quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Barbara, nunca é tarde --- nunca é demais

A atriz, ensaísta, professora, jornalista, crítica teatral e tradutora Heliodora Carneiro de Mendonça, ou simplesmente Barbara Heliodora (assim, sem acento), faria cem anos nesta semana. Era carioca, e formava com Sábato Magaldi e Yan Michalski a mais combativa e inteligente tríade crítica do teatro brasileiro.

Dona de uma sensibilidade estética singularmente aguçada, Barbara Heliodora foi presença marcante nos meios teatrais do país, notabilizando-se pela análise implacável de espetáculos de qualquer gênero --- invariavelmente profunda, atenta, exigente, certeira.

Certa vez, no teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, tive a oportunidade de vê-la --- sentada uma fileira de cadeiras à minha frente. O espetáculo, lembro-me bem, era "A Mulher sem Pecado", de Nelson Rodrigues, com Dionisio Azevedo (sublime) no papel do marido atormentado em sua obsedante busca da verdade sobre a fidelidade da esposa, Lídia. Assisti ao espetáculo, assumo, com o olhar transitando, igualmente atento, do que se passava no palco, a poucos passos de mim, para as reações quase imperceptíveis daquela senhora impassível, de postura nobre, como a tentar antecipar seus abalizados juízos sobre aquela montagem. A custo, porque difícil o acesso, à época, tinha eu por hábito ler seus textos, descobrindo os segredos de uma arte que despertava em mim tanta paixão, e para a qual se ressentia, o jovem que fui, do cabedal teórico que lhe permitisse compreender, para além da superfície, o que faz de um texto, de uma montagem, do trabalho de um ator, de uma atriz, ou da competência de uma direção, algo capaz de alcançar o status de uma grande realização artística.

Tanto quanto a Magaldi, cujo texto já por si é capaz de encantar o leitor, ou Michalski, no embasamento teórico que salta aos olhos no primeiro bater de olhos, devo a Barbara Heliodora muito do meu amor pelo teatro, da minha razoável capacidade de compreender, em bom nível, essa arte ao mesmo tempo tão simples e tão complexa.

Mas falar de Barbara Heliodora é muito mais que falar de uma notável crítica de teatro, cujos conhecimentos sobre a cena dispensam comentários, quer pelo elevado nível de sua fundamentação teórica, quer pela amplitude de sua densidade intelectual, muito embora se deva evidenciar, sob este aspecto, que sabia escrever textos leves, soltos, acessíveis, mesmo para aqueles que não tinham com a arte teatral grande familiaridade.

Sua crítica, tanto quanto pela verticalidade do material teórico mobilizado, valia por sua extensão, compreendendo-se por isso o alcance de sua visada corajosa sobre a realidade brasileira, em que pese ter sido, por este viés, tantas vezes incompreendida. É que Barbara Heliodora evitou sempre o tom panfletário, guardando distância dos radicalismos ideológicos, fossem esses de direita ou de esquerda, jamais furtando-se a participar do debate e a expor em artigos incontornáveis o seu pensamento crítico.

Exemplo do que falo aqui, para finalizar, é o artigo intitulado "O Medo da Liberalidade", em que condena a censura militar quando da publicação de uma portaria tornando obrigatório o envio de textos teatrais para Brasília, antes de encenados. Eram perversos os cortes, as mutilações, via de regra levados a efeito por gente sem cultura, que entendia de teatro o mesmo que um asno entende de igreja. Quando não impedidos, integralmente, de ganhar materialidade no palco, fato recorrente o mais das vezes.

"Ser subdesenvolvido não é vergonha para ninguém. Insistir em assim permanecer, no entanto, é mais do que vergonha, é crime de lesa-pátria. Lutar cega, desesperadamente, contra a evolução e a verdade, contra o conhecimento, a avaliação objetiva, o reconhecimento de nossos problemas sociais, existenciais, econômicos e políticos, é insistir em condenar esse nosso Brasil tão sofrido, tão desperdiçado, tão explorado e tão desconhecido por nós mesmos, a uma prorrogação sem prazo  --- e, se possível, eterna --- de sua relegação ao estado de subnação, e da pior subnação, aquela na qual, propositadamente,  se confunde tradição com estagnação, esclarecimento com subversão. Vamos queimar livros, como Hitler; vamos preferir Torquemada a João XIII".

Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 18 de novembro, 1967.

Na semana em que completaria cem anos, reler os artigos de Barbara Heliodora é poder compreender o que terá representado para a inteligência brasileira essa mulher extraordinária, essa intelectual rigorosa, destemida, que jamais pactuou com o silêncio ou com a omissão, sem curvar-se, no entanto, a interesses de correntes ideológicas que não condissessem com suas convicções pessoais.

Viva Barbara Heliodora!

P.S. O título dialoga com os versos de Chico Buarque, da peça Calabar, dele e Ruy Guerra.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Cinema Falado, poema cantado

Em termos artísticos, gosto de dar-me às subjetivações: Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, estão para a Música Popular Brasileira assim como Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Mello Neto, para a literatura, não necessariamente nesta ordem. Com a diferença de que os três primeiros, dispensadas as justificativas, mais ainda aproximaram a poesia da música. Nesse sentido, não é abusivo dizê-los mais legitimamente poetas, considerando-se as raízes do gênero, pois que a poesia, sabe-se, nasceu junto com a música.

Não é muito lembrar que a palavra "lírico", do grego lyrikós, articula-se com a sua própria etimologia: canção que se vocalizava através da lira, instrumento musical de cordas. Nada mais convincente, portanto, para que se diga poetas os cantores, compositores e letristas aqui citados, razão por que se perde no vazio o argumento de que, dos três, apenas Chico Buarque estaria a merecer uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, uma vez que, além da música e do teatro, dedicou-se a escrever livros. O argumento, que beira à grosseria intelectual (e à insensibilidade estética mais escancarada), tenho ouvido, inclusive, de gente que lida com a literatura com razoável nível de intimidade --- o nome na ponta da língua, mas, por dever de etiqueta, não o direi.

É minha obrigação dizer, no entanto, uma vez que este texto não se destina unicamente a iniciados, que o assunto polêmico terá representado, mesmo, uma dificuldade para críticos, perdidos esses na busca insaciada e talvez inútil de separar a poesia cantada da textual, esta, meramente verbal. A discussão é remota, muito embora, desde a Renascença, tenha-se tornado usual distinguir essa dualidade existente entre a melodia e a palavra. Uma tolice.

Ainda com relação aos três nomes do cancioneiro destacados na introdução do presente texto, urge evidenciar que todos eles transitam pelo terreno do literário propriamente dito. Se Chico Buarque é hoje reconhecido como um romancista de enorme qualidade, sobram na poesia de Gilberto Gil méritos inegáveis para que seja ele considerado um valoroso poeta, o que torna dispensável explicar as razões pelas quais ocupa uma das cadeiras da Casa de Machado de Assis.

Quanto a Caetano Veloso, só mesmo o preconceito ou a ignorância intelectual para negar-lhe o status de escritor, filósofo, pensador, agitador cultural, cineasta (pasmem!) e poeta de extração clássica, muito embora popular no sentido da veiculação bem-sucedida de sua arte quase inclassificável.

É dele, além do clássico "Verdade Tropical", tão importante como interpretação do Brasil, guardadas as diferenças de olhares, quanto "Casa Grande & Senzala" ou "Raízes do Brasil", o pouco conhecido "Alegria, Alegria" (não a música, belíssima), coletânea de textos críticos e de intervenção (no sentido atribuído a Antonio Cândido) organizada por Wally Salomão e publicada pela editora Pedra Q Ronca.  

A propósito, não à toa, vira e mexe, um e outro amigo, sabendo-me "tiete" de Caetano Veloso, indagam-me a razão por que deixei passar em brancas nuvens, neste espaço, a festa de seus oitenta anos.

Ah, que imperdoável para quem ouve seus discos, lê e relê seus escritos, revê seu desconcertante "O Cinema Falado" e traz ao alcance da mão "Letra Só", a bela edição da poesia de Caetano Veloso em livro organizado por Eucanaã Ferraz (Companhia Das Letras, 2003).

Minha forma de reverenciar o artista completo que é Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso na data em que comemorou seus oitenta anos.

