terça-feira, 26 de março de 2019

O cineasta do amor

Com a morte de Domingos Oliveira, sábado 23, perde o Brasil um dos seus maiores talentos do teatro e do cinema. Ainda que desconhecido do que se convencionou chamar de grande público, Domingos Oliveira figura entre os nossos melhores diretores, quer no palco, quer no cinema, espaços em que se notabilizaria também como ator de elevado senso estético.

Do conjunto da obra, por certo, destaca-se Todas as mulheres do mundo (1966), cuja tessitura dramática revela uma das marcas de sua arte voltada para as grandes indagações acerca do amor, em que mergulha nos conflitos existenciais de um casal como um Bergman dos trópicos, sensível, poético, preciso no trato da linguagem no nível em que poucos cineastas brasileiros conseguiriam ser.

Todas as mulheres do mundo, plasmado no texto teatral com que Domingos Oliveira fizera a sua estreia nos palcos do Rio, trazia no elenco uma das mulheres mais encantadoras do país, Leila Diniz, já então ex-mulher do diretor, que se tornaria uma atriz de prestígio e uma personalidade incontornável na vida da cidade e do país, pelo brilho de sua beleza e irreverência do seu comportamento. Para não falar de gente como Paulo José, Fauzi Arap e Flávio Migliaccio, a compor um elenco extremamente bem conduzido pela direção notável de Oliveira, certeiro na escolha de cada plano, no enquadramento não raro estilizado e na movimentação poética da câmera, quando suave ou intencionalmente nervosa.

Mas nem tudo foi sucesso na carreira de Domingos Oliveira, por vezes incompreendido na construção dos roteiros e na escolha das estratégias narrativas de alguns dos seus filmes mais criticados, bem na linha do que ocorreria com Edu coração de ouro (1968), para muitos um remake do aclamado filme de estreia.

Na obtusidade de seus critérios, a crítica condenava em Domingos Oliveira o que aplaudia em cineastas, como ele, fiéis a uma percepção de mundo mais atenta às profundezas da alma e aos grandes conflitos da existência, bem ao estilo de um Michelangelo Antonioni ou de um Ingmar Bergman.

É quando viria A Culpa (1971), notável pela fotografia de Rogério Noel e pelo inusitado da trama: dono de uma construtora é assassinado pelo filho e um amigo, que passam a morar juntos devastados pelo sentimento de culpa e arrependimento. Na sequência, Amores (1998), produção de baixíssimo custo, mas nem por isso desprovida do rigor estético com que Domingos Oliveira assinaria o seu cinema assumidamente autoral, mesmo que nos limites de uma cinematografia em crise, com o fechamento da Embrafilme e com leis de incentivo que beiravam o ridículo no contexto do que se dizia o renascimento do cinema brasileiro.

Voltava Domingos Oliveira, agora apoiado pela mulher e atriz Priscilla Rozembaum, que também passaria a dividir com ele a escrita dos roteiros, à sondagem psicológica de personagens invariavelmente esféricas, na perspectiva do que tantas vezes se define como cinema metafísico ou existencial.

Por uma dessas coincidências que só fazem crescer a admiração e a curiosidade que nutrimos pelos grandes artistas, morre Domingos Oliveira quando leio, ainda por terminar, Vida minha, sua autobiografia, só recentemente à venda nas livrarias da cidade. Talhado no estilo a um tempo simples e elegante, no jeito inconfundível de contar a vida, revelando aqui e além o caráter doce e sedutor que foi mesmo a sua melhor característica como homem e como artista, o livro agrada pela leveza da escrita e pela sinceridade dos depoimentos de um insaciável amante, mas sempre terno, descontraído, dotado de uma fina compreensão das coisas que dizem respeito ao amor.

Num dos últimos capítulos, simbolicamente intitulado de "Invasões bárbaras", na altura da página 283, deparamos com a tocante descrição da doença que lhe consumia lentamente o entusiasmo, a alegria de viver e criar sua arte inconfundível como cineasta e homem de teatro.

