sexta-feira, 26 de junho de 2009

Adeus ao bom menino

Sei que haverá quem diga: - "Há tanto para nos comover, aqui mais próximo... " Não importa, assumo. Estou comovidíssimo com a morte de Michael Jackson. Era mais novo que eu, mas cresci ouvindo as suas músicas. Ben, o primeiro clássico, ouvíamos à exaustão, eu e um outro Jackson, o nosso Miguel Felipe. I`ll be there, Abc e tantas outras. A sua música, assim, marcou a nossa geração. Lembro de que muitos anos depois, acalentei a primeira paixão embalado pela voz do menino-prodígio. Era One day in your life, que considero, ainda, e sem qualquer fundamentação teórica, a mais bela música pop de todos os tempos. Depois, vieram sucessos grandiosos, na linha de Thriller, que víamos no Fantástico, à época a única via de acesso aos lançamentos do show business internacional.

Penso que, com Michael Jackson, morre muito mais que um fenômeno da música de todos os países (que ele era muito mais que um artista americano), morre um pouco da capacidade de sonhar da minha geração, essa vontade, cedo ou tarde frustrada, de se manter a juventude, em que pesem os cabelos brancos ou, como no meu caso, a sua falta. É como se caísse a ficha: - "Estou ficando velho, não há muito sobre o que sonhar." Sim, acho que é isto. Parodiando Lennon, é como se acordássemos de um sonho. Acabou.

Ao lado desse prodigioso talento para compor e cantar, tinha Jackson uma expressão plástica deslumbrante, com que só se poderia estabelecer paralelos se falássemos de Astaire ou Presley. Com este, aliás, passam a ser imensas as semelhanças de vida e morte.

Uma coisa, no entanto e acima de tudo, ecoa no meu pensamento, agora que Michael Jackson morreu. Como se manteve menino, como não aceitava envelhecer. Se o novo é conjuntural, efêmero, transitório, nele essa lógica foi rompida. A sua imagem era, invariavelmente, a imagem de um garoto, mesmo agora, quando atravessaria a barreira dos 50 anos. A sua aparição trazia sempre a alegria das crianças. Mesmo quando embranquecida a pele, por força de doença ou vaidade ingênua, e os traços fisionômicos desfiguravam-se, era menino o rosto que se via por sob as máscaras e os lenços. É que, em Michael Jackson, o tempo era psicológico, metafísico, bergsoniano, não se podia medi-lo pelo passar das horas e dos dias. Daí advinha a jovialidade, o coração infantil.

Com a morte desse artista extraordinário, da figura a um tempo adorada e repudiada do gênio, não exagero ao dizer que morre um estado de espírito em mim e nos de minha geração. Resta-nos, assim, que nem tudo se acaba com a morte de um ídolo, para além do ouvido, abrir a alma ao som de Billie Jean, Beat it, Bad ou, como que de propósito, We are the world, com que se deu a ver ao mundo o quanto era generoso o coração do menino, o seu amor pelos homens de todos os cantos. Como no verso de Um dia em sua vida, "é assim que as coisas são."

26 de junho de 2009

domingo, 21 de junho de 2009

Coerência entre o pensar e o dizer

Para Valéria, pelo exemplo

Conversando com um leitor, em momento de descontração, percebo a insinuação de que vê um descompasso entre o que tenho escrito ultimamente e o que realmente penso sobre alguns assuntos aqui explorados. É claro que os escritos sobre relacionamentos (o que estava em pauta) constituem o objeto de sua crítica, que, embora natural para aqueles que tornam públicas suas ideias, antes revelam o que pensa o meu interlocutor sobre a matéria, o que respeito inteiramente. Não bastasse a minha formação intelectual (tome-se aqui o termo dentro dos limites do que quero dizer), mais voltada para a dimensão humanística da realidade, insisto em que o homem é um eterno vir-a-ser, entendendo-se isso como compreensão de que mudamos todos os dias, de que crescemos na perspectiva do nosso conteúdo interior, enriquecemo-nos enquanto pessoas, o que, por certo, terá chamado a atenção do leitor sobre as ideias que tenho emitido neste espaço acerca de diferentes assuntos. Relacionamentos, por exemplo.

Acho que essa discussão deve passar pelo que o filósofo francês Michel Foucault, na introdução ao livro História da Sexualidade, chama de "estética da existência", ou seja, esse desafio que é construir a vida como uma obra de arte, dentro dos limites e das possibilidades de cada um. A ideia foucaultiana, percebe-se, tem gerado mal-entendidos a torto e a direito, mas consigo entender o que isso significa em essência - ou penso entender, para não incorrer na atitude pretensiosa de me fazer íntimo de um filósofo reconhecidamente difícil como Michel Foucault. O que me parece fundamental, no que chama de estética da existência, não passa pela retomada dos padrões éticos da Antiguidade greco-romana, isto é, a obediência rigorosa dos preceitos estabelecidos como politicamente corretos, mas a capacidade de ver a vida por outro ângulo, mais pessoal, descontraído, criativo e irreverente.