Em tempo: Se não o fez, ainda, ouça urgentemente o irretocável "Xande canta Caetano", de Xande dos Pilares. Há muito não se ouvia uma interpretação tão atenta ao espírito da letra, um jeito de cantar que dá brilho à dicção poética e ao ritmo musical da palavra articulada com tamanha exatidão, vigor e espontaneidade. Pérola.

 

 

 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Villa Air-Bel, Transatlântico

Há algum tempo escrevi neste espaço sobre o livro "Villa Air Bel", da canadense Rosemary Sullivan. O nome deriva do lugar (um casarão), nos arredores de Marselha, que serviu de abrigo para um seleto grupo de intelectuais, artistas, cientistas, escritores e políticos de diferentes países nos dramáticos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, particularmente o período da ocupação da cidade de Paris pelos nazistas. Muito embora pontuado pelos horrores sob cuja ameaça viviam os fugitivos, o livro narra com notável elegância e estilo a curiosa convivência de gente importante para a inteligência universal, como Marc Chagall, André Breton e Max Ernst, Hannah Arendt, entre outros.

A autora, poeta de prestígio no Canadá (nasceu em Montreal, Québec), narra com suavidade e fina capacidade de observação o que foram esses anos terríveis, o que torna agradável a leitura do livro. Nesse sentido, pois, é que traça com sutileza o perfil psicológico das personalidades envolvidas, nunca assumindo posições ideológicas que possam, minimamente, redimensionar a importância de uns sobre outros, exceto quando se reporta à americana Mary Jayne Gold, sobre quem falarei mais adiante. No mais, Sullivan mantém a distância devida a um relato que mais documenta a história real que se propõe a erigir mitos. Nada se perde de mais significativo, ainda quando se volta para circunstâncias já muito exploradas em livros, filmes e outros registros históricos, a exemplo do suicídio do filósofo Walter Benjamin, já bem próximo de ultrapassar a fronteira entre França e Espanha, destino perseguido pelos inimigos do Terceiro Reich.

No quarto capítulo, intitulado "A Herdeira", é quando Sullivan discorre sobre a figura incontornável de Mary Jayne Gold, a herdeira que dá nome ao capítulo. Filha de um magnata da manufatura, Egbert Gold, cuja fortuna lhe proporciona uma vida de luxo e impensáveis aventuras, Mary Jayne alça uma posição de destaque no livro. Mas a razão disso, curiosamente, não se prende ao brilho pessoal de uma mulher culta, rica e dotada de uma beleza física estonteante. É aqui que a personagem (real, destaque-se), agiganta-se, assumindo um papel de tal modo relevante que sobrepuja o de outros "monstros" da cultura dita moderna, todos, como ela, envolvidos em debates impagáveis, confrontos violentos e paixões clandestinas. Explico mais adiante o destaque assumido por Gold.

Esses fatos, chego aonde quero, tornam o desenrolar desses acontecimentos reais algo para além de históricos, tomando-se o termo em seu sentido referencial, elevando-se a um nível de complexidade e sedução que beira o que existe de mais representativo da grande literatura. É ir ao streaming e assistir, na Netflix, à maravilhosa série "Transatlântico", uma das mais deslumbrantes realizações do cinema contemporâneo, com roteiro adaptado do romance The Flight Portfolio, escrito por Julie Orringer (não traduzido para o português) e conferir o que afirmo.

É aula de cinema, com apurado senso estético, fotografia esmerada e interpretações irretocáveis, com destaque para a atriz Gillian Jacobs (Mary Jayne) e Lucas Englander (Albert Hirschmann)*, e numeroso elenco de grandes nomes do cinema na atualidade.

A história é lindamente narrada, alternando casos passionais, situações aterrorizantes vividas pelos fugitivos, exposição crítica dos fundamentos ideológicos do fascismo e uma gama de elementos dramáticos que remetem aos tempos de hoje, sob ameaça inconteste de avanços da extrema direita fascista, corrupta e sanguinária que toma conta de diferentes países, inclusive o Brasil.