"Não posso ficar sem ocupar a minha cabeça, senão penso besteira, por causa do Parkinson. Priscilla teve de sair e voltará dentro de uma hora. Talvez eu sobreviva a esta manhã, apesar do mal-estar que sinto. Porém, há tarefas necessárias, porque estou com outra doença além do Parkinson. Erisipela! Meu principal sintoma é a fortíssima dor na perna, às vezes insuportável, que enfraquece a outra e me tira o equilíbrio. Os braços também perderam o vigor. De modo que não me levanto sozinho das cadeiras".

Era 2011.

Cineasta do amor, Domingos Oliveira viveria ainda oito anos. Na manhã de sábado, 23, à frente do computador, em seu apartamento no Rio, o coração do artista parou de bater. Comenta-se que dizia querer morrer como Calígula, berrando: "Eu estou vivo".

Quem haverá de dizer que não? 

 

  

 

  

Amor pela sétima arte


Disse certa vez Frank Capra: – "O filme é uma doença. Quando infecta a corrente sanguínea de alguém, ele toma posse como o hormônio número um, comanda as enzimas, dirige a glândula pinial, age como Iago com sua psique. Assim como acontece com a heroína, o antídoto do filme é mais filme."

Que bela asserção do cineasta acerca do amor pelo cinema. Comigo aconteceu de um tio, Manuel Mathias Costa, o mais querido dos irmãos do meu pai, investir na compra de um cinema em Iguatu. Tio Nelzinho era um grande agropecuarista, razão por que esse empreendimento causaria a maior estranheza na cidade. Até hoje não entendo o que o levou a investir num ramo tão desconhecido para ele. Ah, lembro sim: comprara o cinema em parceria com um parente, a fim de ajudá-lo num momento de dificuldade financeira.

Pois bem. Compra o cinema e, amorosamente, presenteia-me com um permanente. Sem pagar entrada, assim, passei a 'morar' no Alvorada (era este o nome do cinema), assistindo a todos os filmes que a minha idade permitisse, de Tarzan aos filmes de cowboy estrelados pelo italiano Giuliano Gemma, que se tornaria o meu primeiro ídolo da sétima arte. Com o pseudônimo de Montgomery Wood, se não estou enganado, Gemma faria os seus primeiros filmes, passando a usar o nome verdadeiro algum tempo depois, quando já era um astro reconhecido internacionalmente.

Lembro que o vi atuar ao lado de grandes nomes do cinema, a exemplo de Kirk Douglas, Rita Hayworth, Ursula Andress, Liv Ullmann, Alain Delon, Philippe Noiret, Catherine Deneuve, Claudia Cardinale e tantos outros com os quais eu passaria a 'conviver' como cinéfilo.

E no velho Alvorada assistiria a alguns dos clássicos do cinema: As aventuras de Robin Hood, O homem que ri, A ponte do rio Kwai, Janela indiscreta, Um corpo que cai, Bem-Hur, Spartacus, A face oculta, Os reis do iê iê iê, Doutor Givago, A herança sagrada, Era uma vez no oeste e A bela da tarde, além de uma quantidade incalculável de outros filmes inesquecíveis.

Ocorre-me recordar que os garotos da minha turma censuravam-me por ir ver, por exemplo, este último, de Luis Buñuel, que, sem que soubessem, mas corretamente, julgavam muito cult para a nossa limitada capacidade de compreensão. Não sabiam eles que, de tanto ir ao cinema e tentar entender o que se passava na tela, eu tinha adquirido uma sensibilidade incomum para a minha idade e já não eram mais os "filmes de luta" que me interessavam a partir dali. Eu contraíra a cinefilia de que nos falara Capra.

Muito tempo depois, com a chegada do DVD, revi grande parte desses filmes, com uma compreensão maior daquilo que faz deles grandes obras de arte. A história de Séverine Serizi, a personagem vivida por Catherine Deneuve em a Belle de jour, por exemplo, me emocionaria intensamente, agora que podia sentir toda a força poética de Buñuel, todo o mistério de sua arte sublime, marcada de sonho e realidade.

