terça-feira, 26 de março de 2019

Amor pela sétima arte


Disse certa vez Frank Capra: – "O filme é uma doença. Quando infecta a corrente sanguínea de alguém, ele toma posse como o hormônio número um, comanda as enzimas, dirige a glândula pinial, age como Iago com sua psique. Assim como acontece com a heroína, o antídoto do filme é mais filme."

Que bela asserção do cineasta acerca do amor pelo cinema. Comigo aconteceu de um tio, Manuel Mathias Costa, o mais querido dos irmãos do meu pai, investir na compra de um cinema em Iguatu. Tio Nelzinho era um grande agropecuarista, razão por que esse empreendimento causaria a maior estranheza na cidade. Até hoje não entendo o que o levou a investir num ramo tão desconhecido para ele. Ah, lembro sim: comprara o cinema em parceria com um parente, a fim de ajudá-lo num momento de dificuldade financeira.

Pois bem. Compra o cinema e, amorosamente, presenteia-me com um permanente. Sem pagar entrada, assim, passei a 'morar' no Alvorada (era este o nome do cinema), assistindo a todos os filmes que a minha idade permitisse, de Tarzan aos filmes de cowboy estrelados pelo italiano Giuliano Gemma, que se tornaria o meu primeiro ídolo da sétima arte. Com o pseudônimo de Montgomery Wood, se não estou enganado, Gemma faria os seus primeiros filmes, passando a usar o nome verdadeiro algum tempo depois, quando já era um astro reconhecido internacionalmente.

Lembro que o vi atuar ao lado de grandes nomes do cinema, a exemplo de Kirk Douglas, Rita Hayworth, Ursula Andress, Liv Ullmann, Alain Delon, Philippe Noiret, Catherine Deneuve, Claudia Cardinale e tantos outros com os quais eu passaria a 'conviver' como cinéfilo.

E no velho Alvorada assistiria a alguns dos clássicos do cinema: As aventuras de Robin Hood, O homem que ri, A ponte do rio Kwai, Janela indiscreta, Um corpo que cai, Bem-Hur, Spartacus, A face oculta, Os reis do iê iê iê, Doutor Givago, A herança sagrada, Era uma vez no oeste e A bela da tarde, além de uma quantidade incalculável de outros filmes inesquecíveis.

Ocorre-me recordar que os garotos da minha turma censuravam-me por ir ver, por exemplo, este último, de Luis Buñuel, que, sem que soubessem, mas corretamente, julgavam muito cult para a nossa limitada capacidade de compreensão. Não sabiam eles que, de tanto ir ao cinema e tentar entender o que se passava na tela, eu tinha adquirido uma sensibilidade incomum para a minha idade e já não eram mais os "filmes de luta" que me interessavam a partir dali. Eu contraíra a cinefilia de que nos falara Capra.

Muito tempo depois, com a chegada do DVD, revi grande parte desses filmes, com uma compreensão maior daquilo que faz deles grandes obras de arte. A história de Séverine Serizi, a personagem vivida por Catherine Deneuve em a Belle de jour, por exemplo, me emocionaria intensamente, agora que podia sentir toda a força poética de Buñuel, todo o mistério de sua arte sublime, marcada de sonho e realidade.

O tema dos relacionamentos, a crise dos casamentos, a busca da felicidade como um direito de cada um, os triângulos amorosos, as fantasias sexuais, o ciúme e os dramas do amor não correspondido, matéria com que teço muito dos meus textos hoje em dia, já eram visualizados na obra de Buñuel e Jean Claude Carrière, de Truffaut, Bertolucci, esses artistas maravilhosos do melhor cinema.  

Depois, viria Bergman, Morangos silvestres, O sétimo selo, Persona  ---  e, definitivamente, o cinema me arrebataria com toda a sua força prodigiosa, o seu encanto, a sua magia.

 

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