É nessa perspectiva, portanto, que se deve exaltar a figura de Mary Jayne Gold, quer no livro de Rosemary Sullivan quer no imperdível "Transatlântico", a série da Netiflix que você não deve deixar de ver. Nela, aliás, o relato sobre a personagem, como no livro, é naturalmente mais enfático, e apaixonante, na medida em que se pode conhecer melhor uma mulher incomum, voltada para ajudar as vítimas de um regime de terror, a que destina, com heroísmo invulgar, a sua ação solidária: sua riqueza financeira, seu aguçado senso de humanismo, sua valentia pessoal, sem jamais perder, por isso, a irresistível feminilidade que lhe confere um poder de sedução impressionante ao longo de toda a narrativa fílmica. Pena não ser recomendável, a essa altura, incorrer em spoiler para dizer o final de sua belíssima trajetória. Recomendo.

*Sobre Albert Hirschmann, economista de extração liberal, ouvi, recentemente, de José George Bezerra, estudioso da FGV, uma verdadeira aula de "humanomia", uma economia calcada em elementos culturais, números e conceitos filosóficos que abrangem da vida à Arte.

 

 

 

 

 

 

domingo, 13 de agosto de 2023

Meu pai

Éramos oito irmãos, quatro homens e quatro mulheres. O casal mais velho, Odivaldo e Odilma, filhos do primeiro casamento do meu pai. Os outros, pela ordem decrescente, Gracinha, Deusdedith, Emídio, eu, Fátima e Socorro.

Crescemos debaixo de uma educação austera, sobretudo orientada pela inflexibilidade de mamãe, Alderila, mulher temperamental e de atitudes invariavelmente decididas. Papai, Deusdedith Teixeira, homem rigoroso nos costumes, nas opiniões e no caráter, foi o mais íntegro, grave, sério e autodisciplinado de todos os homens que conheci. E, para além de tudo isso, era a humildade personificada.

De papai, aprendemos algumas lições indeléveis: jamais tergiversar depois da palavra empenhada; nunca tirar proveito da fragilidade alheia; não baixar a cabeça ante a prepotência, a arrogância, a valentia de quem quer que seja; em momento algum desejar aquilo que, sendo do outro, não nos pertence; respeitar os mais velhos; ser correto nos negócios, grandes ou pequenos; que a honestidade é um bem supremo; que, todos, somos iguais, ricos e pobres, brancos e pretos; que Deus existe; que mais vale amigos na praça que dinheiro no caixa; que a família é algo sagrado; que nem tudo se acaba com a morte; que nada tem mais valor que a paz; que jamais alguém lhe bata à porta para querer de volta o que é seu; que se deve amar, amar e amar sempre; que o ódio é pior dos sentimentos e não compensa; que se pode dar vazão à emoção, sem pruridos, sem achar que o pranto vai nos diminuir sob qualquer aspecto.

Que belo homem foi meu pai!

Era humilde, nunca abjetamente submisso. Era manso, exemplarmente brando de temperamento, mas corajoso, destemido. A propósito, é conhecida a história: certa vez, ameaçado de morte, a faca no peito, fixou o olhar nos olhos do agressor e ponderou: – "Nêgo, se eu fosse você, não faria essa besteira não". Tratava a todos com um "nêgo" carinhoso. O homem baixou a arma, trêmulo, e sumiu feito um cachorro acanhado, para nunca mais voltar.

A mansidão de papai era contagiante. Jamais negava ajuda a quem quer que fosse, nem mesmo quando lhe pediam, por empréstimo, o 'cavalo preto de Deusdedith'. Solícito, entregava amorosamente o laço: – "É só ir à roça e pegar, o cavalo é seu!", a sela e os arreios deixados à vista. Como só se permitisse ser laçado por seu dono, o cavalo preto ia de um canto a outro da roça, volteava, corria em disparada, saltava, escoiceava, parava ao longe, desafiador. Depois de hora, hora e meia de tentativas frustradas, o solicitante voltava, esbaforido: – "Deusdedith, seu cavalo é muito velhaco." A história virou piada. A piada tornou-se máxima: Mais velhaco que o cavalo preto de Deusdedith!

Éramos uma família de poucos, parcos recursos. Meus irmãos mais velhos passaram por tempos difíceis, os mais novos, não. Nenhum excesso, nada além da medida, do estritamente necessário, mas a mesa farta, a roupa decente, o remédio na hora certa.

Nada nos deixou, além do exemplo. E, no entanto, sentimo-nos imensamente ricos. É bastante lembrar o que esse homem foi!