O tema dos relacionamentos, a crise dos casamentos, a busca da felicidade como um direito de cada um, os triângulos amorosos, as fantasias sexuais, o ciúme e os dramas do amor não correspondido, matéria com que teço muito dos meus textos hoje em dia, já eram visualizados na obra de Buñuel e Jean Claude Carrière, de Truffaut, Bertolucci, esses artistas maravilhosos do melhor cinema.  

Depois, viria Bergman, Morangos silvestres, O sétimo selo, Persona  ---  e, definitivamente, o cinema me arrebataria com toda a sua força prodigiosa, o seu encanto, a sua magia.

 

sexta-feira, 15 de março de 2019

Mentira virtual, verdade biográfica

É de causar espécie o que vem ocorrendo no país nos últimos tempos. O nível de tolice nas redes sociais, por exemplo, ganha status de insanidade. Coisas inacreditáveis, a exemplo do que lhes conto agora: Amigo me manda um post de WhatsApp que vai na contramão de sua inteligência e das leituras que, estou certo, fez ao longo de toda uma vida, e das quais, pode-se presumir, deveria tirar melhor proveito.

Que nada: isso que chamam de "bolsonarismo", substantivo com que se procura definir a cega adesão ao governo de plantão, e que de fato, em sua essência, apenas traduz um ódio doentio a Lula e tudo que represente minimamente uma leitura de mundo à esquerda, leva muita gente a perder o senso do ridículo.

Pois bem, o tal amigo me manda um vídeo em que, numa recurso de edição grosseira, vemos o ator e, agora diretor de cinema, Wagner Moura, levando a mão ao nariz repetidas vezes (porque editado o vídeo) num gesto que, é a intenção do autor da montagem, sugere tentar livrar-se de restos de cocaína. E isso durante uma entrevista, pasmem. Tudo porque, além de ator notável e dono de um conteúdo intelectual de fazer inveja, Moura acaba de lançar uma cinebiografia de Carlos Marighella (1911-1969), um dos mais renomados revolucionário brasileiros do século 20. Para não falar, claro, que tem denunciado ao mundo o golpe de 2016 e a prisão por motivos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva.

A agravar o desespero dessa gente, na mesma proporção e em sentido contrário às barbaridades de Jair Bolsonaro, que, segundo um famoso jornalista, aposentou as antológicas piadas do papagaio, tão recorrentes têm sido a cada dia as aberrações saídas da boca do Mito e de sua gangue, Wagner Moura vem sendo aplaudido de pé mundo afora pela qualidade do seu filme e segurança com que discorre acerca de tudo que diz respeito à cultura, à literatura e, de forma destacada, à política do Brasil e do mundo. Tudo, diga-se de passagem, num inglês escorreito e sem sotaque.

Quanto a Marighella, o filme, infelizmente ainda não o vi, razão por que não posso tecer por enquanto quaisquer comentários além do que pude ler em jornais brasileiros e de alguns outros países. Muitíssimo elogiado, por sinal.

Li, há pouco, no entanto, uma extraordinária biografia do líder de esquerda escrita pelo jornalista Mário Magalhães com o título Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, Companhia Das Letras, 2012, e que serve de esteio para o roteiro do filme de Wagner Moura. 

O livro, reafirmo, é um primor  ---  e recomendo-o a todos aqueles que queiram conhecer os meandros de um Brasil autoritário, perverso e sujo moralmente falando. O Brasil que, de novo, como um monstro redivivo, vem aos poucos dando a ver a sua cabeça horrenda em meio a crimes e lama.

Como um thriller, o livro obedece a um ritmo narrativo envolvente e profundamente lúdico (no sentido estético), abrindo as portas do cárcere e do porão para expor, com correção e destemor, as práticas mais inconfessáveis de atrocidades tão comuns durante os anos de chumbo desencadeados com o golpe de 1964.

O capítulo com que Magalhães dá início ao livro, intitulado Tiro no cinema, é perfeito do ponto de vista narrativo, acompanhando com o rigor de operador de câmera os passos com que os militares levam em frente a decisão de matar Carlos Marighella, não sem antes lhe impor a simbólica experiência da humilhação e um sofrimento físico insuportável. É, sob este aspecto, um registro que faz lembrar parte da história dos movimentos de esquerda no Brasil e no mundo.