Não tenho a pretensão, como disse, de fixar parâmetros para o que seja uma vida como arte. Muito longe disso. Quero, tão-somente, fazer uma reflexão sobre coerência entre o pensar e o dizer, que me parece ser o ponto que inquieta o respeitado leitor. Numa palavra, aprendi que somos seres in fieri, independentemente da idade cronológica que venhamos a ter. Aprendi que somos capazes de melhorar, de compreender melhor hoje o que não compreendíamos ontem com muita clareza. E, acima de tudo, que somos humanos, pressupondo isso dizer que mudamos, que devemos rever nossos conceitos e julgamentos sobre os outros e sobre os fatos em que estivemos, estamos ou estaremos envolvidos em alguma circunstância de nossas vidas. O que não é um tipo de contradição pela contradição. Acho que é isso que quis dizer Foucault com o seu conceito de 'estética da existência'. Em outras palavras, construir a vida como arte é ter motivação para fazer dela algo prazeroso, em que pesem os deslizes e escorregões ao longo do caminho de nossa existência, para aludir ao verso antológico de Alighieri, na Divina Comédia .

Não é outra a razão por que tenho escrito sobre relacionamentos (vida amorosa, isso quer dizer) professando ideias que, vejo, desagradam a alguns, a exemplo do aludido leitor. Faço-o por entender que podemos tornar esses relacionamentos mais felizes, mais bem-humorados, inventivos, sensuais. Porque acredito que devemos rir de nós mesmos pelos equívocos cometidos ontem, a fim de não repeti-los amanhã. Porque acho que precisamos aceitar os outros em sua dimensão alteritária, o que haverá de nos fazer mais arteiros e mais 'estilosos' como pessoas. É isso, por certo, o que Foucault defende como estética da existência, algo de que, mais ou menos, todos nós somos - ou viremos a ser - capazes de construir dentro de nós mesmos. Só assim legaremos à posteridade o exemplo de uma vida bela, "coisa" a ser 'admirada e seguida por sua ligação intrínseca com o Bem e a Verdade'.

21 de junho de 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A verdade que incomoda

Nelson Rodrigues disse certa vez: "Todo autor é autobiográfico e eu o sou. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida". É isso mesmo. E não é só com a obra ficcional que o autor se revela. Quem escreve, seja o que for, tira um pouco a roupa, mostra-se de alguma forma. O cronista de jornal, então. Por isso tenho publicado tanto sobre temas que dizem respeito à minha vida, e que, estou certo, diz tanto da vida de outras pessoas. Acho que a sinceridade em tudo que dizemos (escrevemos) ou fazemos é um bem de que nunca se deve abrir mão. Chega das mentiras sociais, aquelas que escondem as nossas verdades mais íntimas, mais humanas. Martha Medeiros tem uma crônica de que gosto muito e que fala disso que chama de mentiras consensuais.

Ela diz: - "Mentiras consensuais são aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima desse consenso." Perfeito, Martha, é isso mesmo, razão por que as pessoas vivem julgando umas às outras quando o assunto é amar alguém, viver com...

Para quem, como eu, viveu tantos relacionamentos, a coisa é ainda mais complicada. Não sabem que o amor, como sabiamente diz a cronista, é um sentimento livre, que "debocha das regras que tentam lhe impor." Fomos educados, por exemplo, para casar uma vez, não importa a intensidade do que sentimos ou deixamos de sentir um dia. Há que ser para sempre. E o para sempre, esquecem, nem sempre é para sempre. Pode acabar um dia, o que, ao invés de levar à sensação de fracasso, de derrota, deveria apenas nos fazer sentir normais e mais humanos. Ou, talvez muito mais que isso, verdadeiros, honestos para com um sentimento, como falou a escritora gaúcha, a um tempo tão nobre e tão vulcânico. E a nobreza desse sentimento é demasiado grande para viver em função dos outros, para se fantasiar de felicidade quando é infelicidade, num teatro de aparências que só maltrata e angustia.

Denis de Rougemont, um ensaísta suíço falecido há alguns anos, tem um livro que deveria ser obrigatório para todos os amantes. História do Amor no Ocidente, é o título dessa obra maravilhosa sobre o amor romântico, esse que nos empurraram goela adentro e que, ato-contínuo, vamos empurrando nos outros tempos afora. Começa com uma análise vertical do mito de Tristão e Isolda, examina a Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca, o Romeu e Julieta de Shakespeare e chega aos mitos da modernidade do cinema de Hollywood. Rougemont diz uma coisa que tem muito a ver com o tema desta coluna: - "Os homens e as mulheres aceitam perfeitamente que se fale de amor, aliás, nunca se cansam disso, por mais vulgar que seja o discurso; mas temem que se defina a paixão, por menos rigorosa que seja a definição." Exatamente isso. É que o mito ocidental do amor anda de mãos dadas com as mentiras consensuais de que nos falou Martha Medeiros - e que chamo de mentiras sociais. E, já abusando da cronista, não vejo palavras mais apropriadas para desfechar a coluna de hoje: - "Todos nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém."

Sina de quem escreve

Em meio a tantas interpretações aceitáveis, leitor manifesta insatisfação em face de alguns temas aqui abordados. Sobre a coluna intitulada Quando o desejo acaba, publicada há pouco, diz constituir um "desserviço" aos casais. Vai além: - "Você é um formador de opinião, não deve fazer a apologia da infidelidade" (sic). Quero crer que o aludido leitor está brincando, haja vista que em momento algum tive tal intenção.

O caso exemplifica à perfeição o abismo que separa o conteúdo de um texto da interpretação que se pode dar ao mesmo. Incompetência de leitura à parte, o que se dá aqui e além, o fenômeno é corriqueiro e tem sido objeto de estudos importantes no campo da filosofia e da linguística. Poderia citar agora, pelo menos, uma dezena de estudiosos renomados que se dedicaram a examinar este aspecto da comunicação escrita.

