir de agora, quedam as melhores esperanças do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conquistar um terceiro mandato, resgatar o que restou de nossa combalida democracia e abrir novos horizontes em meio à tragédia em que se transformou o país.

Do contrário, como tão bem discorreu sobre o Brasil a jornalista Mariliz Pereira Jorge, em coluna de quarta-feira na Folha, corre-se o risco de ver-se confirmar o que supostamente somos: "Um povo que faz arminha com a mão, odeia o próximo e vai à igreja aos domingos."

A votação do dia 30 deste mês é, por certo, a mais importante desde a redemocratização do país. Mais que nunca, o povo brasileiro decidirá entre a continuidade da barbárie e o restabelecimento da normalidade democrática. Simples assim.