Por último, o que me parece particularmente notável, para os que imaginam Carlos Marighella como um bandido sem qualquer qualificação intelectual e humana, o livro destaca o prestígio internacional do líder de esquerda brasileiro, a repercussão de seus artigos na Europa e os aplausos de ninguém menos que Jean-Paul Sartre, pela qualidade de estilo e densidade dos textos publicados em jornais e revistas importantes, a exemplo de Les Temps Modernes.

Por essas e muitas outras razões, Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, pelo que traz no subtexto sobre o Brasil de 2019, é leitura incontornável.

 

    

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de março de 2019

O governo do fim

 

 

Em 15 anos (ou mais) como colunista do jornal A Praça, uma ou duas vezes, apenas, cedi este espaço para a publicação de textos que não fossem de minha autoria. Tratava-se, nessas ocasiões, de artigos que considerei incontornáveis, e os quais fiz questão de dividir com os leitores de minha coluna. Hoje, mais uma vez, faço-o, agora com artigo do professor da USP Vladimir Safatle, publicado na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo.

Diante de um impressionante movimento espontâneo de mulheres que levou centenas de milhares de pessoas às ruas para gritar "ele não", o senhor Bolsonaro e a sua equipe dispararam milhares de imagens fakes de WhatsApp com cenas feitas sob medida para chocar os padrões de certos setores da sociedade brasileira. Ninguém foi punido por tal operação de circulação de mentiras. Ao contrário, ela foi decisiva para a pavimentação da vitória de sua candidatura.

Agora o senhor Bolsonaro tenta o mesmo jogo. Não houve na história recente deste país um Carnaval tão claramente utilizado para expressar a revolta popular contra o governo de plantão. Diante disso, o próprio Bolsonaro, agora fantasiado de presidente da República, coloca em circulação outras imagens da mesma natureza na esperança de anular a percepção do fato de que, apenas dois meses depois de sua posse, as ruas cantam e dançam contra ele. As últimas pesquisas demonstram como a popularidade está em queda.

Ela [a tática] pode dar alguma sensação de superioridade moral em meio a denúncias de corrupção no partido do governo, revelações entre o núcleo duro do Planalto e as milícias, além da inação absoluta diante de crimes ambientais e catástrofes humanitárias. Isso será importante para uma minoria aguerrida que irá com o senhor Bolsonaro até a cova.

Mas ela demonstra, para boa parte da população, como ninguém mais alimenta a ilusão de que ele possa governar o Brasil. A função de Bolsonaro não é governar, pois ele sabe muito bem ser impossível. O Brasil não se governa mais, nem mesmo na aparência, muito bem com seu governo de jornalistas plagiadores, religiosos obcecados por questões de gênero, diplomatas que se julgam cruzados, intelectuais autodidatas, atores pornôs, deputados de baixo clero, generais da reserva, assassinos de índios, adoradores de milicianos e economistas especializados em especulação financeira.

O programa que levou Bolsonaro ao poder nunca foi um programa de governo  ---  não foi à toa que nenhum debate ocorreu em campanha. Ele era um programa de guerra.

A lógica por trás dele consiste em dizer: vamos parar com essa ilusão de governar; o que proponho é permitir uma sociedade armada, em que atirar é um direito, sem mais obrigação de aparência de solidariedade social e com a certeza de que o Estado irá alimentá-la continuamente com o espetáculo catártico de chacinas contra pobres e caça periódica aos comunistas escondidos nas universidades, escolas, teatros e sob a Lei Rouanet.

Em um tuíte (forma aportuguesada) onde anunciava uma Lava Jato contra a educação, o senhor Bolsonaro afirmava que as universidades ensinam uma sociedade dividida que visa enfraquecer a nação, por isso elas precisariam passar por um pente fino bem ao gosto do seu funcionário prestativo, o senhor Moro, que "limpou" o país para abrir caminho ao seu chefe e sua gangue.