Humberto Eco e Paul Ricoeur, para ficar em dois exemplos que me ocorrem neste instante, deram contribuições relevantes sobre a matéria. O segundo, por exemplo, chama a atenção para o fato de que todo e qualquer texto, sendo uma produção de linguagem, é algo dotado de sentido. Mas, uma vez escrito, deixa de ser propriedade do autor. Para o pensador francês, é o leitor que dá voz ao texto, quem lhe atribui sentido àquilo que quer dizer, quem o atualiza em cada ato de leitura. E, aí, reside aquilo que mais nos interessa: As intenções do autor, as idéias que o levaram a produzir o texto etc., ficaram para trás quando o leitor procura dar sentido às suas palavras. O texto adquiriu autonomia e são muitos os fatores que passam a pesar no momento da sua interpretação.

O que quis o leior encontrar no texto? Quais os valores que, internalizados por ele ao longo dos tempos, orientaram a sua leitura? Que diálogo foi capaz de estabelecer com o texto, na sua estrutura, independentemente do autor? Nesse aspecto, é fundamental que se leve em conta que, diferentemente do que se dá na comunicação oral, na experiência da leitura não é possível a reconstrução do discurso, a substituição de palavras ou expressões, o esclarecimento imediato das dúvidas suscitadas. O texto, como diz Ricoeur, não pode falar se não aquilo que fixou através das palavras, ainda que esteja aberto para diferentes interpretações - o que é outro aspecto importante da questão.

Ricouer chama este movimento da linguagem de "veemência ontológica", isto é, "a passagem do mundo do texto para o mundo da ação, que resulta na interpretação do leitor." O texto, fixado pela escrita, submete-se às circunstâncias do leitor, aos seus equívocos, acréscimos e distorções.

Desculpo-me pela aridez da coluna, pelo 'academicismo' da abordagem, mas reafirmo, com isso, as idéias expostas anteriormente sobre temas os mais variados. Mesmo quando incomoda alguns leitores, como no caso da infidelidade " quando o desejo acaba." Lamento, pelas razões evidenciadas, não poder me responsabilizar pelo que um ou outro leitor venha a concluir daquilo que escrevo. É sina de quem escreve. No caso, de um mau escritor.

10 de junho de 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O exemplo de Frida Khalo

Eu pinto-me porque muitas vezes estou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.

(Frida Kahlo, 1907-1954)

Revejo em DVD o filme de 2002 sobre Frida Khalo, com direção de Julie Taymor. Confesso que a minha admiração pela artista mexicana prende-se muito mais ao exemplo de coragem que nos legou, que a qualidade de sua obra, que não é pequena, diga-se de passagem. Um tipo de surrealismo ou naïve que mais inquieta que surpreende, esteticamente falando. O que me impressiona, reafirmo, é a determinação por que Kahlo orientou sua vida, marcada por tantos e tão grades desafios, o que só reportando-me a sua biografia pode dar ao leitor a dimensão do que estou falando. Teve poliomielite aos 6 anos, tinha uma perna menor que a outra. Entre 17 e 18 anos, sofreu um espantoso acidente de carro, de que saiu dilacerada: uma barra de ferro do ônibus entrou-lhe pelo pescoço e saiu pela vagina. Teve a espinha destroçada, os ossos dos pés esmagados, a pélvis, algumas costelas quebradas, o ombro afundado, inúmeras outras fraturas por todo o corpo. Sobreviveu a tudo.

Submeteu-se a trinta operações, teve uma perna amputada e, por um longo tempo, ficou dependurada por fios de aço, tolhida por coletes e praticamente vegetando. Abria os olhos, apenas, e, com mais dificuldade ainda, a boca, por onde uma sonda dava-lhe de comer, para que não morresse de inanição. Apesar do sofrimento desumano, venceu todas as barreiras, acreditou na vida, casou, descasou, voltou a casar com o prestigiado pintor Diego Rivera. Levou uma vida sexual ativa, teve muitos amantes - Trotski, o revolucionário russo, um deles -, participou da atividade política, liderou movimentos feministas, proferiu palestras, rompeu preconceitos de toda ordem e, num exercício de catarse que a tornou sublime, dedicou-se à pintura, de cuja paleta sairiam obras importantes e admiradas mundo afora.

Era uma mulher vaidosa, apesar de tudo, independente (no sentido mais profundo da palavra), vestia-se de forma alegre, gostava das cores vibrantes, contagiava a todos com suas excentricidades, amou homens e mulheres, fez e desfez, pintou e bordou. Seus quadros, porém, expressam o que há de mais dramático na alma humana. Abortos, sangue, fetos, pregos, nuvens, figuras com que sublima a mais lancinante dor. Mais que o sofrimento físico, no entanto, provou o gosto amargo das grandes decepções. No campo passional, para que se tenha uma idéia, suportou com dignidade os desvios de personalidade de Rivera, um sedutor incurável, de quem queria tão-somente a lealdade que nunca teve. Rivera, entre muitos outros, teria um caso com Cristina Kahlo, irmã de Frida, circunstância que, por suposto, mais feriu a pintora mexicana.