 

 

 

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Duas palavras sobre Aderbal

No final dos anos setenta, Cleide Quixadá e eu montamos o espetáculo "Aquela Garota dos Olhos Grandes", de Rubem Rocha Filho. O texto nos chegara às mãos pelo ator e diretor de teatro Marcos Miranda --- uma cópia amarfanhada, com riscos de marcação, comentários, acréscimos de rubrica, feitos à mão, à margem da folha, o que de alguma forma nos ajudou a conceber o espetáculo. Eram anotações referentes à montagem anterior da mesma peça, em Fortaleza. A letra, observara Miranda, era do ator e diretor Aderbal Jr., como era conhecido até então aquele que logo tornar-se-ia um dos maiores nomes do teatro brasileiro de todos os tempos: Aderbal Freire-Filho.

Muitos anos depois, no Rio de Janeiro, contei essa história ao próprio Aderbal, agradecendo-lhe por sua "contribuição" para o nosso trabalho. Aderbal, entre risos --- e o gesto costumeiro de assanhar os cabelos brancos com as mãos ao falar --- brincou: "Então você foi dirigido por mim!?"

Era março de 2015. Estávamos na ocasião, Ticiana (minha mulher à época), Beta Fiuza, seu marido e primo de Aderbal, César Rossas, a atriz Luciana Belchior, filha do César, e eu. Tínhamos acabado de assistir ao premiadíssimo espetáculo "Incêndios", com Marieta Severo em atuação soberba. Aderbal, como combinado, aguardava-nos no hall de entrada do teatro, desmanchando-se em simpatia e generosidade, algumas das marcas mais notáveis de seu caráter irretocável. A mais impressionante, era a sua humildade: "A Marieta está se trocando e chega já", dizia-nos referindo-se à atriz Marieta Severo, sua mulher, que logo se somaria ao grupo, elegante e bela.

Nutri sempre por Aderbal Freire-Filho mais que uma simples admiração, coisa de resto natural para quem, como eu, lida com a arte profissionalmente, e reconhecia nele os atributos que o levaram desde muito cedo à consagração como um artista fora da curva. Dedicava à pessoa do Aderbal um carinho imenso, em grande parte devido à minha proximidade com o César Rossas, primo a quem Aderbal tratava invariavelmente como um irmão, na mesma linha do que fez sempre em relação à escritora Angela Gutierrez, a quem, durante a conversa, Aderbal fez referência de tal modo afetuosa que logo pude entender: mais que à prima-irmã, havia nele, para com Angela, uma admiração enorme pela escritora e pela mulher.

A morte de Aderbal Freire-Filho, ocorrida nessa quarta-feira, no Rio de Janeiro, encerra a trajetória de um artista para o qual o reconhecimento se deu em vida, felizmente. Não é muito dizer, contudo, em relação ao artista, o mesmo que se pode afirmar em relação à pessoa humana: Aderbal era uma unanimidade, uma das poucas unanimidades de que se tem notícia num mundo de "homens partidos", valendo-me aqui da conhecida expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade para dizer de um tempo escasso de grandes valores humanos.

Na Academia Cearense de Cinema, honra-me ocupar a cadeira de Aderbal Freire (o pai), de cujo talento intelectual vem o DNA desse grande homem e grande artista, morto ao final de dolorosa luta, desde que um AVC hemorrágico o tirou da mais elevada cena artística brasileira.

Assisti a muitas peças dirigidas por ele. Não vou insistir, no entanto, por desnecessário, naquilo que todo mundo sabe sobre Aderbal Freire-Filho: como homem de teatro, figurará no Brasil entre os maiores de todos os tempos, gente da envergadura de Zbignew Ziembinski, Augusto Boal, Vianinha, Paulo Pontes, Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa e outros. Com uma diferença, que me permitam a subjetivação: dentre todos, Aderbal foi seguramente o maior.

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Literatura e realidade

Só mesmo numa cultura em que "bandido bom é bandido morto", na linha do que professava Paulo Maluf, declarações rudimentares e tacanhas como as do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, sobre a chacina do Guarujá, podem ser objeto de aplausos e elogios exaltados nas redes sociais. Foram 16, por ora contados. Outros virão. Na sua grande maioria, gente pobre e preta, a exemplo do ajudante de pedreiro Layrton Fernandes da Cruz Vieira de Oliveira, 22, morto a tiros quando ainda dormia na casa de um amigo. Na "limpeza", ainda mataram o cachorro da família.