Bolsonaro tem razão, ensinamos uma sociedade dividida. Essa é a verdade fundamental. Basta ver como as seis principais fortunas desse país representam a soma do rendimento de praticamente metade da população mais pobre. Basta se perguntar quantos negros são professores, juízes ou diplomatas. Se isso não é resultado de divisão e luta de interesses, sugiro que revisemos uma vez mais o sentido das quatro operações matemáticas elementares.

De toda forma, o problema de Bolsonaro não é com a divisão da sociedade, mas com quem a opera e com qual propósito. Ninguém fala em sociedade unificada sem antes massacrar os setores que ele gostaria de ver expulsos do novo corpo social imunizado. Faz-se necessário transformar o Estado em gestor da purgação.

Bolsonaro sabe muito bem que a sociedade é dividida. Ele apenas quer ser o operador dessa divisão, o que seria uma maneira de tentar eliminar a força política das divisões reais.

 

 

 

 

sexta-feira, 1 de março de 2019

A verdade das mentiras

 Nelson Rodrigues disse certa vez: "Todo autor é autobiográfico e eu o sou. O que acontece na minha obra são variações do que aconteceu na minha vida". É isso mesmo.

E não é só com a obra ficcional que o autor se revela. Quem escreve e publica tira um pouco a roupa, mostra-se de alguma forma. O cronista de jornal, então.

Por isso, não tenho pruridos, e vira e mexa coloco um pouco de mim neste espaço. São fatos, ideias, indignações incontidas que mando para o espaço com a tranquilidade de um monge. Fico em paz.

Acho que a sinceridade em tudo que dizemos no texto escrito é uma qualidade do bom escritor. Mesmo quando faz ficção, numa obra literária, o artista se dá a ver.

Chega de mentiras sociais, aquelas que escondem as nossas verdades mais íntimas, mais humanas, a fim de nos deixar bem na foto.

Martha Medeiros, a cronista gaúcha, tem um texto que considero um primor, e que fala disso que chama de "mentiras consensuais". Ela diz: "Mentiras consensuais são aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para os nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que conheço, tornou-se a maior vítima desse consenso".

Perfeito, Martha, penso como você. Esta é a razão por que as pessoas vivem julgando umas às outras sempre que o assunto é amar alguém, viver com...

Para quem, como eu, viveu tantos relacionamentos, a coisa é mais complicada. Não sabem que o amor, como diz a cronista, é um sentimento livre, que "debocha das regras que tentam lhe impor". Fomos educados para casar uma vez, não importa a intensidade do que sentimos ou deixamos de sentir um dia. Há que ser para sempre, diz a regra. E o para sempre nem sempre é para sempre. Pode acabar um dia, o que, ao invés de nos levar à sensação de fracasso, de derrota, deveria apenas nos revelar com mais nitidez o nosso lado humano. Quem sabe muito mais que isso: mais verdadeiro, mais vulcânico no sentido de que podemos vomitar um dia as nossas lavas mais profundas! Isso nos limpa das sujeiras mais perversas, aquelas que nos tornam matadores de nós mesmos!

Denis de Rougemont, um ensaísta suíço já falecido, escreveu um livro que deveria ser obrigatório para todos os amantes.

História do Amor no Ocidente é como se chama essa obra-prima sobre o amor romântico, esse que nos empurraram goela adentro e que, ato contínuo, vamos empurrando nos outros, já faz isso uma eternidade.

O livro começa pela análise radical do mito de Tristão e Isolda, examina a Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca, o Romeu e Julieta de Shakespeare e chega aos mitos da modernidade no cinema de Hollywood. Lá está uma afirmação que tem muito a ver com o tema da coluna de hoje: "Os homens e as mulheres aceitam perfeitamente que se fale de amor, aliás, nunca se cansam disso, por mais vulgar que seja o discurso, por menos rigorosa que seja a definição". Bate, Martha!

É que o mito ocidental do amor anda de mãos dadas com as mentiras "consensuais", essas que chamo de mentiras sociais. Na arte, é lindo! Na realidade, não!

E como plasmei o texto de hoje nessa escritora que admiro tanto, ouso terminar com palavras dela esta crônica: "Todos nós que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós que aceita as mentiras consensuais, entende que o melhor é viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém". À Vargas Llosa, é a verdade das mentiras!