Morreria aos 47 anos, não sem que pudesse dar um caráter conclusivo ao conjunto de sua obra, registros artísticos de sua trajetória comovente. Em se tratando de Frida Kahlo, no entanto, para além das marcas indeléveis de um destino brutalmente adverso, ficou o exemplo de alguém que conseguiu distinguir o essencial do aparente, o amor em vez do desespero, a vida em vez da morte. Por isso, para citar o escritor peruano Vargas Llosa, que a exalta no livro Linguagem e Paixão,"em cada um dos seus quadros escutamos seu pulso, suas secreções, seus uivos e o tumulto sem freio de seu coração".


Quando o desejo acaba

Dia desses, conversávamos em grande roda sobre infidelidade. É tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromissos. De ambas as partes, óbvio. Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento, por sólido que pareça, vai se tornando frio e o outro não desperta mais que amizade, companheirismo, esses pequenos-grandes valores que, sendo a essência do que deveria ser chamado amor, não são capazes de preencher o tesão pela vida.

Quando isso ocorre, e quase sempre ocorre, a porta estará aberta para a aventura. É isso infidelidade? Não sei se a palavra se aplica adequadamente, hoje em dia, para definir aquela saidinha que, nessas circunstâncias, cedo ou tarde vai acontecer. Não se trata de fazer o elogio da traição, pelo contrário. O ideal seria que o passar dos tempos tão-somente fizesse crescer a atração por aquele ou aquela com quem se decidiu viver. Mas nem sempre é assim que as coisas ocorrem. Chega um tempo em que desaparece o encanto, a química, a mágica que "um dia nos fez desmoronar na presença do outro." E a vida vai se tornando uma rotina pesada ao lado de alguém que escolhi para dividir comigo a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama. Há um tempo em que a pessoa que foi objeto da melhor emoção, dos mais inesquecíveis sonhos, é apenas a pessoa de quem se passou a conhecer os defeitos, os vazios interiores, as manias 'insuportáveis'.

Lya Luft tem uma crônica em que levanta, pouco mais, pouco menos, a seguinte questão: - "Se um dia, depois de muitos anos de casamento, há tempos transformado em amizade, o outro nos pedir a liberdade, numa prova da lealdade que sempre exaltamos, qual vai ser a nossa reação?" Se nos propuser: - "Somos amigos, bem amigos, mas é hora de vivermos separados!", como vamos entender isso? Estou convencido de que ninguém aceitará tal proposta sem muito sofrimento, quando o desejo do outro acaba. Na hora em que se sente preterido, o mundo desaba sobre a cabeça e sente-se vontade de morrer. E, no entanto, quantas outras dores seriam evitadas, se se soubesse lidar com essa realidade!

Infidelidade, nessas circunstâncias, é palavra dura demais para ser empregada. Está no dicionário: 'Qualidade de infiel', que, por sua vez, é como se define 'quem não cumpriu aquilo que se obrigou ou se obriga.' O amor não é obrigação. O amor é dádiva. O amor é a união da amizade com o desejo. Se se desgastou, como diz a cronista, 'por que não nos permitimos a quebra do contrato' e partimos para a condição de amigos? Quase nunca isso é possível para quem perdeu o posto de objeto adorado. Haverá sempre a resistência, a tentativa em desespero de segurar o que já está no chão, em pedaços. Por isso, a aventura pode vir a passos largos. Na conversa a que me referi acima, mal e mal, citei Jabor: "O amor depende do nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende do nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele."



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sábado, 6 de junho de 2009

Pranto do ex-fumante

Para quem deixou de fumar, o cigarro é como ex-mulher: você está convencido de que não quer mais, mas não suporta vê-la na mão dos outros. Matando um leão por dia, chegou a minha vez. Não quero mais. Mas, tão difícil quanto largar esse falso amigo, é não se tornar um chato de galocha, patrulhando quem fuma e, nem por isso, está de mal com a vida. A propósito, diz um amigo meu: - "Adolescente, crente novo e ex-fumante é tudo igual, ou seja, um porre! Bate, Ricardinho.

Dir-se-ia que o cigarro é, sem dúvida, um dos maiores prazeres, e só quem fuma sabe o que estou dizendo. Não à toa, há quem o compare àquilo que é, ou deveria ser, uma unanimidade. Um uísque antes, um cigarro depois. Fico imaginando, se a mitologia se presta bem a tanta coisa, por que não em se tratando do cigarro. Pois bem, se a Fênix renasce das cinzas, todo fumante carrega a consciência de que a vida é uma contagem regressiva. É preciso degradar-se, para realizar o voo.

Digressão à parte, que todo ex-fumante é antes de tudo um ansioso sem cura, parar de fumar é que nem fazer autoflagelação. E não me venham com as tais receitas, que é tudo uma mesma empulhação, da bala de hortelã àqueles adesivos ridículos que se vendem nas farmácias. Tenho dito, para o ex-fumante só há uma saída: pensar no futuro, que o presente é uma tortura. Daí vem o discurso já conhecido: - "Estou dormindo como um anjo." Mentira cabeluda. O sujeito acorda duas, três vezes pensando na droga do cigarro, sem falar nas vezes sem conta que sonha dando belas baforadas. "A comida agora tem sabor." Ansiedade, amigo, é o nome disso. A balança que o diga. Prepare-se para ganhar uns três ou quatro quilos, bem ligeiro. Voz da experiência.

Dia desses, caminhando na praia, antes da academia e da sessão de análise que todo fumante, cedo ou tarde, haverá de fazer, deparo com uma amiga. Como todo ex-fumante é bicho excitado, disparo: - "E aí, beleza? Parei de fumar sabia?" Ao que ela responde, na maior sem-cerimônia: - "Explicado! Eu vinha dizendo: será ele, com aquela barriga?!" Fazer o quê? É trancar o fôlego e esconder a evidência.