O mesmo ocorreu a um indigente e a um garçom, Filipe do Nascimento, 22, que saíra de casa para comprar macarrão. Um outro teve seu filho de poucos meses arrancado do colo antes de ser executado. A chacina, a maior desde os 111 do Carandiru, como disse, deixa o mandatário paulista "extremamente satisfeito", pois que o fortalece em sua pretensão de candidatar-se a presidente em 2026, arrebanhando o apoio do bolsonarismo raiz, claro. Essa gente que faz arminha com os dedos e exulta de contentamento ao ver o sangue jorrar nas periferias dos grandes centros.

Como afirmou o articulista Thiago Amparo, na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo, "a regra no país sempre é que a polícia executa, o governador aplaude e o Judiciário se cala".

No Rio de Janeiro, nessa quarta-feira 2, no Complexo da Penha, Zona Norte da cidade, 10 pessoas foram executadas com os mesmos requintes de crueldade, mas o número pode aumentar: há quatro feridos em estado grave. Bandido bom é bandido morto, não importa se na operação morram inocentes, trabalhadores, donas de casa. "Efeito colateral", diz o governador. É a história que se repete, não como farsa, como professava Marx, mas como reedição fria e sórdida de uma prática que, na contramão do que pretende (pretende?), só contribui para o agravamento do problema da violência no país.

Amante da literatura, recuo no tempo e cito de cor fragmentos do poema da escritora americana Elizabeth Bishop, intitulado "Cadela Rosada" (1979): "Você não sabia? Deu no jornal:/para resolver o problema social,/estão jogando os mendigos no canal."

Bishop faz alusão à prática de um grupo de justiceiros de direita, com o suposto apoio do governador do então estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965), que negava categoricamente seu envolvimento com o caso.

O texto segue: "Se fazem isso com gente, os estúpidos,/com os pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,/o que não fariam com um quadrúpede?" E, mais adiante: "A piada mais contada hoje em dia/é que os mendigos, em vez de comida,/andam comprando boias salva-vidas."

Com o olhar atento ao que ocorria na cidade durante os vinte anos que morou no Brasil, Bishop tinha do problema da violência uma compreensão profunda. Em outro poema, "Apartamento do Leme", a poeta diz: "Está ficando mais claro. Na praia dois homens/se levantam de sepulturas rasas forradas com jornal./Um terceiro continua dormindo. Sua colcha//é papel amassado, uma caixa achatada./Um cão a correr, dois banhistas madrugadores, param/subitamente meia-volta".

A estrofe é antológica, quase fotográfica, para evidenciar a omissão de uma elite indiferente à miséria, uma vez que os banhistas se afastam para evitar a presença dos moradores de rua.

Mas, já que trouxe Bishop de volta, nada que se compare ao magistral "O Ladrão da Babilônia", em que registra poeticamente o assassinato de um delinquente conhecido por Micuçu, a cuja perseguição por homens do Exército (sim, do Exército) a escritora acompanha de binóculo da sacada do apartamento em que mora com a arquiteta Lota de Macedo Soares: "Nos morros verdes do Rio/Há uma mancha a se espalhar:/São os pobres que vêm pro Rio/e não têm como voltar".

O poema termina sob o ponto de vista do delinquente, cujos olhos se fixam na paisagem da Zona Sul, com seus prédios luxuosos e sua natureza exuberante. Ele tenta escapar, mas um soldado desfere o tiro mortal: "Ouviu um bebê chorando/E sua vista escureceu./Um vira-lata latiu./Então Micuçu morreu".

Estudos evidenciam que as chacinas acontecem sempre a mando de homens brancos e poderosos, e suas vítimas são quase invariavelmente moradores de favelas, em que a maioria é composta por pobres e negros.

Num país desigual e acintosamente injusto, a pretexto de proteger a sociedade contra bandidos, autoridades, como o governador Tarcísio de Freitas, festejam chacinas, execuções perversas e indiscriminadas.

Enquanto não se cumprem os direitos fundamentais, uma educação de qualidade, a tolerância como forma de convivência pacífica com as diferenças sociais e étnicas, resta-nos a literatura para revelar um pouco de nossa indignação.