Para não falar do stress, que nem mesmo o ex-fumante é capaz de tolerar. O cara se desentende com o espelho... No trânsito, então, parece descobrir que a buzina é 'o grande lance' do automóvel. E tome palavrão. O motorista do ônibus está coberto de razão e só você não vê: - "Qual é mermão, vai passar por cima?" Uma baixaria de que você jamais se julgou capaz. E a mão, tonta de displicente, procurando no painel a válvula de escape que já não há.

Sei, não. Parodiando Vinicius, o poetinha (quem não dirá?), o cigarro é o cachorro branco em forma de cilindro. Em tempo, ocorrem-me as palavras de um cronista português: - "Depois do calor, de sua sujidade, do veneno que contém, da chama insidiosa que finge não queimar e do fumo que, prestigitador, finge cumprir velhas ambições ao etéreo, que mais pode surgir se não a vida (a única coisa que possuímos sem filtro)?"

Perfeito. A vida! A mesma que, se ainda não matou, o cigarro matará um dia.

Abril de 2009



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sexta-feira, 5 de junho de 2009

Homens, mulheres

A mulher ou ama ou odeia; não há outra alternativa.
(Publílio Siro, séc. I)

Leitor envia e-mail elogiando o que escrevi dia desses sobre namoro na Internet e, entre curioso e deselegante, quer saber se o tema tem relação com uma experiência pessoal, que a ele se aplica, pelo que pude ver. Indiscrição à parte, acho que somos todos passageiros do mesmo barco e estamos, em proporções variáveis, entregues ao mesmo mar revolto. O bicho pode não ser tão feio assim. Vai ver, cedo ou tarde, o outro ou a outra vai descobrir que a Cinderela ou o Príncipe Encantado define-se pelo próprio status: é Cinderela ou Príncipe Encantado, não existe na vida real. Aí, dirá o leitor, vai ser tarde, Inês é morta. E daí? Mas, isso são outros quinhentos.

A propósito, li há pouco uma crônica interessante sobre o assunto. A gente não dá o devido valor àquilo que tem. A grama do vizinho é mesmo muito mais verde que a nossa. Mulher, então, tem uma tendência irrefreável para invejar a outra. O marido da amiga é sempre "muito mais legal". "Atenta para a forma como pega o talher", "gentil, ele, sempre abre a porta do carro para a mulher entrar", "o cara tem approach", "olha como se veste bem", "como é delicado com a mulher" e coisas que tais. Tudo fachada, minha amiga, quando cai o pano homem é tudo igual: ronca que mais parece o Rei Leão. Detesta lençol arrumadinho por debaixo do edredom, fuma dentro de casa, suja o espelho de creme dental, erra sempre o alvo quando vai fazer xixi, uma lástima. O humor matinal, nem se fale, a toalha molhada largada sobre a cama, sapatos e meias revirados etc. Dá um desconto, coisas de todo homem que se preza.

Mas, para a tranqüilidade dos machões, a moeda tem outra face. Mulher tem TPM, risca a roda do carro no meio-fio, estoura o cartão de crédito, troca um bom Saramago por qualquer Alain de Botton ou manual de auto-ajuda (para não falar das que preferem a revista 'Caras') e, entre oito e nove da noite, meu amigo, nem pensar em contar com ela: "Será que foi a fulana que matou a sicrana?", "eu digo que ele vai terminar com a beltrana" e por aí vai... Um horror. Como comentarista de Big Brother, então. Toda mulher é gasguita quando sente raiva, diz nome feio, descabela-se de ciúme, fala mal da melhor amiga (e ainda excomunga o marido dela). Mulher, por força das circunstâncias, mente para sair por cima... Como diz o Novelinha, amigo meu, mulher é novela também. Chego a arriscar: mutatis mutandis, toda mulher é igual. Mulher se cuida, faz botox, lifting, regime alimentar, malha, para impressionar as amigas. Mulher se veste, já dizia Unamuno, o filósofo espanhol, para as demais mulheres, e não para os homens, nem sequer para aquele a quem mais quer. Estou careca de perceber isso. Tudo, claro, ao lado de serem lindas, maravilhosas, sensacionais... E indispensáveis!

Se é assim, fazer o quê?, desolado, o leitor haverá de perguntar. Complica, não, amigo. Como no poema de Bandeira, dança um tango argentino, que para tudo há de existir um remédio neste mundo. Acho que o que pode salvar um relacionamento é aquele trivial que o homem só valoriza quando fica só. Se o seu casamento ainda está de pé, atenta para o que eu digo: nada no mundo paga aquele carinho quando o sapato aperta e você se sente como o José do poema de Drummond, sozinho no escuro e sem parede nua para se encostar. O sucesso do relacionamento, diz a cronista, "está nos detalhes, na maneira como cada um aceita os defeitos que não foram confessados no primeiro dia, no bom humor para lidar com as coisas que não saíram como o planejado, no apoio que se dá e se recebe incondicionalmente, estejamos no auge ou na beira do abismo."

Perfeito, bate. Agora, se o seu barco está fazendo água - e sua mulher parece mesmo não estar nem aí, paciência. É hora de ver se ela não está indo com muita freqüência ao computador.

P.S. Esta crônica, quando da sua publicação, foi objeto da maior incompreensão por parte de algumas leitoras, que não atentaram (ou não quiseram atentar), para o fato de que se trata de uma grande brincadeira.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A barca de Caronte

Os gregos da Antiguidade tinham uma metáfora curiosa e poética sobre a morte. Para eles, o mundo dos vivos estava separado do mundo dos mortos apenas por um rio, o rio Aqueronte. A travessia de uma a outra margem era feita pelo barqueiro Caronte, a quem cabia transportar a alma dos mortos. A barca de Caronte voltava vazia, claro, até que, numa repetição do imponderável mistério, chegasse a hora e a vez de mais alguém. Desde que o avião da Air France desapareceu, no domingo 31, vez e outra ocorre-me essa imagem dos gregos. Entrego-me a pensar: Como é triste e trágico o destino dos homens. E, agora, vêm-me à mente os versos de Fernando Pessoa, que nos lembram que a morte ata no mesmo feixe ricos e pobres, jovens e velhos, com um senso de justiça fria e implacável. Mas, que Deus seja complacente com a minha ignorância, que é santa também. A quem cabe acertar os ponteiros e dizer que é chegada a hora, a quem cabe passar a folha do calendário de cada um? Quem define, escolhe, faz a seleção aterrorizante? Já disse, é santa a minha ignorância...

A jovem médica Bianca Cotta e o advogado Eduardo Macário, tão jovens, tinham casado no sábado à noite. Receberam num clube elegante de Niterói, onde moravam, algo em torno de 500 convidados. Estavam felizes, caminharam tanto para chegar ali. Alguém declarou: - "Foi uma festa de contos de fada." Sim, uma festa de contos de fada, por que, simples ou faustosa, toda noiva faz a sua festa de contos de fada. O casamento é o milagre do melhor encontro. Bianca era romântica, fazia projetos, alimentava sonhos. No dia seguinte, com o homem que fora objeto da sua mais bela emoção, Bianca tomou o voo 447 com destino a Paris, onde passariam a lua-de-mel. Quantos leões não tiveram de ser mortos, quantos pedidos de perdão, quanta entrega e quanta renúncia, para que pudessem chegar ali?

Rino Zandói, Giovanni Battista e Luigi Zortea, todos sessentões, vieram ao Brasil para entregar dinheiro, arrecadado na Itália, a pessoas carentes. Entre essas ajudas está a doação de 60 mil euros às vítimas das enchentes de Santa Catarina, no ano passado. No mesmo avião, de volta para casa depois de visitar parentes brasileiros, um jovem de nome ilustre: d. Pedro Luiz Maria José Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Brangança e Ligne. Voltássemos à monarquia, e seria o quinto nome na ordem de sucessão ao trono. A mesma idade dele, 26 anos, tinha o 'plebeu' Lucas Gagliano Jucá, que viera ao Brasil para enterrar o pai. Para enterrar o pai, eu disse. Passou duas semanas com a família e voltava para Paris, onde morava. Quem estabelecera a justiça fria e implacável? Quem, o dedo em riste, apontara a data implacável?

E, assim, meu pensamento vaga pela relação de nomes. Um grupo de médicas irlandesas, todas na faixa dos vinte e poucos anos, exultante de contentamento, retornava para casa depois das férias no Brasil. O engenheiro inglês, Graham Gardner, que adiara a viagem por duas vezes, embarcou no voo 447. Numa entrevista, disse a mulher: - "Ele ficara de retornar há dez dias." Não o fez.

Os funcionários de uma fabricante francesa de material elétrico, dez ao todo, haviam sido contemplados com uma viagem ao Brasil em função dos bons serviços desempenhados como profissionais. E, no mesmo voo, havia um garoto de onze aninhos. Os pais moravam no Brasil e Alexander, era o seu nome, viera encontrá-los, viajava sozinho para a Inglaterra onde vivia com os avós. - "Ele era meu único neto. Vamos sentir saudades", disse o William Dougill, o avô.

E, assim, "A pálida morte bate com golpes iguais à porta dos casebres, como à dos palácios. O feliz Sesto, a extrema brevidade da vida nos impede de alimentar esperanças longas!", como cantou Horácio. No início daquela madrugada, que mão acenou para Caronte, tão fria, tão determinadamente fria? Por que, ali, na antemanhã de um domingo de sol, pessoas de idades e realidades humanas tão diferentes, embarcaram, palavra que na sua origem significa tomar a barca? A barca de Caronte.

4 de junho de 2009

A volta da barbárie

"Há feridas que nunca curam, apenas esquecem de doer." (Carpinejar)

Escrevo este artigo há poucas horas do brutal assassinato dos jovens Marcelo e Leonardo, em um restaurante de Iguatu, cidade em que pude privar da convivência dos pais, Nelson Benevides e Célia Moema, razão por que o faço movido pelo dúbio sentimento de profunda dor e revolta sem nome. Como o pai, ambos eram médicos e tinham dedicado boa parte de suas curtas existências aos livros, aos ambientes da universidade e às salas de hospitais em que aprendiam e aprimoravam seus conhecimentos profissionais, ajudando a salvar vidas e minimizando o sofrimento alheio.Vi-os crescer, acompanhei com certa proximidade a forma como foram educados, por que valores morais orientavam seus passos. Pelos dois lados, do pai e da mãe, vinham de famílias exemplares, eram rapazes bons, cordatos, gentis, belos e felizes. Não mereciam o desfecho que suas vidas tiveram.

Há dias, em artigo publicado por este jornal, levantei uma reflexão sobre a violência e o retorno à ordem do dia do debate em torno da pena-de-morte como alternativa de ação contra ela, emitindo idéias que venho defendendo ao longo de muitos anos, em favor da vida e da busca de caminhos mais humanos para o combate à prática da criminalidade em suas diferentes faces. Dizia, no referido artigo: não se trata de defender criminosos monstruosos, mas de não fechar os olhos para a triste realidade em que foram gerados, sem família, sem escola, sem alimentação, sem educação, sem nada que os faça ter o menor apreço pela vida, a sua ou de quem quer que seja. Perfeito. Mas, agora, vejo-me condicionado a retomar essa discussão, não para abrir mão do que professava nas páginas de O Povo, em sua edição de 10 do corrente, ou nos espaços universitários em que por vezes tive a oportunidade de expressar meu pensamento sobre o problema. Faço-o, neste instante, consciente de que a violência, nas proporções gigantescas em que se nos aparece todos os dias - e em quase todos os lugares -, traz em si um detalhe curioso: como que nos condiciona a entendê-la como algo inevitável e inerente aos tempos hodiernos, numa espécie de banalização do que em essência deve nos mobilizar num esforço coletivo, por inaceitável e revoltante, a exemplo do que vimos ocorrer a Marcelo e Leonardo.

O capitão Daniel Bezerra, que ceifou suas vidas num tipo de execução que revolta e indigna, não foi gerado na miséria, não sofreu na pele as conseqüências de uma pobreza extrema, não atravessava problemas existenciais que se pudessem perceber a olhos nus, não era um desempregado. Antes pelo contrário, gozava de boa situação financeira, tinha um emprego estável, ocupava posição de destaque entre os seus pares, podia desfrutar de relativo conforto em seus momentos de lazer, freqüentar restaurantes etc. A sua presença, que, na perspectiva do que é racional presumir, deveria ensejar tranqüilidade aos freqüentadores daquele ambiente de descontração, posto que pago pelo Estado para fazê-lo, como militar e comandante de uma corporação de segurança pública (ainda que na circunstância de estar de folga de suas atividades profissionais), expôs sua contraface e resultou na prática de ações monstruosas, desnecessárias, inaceitáveis e revoltantes. Agrediu, humilhou, tirou vidas.

Não consigo deixar de pensar em Nelson e Celinha, em Régis, Larissa, José Edésio, D. Norma, Silvia, Weimar, Roney, Lola, Ronaldo - em tantos amigos queridos, gente de bem. Não consigo parar de sentir em mim um pouco da dor lancinante que toma conta dessa família desde a antemanhã de sábado, 17, agora que aos poucos vão recobrando a consciência plena do que aconteceu a Marcelo e Leonardo. Trago na memória das retinas a cena que jamais presenciei, mas que adivinho, como cidadão e como pai, e que entendo como indispensável para que se possa dimensionar com exatidão o que isso significa, a brutalidade a que estamos todos expostos - e que me faz relembrar as palavras do cineasta Alfred Hitchcock: "Se há uma bomba sob a mesa e ela explode, isso é surpresa. Se sabemos que a bomba está sob a mesa, mas não quando ela vai explodir, isso é suspense".

23 de março de 2007

Não é de vingança que estamos precisando

Nessa quarta-feira, 7, fez um mês do brutal assassinato do garoto João Hélio, arrastado por um carro ao longo de sete quilômetros na Zona Norte do Rio. Crime bárbaro, hediondo, bestial. Quanto a isso, somos unânimes e manifestamos todos, de alguma forma, a nossa indignação. Diante de atrocidades como essa, é natural que o tema da pena de morte volte à pauta, mais como busca desesperada de uma solução para a violência, que como meio realmente eficaz para combatê-la. Cadeira elétrica, forca, paredão de fuzilamento, são propostas que escutamos a todo momento - e em todos os lugares -, no que parece ser uma insana "convicção" coletiva de que só nos resta este caminho para o enfrentamento da nossa maior mazela. Triste realidade esta, em que a precariedade das idéias vê na morte autorizada uma alternativa de ação.

Na tentativa de encaminhar uma reflexão sobre o tema, reservo-me o direito de reproduzir aqui fragmentos do artigo de Renato Janine Ribeiro publicado no caderno Mais!, do jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 18 de fevereiro passado: "Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda (...) Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte." E, mais adiante: "Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas, embora isso fosse desejável." Tais declarações, produzidas não ao acaso, sob o efeito de compreensível comoção, mas fruto de um exercício de pensamento serenamente levado a efeito à frente de um computador, não vêm, caro leitor, de um jornalista qualquer, acostumado com a cobertura noticiosa de chacinas, seqüestros, assassinatos ou coisa que o valha. Elas nascem de um dos mais renomados intelectuais brasileiros, jurista consagrado, filósofo e, pasme, professor da cadeira de Ética da USP (mais importante instituição de ensino superior do país), para não realçar o fato de ser diretor da CAPES.

Como professor, ainda que de disciplinas em que o componente emocional é quase um atributo indispensável, tais como literatura, filosofia e estética da arte, sempre soube distinguir o que é da esfera dos sentimentos subjetivos daquilo que pertence à esfera da atividade de inteligência, da razão e da ação prática, princípio elementar de que não abro mão na determinação profissional de construir novas mentalidades e novas percepções da realidade social e humana. Inaceitável, pois, que um intelectual da estatura de Janine, prodigioso formador de opinião, venha a público asseverar um tipo estúpido de vingança como instrumento de inibição da violência. É este o país em que está na ordem do dia a discussão em torno de medidas constitucionais como a pena de morte e a redução da maioridade penal, à margem do que se dá nos bastidores da grande política nacional, da desumana desigualdade da distribuição de renda, do modelo educacional pré-histórico, da inaceitável realidade de um sistema carcerário que mais embrutece e desumaniza que qualquer outra coisa.

Não teme a morte quem de alguma forma vive dela. Não se trata de defender criminosos monstruosos, mas de não fechar os olhos para a realidade em que foram gerados, sem família, sem alimentação, que seja. O que aconteceu ao menino João Hélio, estou consciente disso, pode infelizmente acontecer a qualquer um e é inquietante pensar nessa possibilidade. Que sequer imaginemos o que seríamos capazes de fazer a um bandido que maltratasse um ente querido nosso é compreensível e até aceitável. O que não me parece sob qualquer aspecto compreensível ou aceitável é que deleguemos ao Estado o direito de fazê-lo friamente, na equivocada expectativa de que esse tipo de catarse venha a constituir solução. Não é de vingança que estamos precisando.

9 de março de 2007

A barca de Caronte

À memória de 228 ausentes


Os gregos da Antiguidade tinham uma metáfora curiosa e poética sobre a morte. Para eles, o mundo dos vivos estava separado do mundo dos mortos apenas por um rio, o rio Aqueronte. A travessia de uma a outra margem era feita pelo barqueiro Caronte, a quem cabia transportar a alma dos mortos. A barca de Caronte voltava vazia, claro, até que, numa repetição do imponderável mistério, chegasse a hora e a vez de mais alguém. Desde que o avião da Air France desapareceu, no domingo 31, vez e outra ocorre-me essa imagem dos gregos. Entrego-me a pensar: Como é triste e trágico o destino dos homens. E, agora, vêm-me à mente os versos de Fernando Pessoa, que nos lembram que a morte ata no mesmo feixe ricos e pobres, jovens e velhos, com um senso de justiça fria e implacável. Mas, que Deus seja complacente com a minha ignorância, que é santa também. A quem cabe acertar os ponteiros e dizer que é chegada a hora, a quem cabe passar a folha do calendário de cada um? Quem define, escolhe, faz a seleção aterrorizante? Já disse, é santa a minha ignorância...

A jovem médica Bianca Cotta e o advogado Eduardo Macário, tão jovens, tinham casado no sábado à noite. Receberam num clube elegante de Niterói, onde moravam, algo em torno de 500 convidados. Estavam felizes, caminharam tanto para chegar ali. Alguém declarou: - "Foi uma festa de contos de fada." Sim, uma festa de contos de fada, por que, simples ou faustosa, toda noiva faz a sua festa de contos de fada. O casamento é o milagre do melhor encontro. Bianca era romântica, fazia projetos, alimentava sonhos. No dia seguinte, com o homem que fora objeto da sua mais bela emoção, Bianca tomou o voo 447 com destino a Paris, onde passariam a lua-de-mel. Quantos leões não tiveram de ser mortos, quantos pedidos de perdão, quanta entrega e quanta renúncia, para que pudessem chegar ali?

Rino Zandói, Giovanni Battista e Luigi Zortea, todos sessentões, vieram ao Brasil para entregar dinheiro, arrecadado na Itália, a pessoas carentes. Entre essas ajudas está a doação de 60 mil euros às vítimas das enchentes de Santa Catarina, no ano passado. No mesmo avião, de volta para casa depois de visitar parentes brasileiros, um jovem de nome ilustre: d. Pedro Luiz Maria José Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Brangança e Ligne. Voltássemos à monarquia, e seria o quinto nome na ordem de sucessão ao trono. A mesma idade dele, 26 anos, tinha o 'plebeu' Lucas Gagliano Jucá, que viera ao Brasil para enterrar o pai. Para enterrar o pai, eu disse. Passou duas semanas com a família e voltava para Paris, onde morava. Quem estabelecera a justiça fria e implacável? Quem, o dedo em riste, apontara a data implacável?

E, assim, meu pensamento vaga pela relação de nomes. Um grupo de médicas irlandesas, todas na faixa dos vinte e poucos anos, exultante de contentamento, retornava para casa depois das férias no Brasil. O engenheiro inglês, Graham Gardner, que adiara a viagem por duas vezes, embarcou no voo 447. Numa entrevista, disse a mulher: - "Ele ficara de retornar há dez dias." Não o fez.

Os funcionários de uma fabricante francesa de material elétrico, dez ao todo, haviam sido contemplados com uma viagem ao Brasil em função dos bons serviços desempenhados como profissionais. E, no mesmo voo, havia um garoto de onze aninhos. Os pais moravam no Brasil e Alexander, era o seu nome, viera encontrá-los, viajava sozinho para a Inglaterra onde vivia com os avós. - "Ele era meu único neto. Vamos sentir saudades", disse o William Dougill, o avô.

E, assim, "A pálida morte bate com golpes iguais à porta dos casebres, como à dos palácios. O feliz Sesto, a extrema brevidade da vida nos impede de alimentar esperanças longas!", como cantou Horácio. No início daquela madrugada, que mão acenou para Caronte, tão fria, tão determinadamente fria? Por que, ali, na antemanhã de um domingo de sol, pessoas de idades e realidades humanas tão diferentes, embarcaram, palavra que na sua origem significa tomar a barca? A barca de Caronte.

4 de junho de 2009